Capítulo 24 - Construir e Destruir
Os outros três dias seguidos, Haivor seguiu o mesmo padrão. Dormia as três da manhã, lendo na sala vazia, dividindo sua mente em duas para nada passar por ele. Dormia no quarto por quatro horas, acordava antes de Krill e comia uma fruta. Sentava no chão da sala e lia até que o homem acordasse.
– Bom dia – tinha dito no primeiro dia.
– Bom? Acordar não é nada agradável. Já limpou a cara e os dentes? E os cabelos também. Não seja porco e tente ao menos um pouco de higiene. Na Torre não te ensinaram bons modos?
Aprendeu ali a não falar com ele pelas manhãs. O silêncio pela manhã era realmente literal. Krill odiava qualquer barulho pela casa que não fosse seus passos e o tintilar do martelo contra o ferro na oficina.
Antes do trabalho, Cristine vinha com dois pequenos potes forrados e entregava a comida. Haivor também aprendeu somente a agradecer. A mulher era linda, mas quando parecia vê-lo, o brilho sumia na mesma hora.
Nos outros dois dias, confirmou que ela simplesmente ia embora se tentasse puxar assunto. Krill se divertia com um sorriso na cara e comentários bestas.
– O galanteador tenta seu movimento mais uma vez e falha miseravelmente.
– Eu não entendo as pessoas desse lugar – admitiu com incertezas. – Parece que cada pessoa vive em um mundo completamente diferente do meu.
– Não, não. – Krill abanou o dedo de um lado para o outro. – Não seja arrogante. Quem gostaria de viver no seu mundo, Enigma? Lançar magias, lutar contra os Magos, Bruxos ou criaturas de pesadelos noturnos.
– Não faço só isso.
Krill se divertiu ao ouvi-lo.
– Sério? E quando você parou alguma hora para ouvir cidadãos sem ser para resolver os problemas da Torre? Sem que estivesse com seu livro estudando ou rabiscando em uma folha um monte de palavras sem sentido?
– Esse é o meu trabalho. Sou um Adesir.
O ferreiro suspirou e começou a comer.
– Vocês são somente Adesir, Arcanos, Magos. São iguais sempre. – Com um pedaço de carne na boca, continuou: – Títulos são mais importantes que pessoas. É isso que acontece.
– Acha que não me importo com as pessoas?
– Sinceramente, Enigma, eu pouco me importo com que o você se importa. – Krill cortou a carne mais uma vez e enfiou na boca. – Agora, acabe logo com o seu almoço. Tenho que trabalhar ainda hoje. Ou quer conversar sobre dilemas sociais e como você é ignorante sobre elas?
Calado, Haivor mordiscou a carne e almoçou em silêncio.
Krill fez sua breve meditação na sala e foi para a oficina. Lá, continuou suas marteladas. Ele não diminuía o ritmo e sempre estava agredindo um mesmo pedaço de metal por longos três dias. O lingote não parecia distorcer nem mesmo com sua força máxima.
O trabalho de um ferreiro era desconhecido para Haivor. Em Senbom, ele tinha somente alguns conhecidos que forneciam armas para seu irmão, mas nunca teve nenhum tipo de contato com a criação. Vendo de perto, era uma questão de resistência e firmeza, sendo bem mais agressivo do que aparentava.
E pela cara de Krill ao descansar, não era suficiente.
– Algum recado? – perguntou ao sentar-se ao lado do barril.
– Nada.
A resposta não o agradou. Ele bebeu mais duas canecas e se levantou.
– O que está lendo?
– Idioma Hantagoriano. – Haivor mostrou a capa do livro. – Conhece?
– Só o nome. Gosta de literatura antiga? Ligariano e essas coisas?
Haivor concordou.
– Sou fluente nas seis estruturas.
Krill não se impressionou em nada.
– É uma forma de aprender sobre outras culturas. Mas, ainda continua ignorante. Existem outros livros ótimos que contam as histórias dos reinos e impérios caídos. Deveria ler esses. O motivo das brigas, dos conflitos. O que realmente move esse mundo.
– Me diga o nome.
– O quê? – Krill se virou.
– Me diga o nome dos livros. Vou pedir para que me enviem da Torre Mágica. – Haivor ergueu o dedo para ele. – Posso guardar e ler depois.
O ferreiro bufou e abaixou o óculos prensado. Continuou seu trabalho de bater contra o lingote, sem conseguir deformá-lo até o final do dia. Quando terminou, jogou o avental em uma das mesas e saiu pela porta de trás, Haivor em seu encalço.
Ele entrou em uma bacia larga cheia de água gelada e fechou os olhos, soltando alivio.
– A melhor parte do dia é sentar aqui – comentou para si. – Trabalhar duro e se recompensado.
Haivor não respondeu, focado em seu livro. Entretanto, sentiu alguém entrar em sua zona de mana. Ele ergueu-se rápido, sua atenção focada na pessoa que se aproximava silenciosamente.
– Sente-se, Enigma. – Krill passava a esponja no peito peludo. – É um colega. Ele vem todas as quaras. Suan, venha.
– E ele? – a voz devolveu, tremida. – Posso sentir o volume de mana saindo dele. Vai me atacar?
– Não. Ele é meu secretário.
Haivor presenciou o aparecimento de um homem envolto de uma manta fina. O corpo dele começou a aparecer do nada, como se o ar tivesse camuflado ele. Era um camaleão perfeito. Suan retirou a manta da cabeça e ajoelhou-se ao lado da bacia.
– Esse é um amigo meu, Enigma. – Krill deu um tapinha no ombro do homem cabeludo. – Ele é um antigo assistente. Um dos melhores que tive.
Haivor sentou-se novamente, mais tranquilo.
– O que veio fazer aqui? Pensei que estivesse trabalhando com os Droit.
– Eu vim falar sobre eles.
Haivor percebeu a mão trêmula que escondia embaixo da manta.
– É o Crawl, de novo?
– Sim, senhor. Pegou um dos meus assistentes comendo um pão.
A feição de Krill se abalou na hora.
– É uma notícia triste, meu amigo. Realmente, muito triste. – Com cuidado, Krill segurou o braço de Suan e o ergueu. Estava inchado e com cortes profundos. – Quantos dias?
– Uma semana, no mínimo.
O tom de abate era de ambos. Haivor tentava ligar alguns pontos, mas a forma como eles falavam, era como as palavras não se ligassem em nenhum momento. Fora de contexto e sem nexo.
– Tente só tratar de si, está bem? Vou tentar falar com Fricna.
– Obrigado, Krill.
O ferreiro abraçou o colega e o deixou partir, sumindo diante deles em um piscar de olhos. Voltando a se ensaboar, Krill permaneceu em silêncio, com os olhos tensos, encarando o nada por bastante tempo.
Estava escurecendo e o velho permanecia dentro da bacia.
– Vai pegar um resfriado – disse Haivor. – Aqui.
Pego desprevenido, ele se levantou e secou-se. Pegando roupas limpas do varal, vestiu-se e entrou na casa. Acendeu duas velas e pôs na sala vazia. Meditou sozinho por quase dez minutos, comeu algo na cozinha e foi pro quarto sem falar nada.
Haivor permaneceu na sala, com uma vela, lendo até tarde.
I
– Cristine – Krill a chamou quando surgiu pela porta. – Entre.
Dessa vez, a mulher carregava três potes. Haivor sentava em uma ponta, os dois se sentaram lado a lado. Não disse nada a ela. Apenas esperou a refeição chegar. Tomou o garfo e fez um dos seus livros flutuar, lendo.
Reparou que Krill o encarava.
– O que foi? – perguntou.
– Ainda pergunta? Estamos comendo. Tem como abaixar o livro e ter modos, pelo menos na hora do almoço?
– Por que? Sou ignorante, lembra? Não sei nada daqui. Melhor permanecer com os meus hábitos de leitura do que ficar tentando entender algo que não faço ideia.
Krill endureceu o queixo, e pegou o livro, batendo na mesa.
– A hora do almoço é um momento que temos que agradecer. Cristine está com a gente hoje. É o único dia que ela almoça comigo. Então, tenha respeito pela presença dela.
Haivor encarou a mulher, ela desviou o olhar, tímida.
– Como quiser – ele ergueu as mãos. – Não leio.
– Sua fixação por leitura. Idiota. Isso te faz perder tanta coisa. – Ele pegou uma colherada de arroz, jogando para dentro da boca. – Sabe quanto você pode aprender com as coisas ao redor ao invés de livros?
– Quanto?
– Muita coisa, Enigma. Olhe ela, a forma como come, o jeito dela, as pessoas não te interessam mais do que os livros?
Haivor negou para si. Pessoas eram complexas demais. Aprendeu isso vivendo.
– Tentei quatro vezes aprender sobre ela, e posso dizer que não aprendi nada.
Cristine soltou um riso abafado.
– Viu, idiota? Você é uma piada. – Krill pegou a faca. – E corte essa carne direito. Parece que você não sabe fazer nem o básico. Que tipo de educação recebeu quando pequeno? Que tosco. Vamos, faça força no braço.
Haivor fez força e cortou o bife, mas jogou um monte de arroz na mesa ao redor. Cristine e Krill deram risadas.
– É um idiota mesmo. Deixe que eu corto pra você.
Haivor ficou esperando, como um garoto de castigo, vendo o ferreiro cortar sua carne pedaço por pedaço. Por que não posso comer ela inteira?
Quando o velho terminou, devolveu o prato.
– Ai está. Agora, podemos começar a comer?
– Faça o que quiser.
Haivor continuou comendo com a cabeça baixa. Vinte e sete anos e sendo atormentado por um velho maluco.
– Como está seu pai? – Krill perguntou a Cristine. – Da última vez que o vi, o braço dele estava inchado. Passou as pomadas que eu disse.
– Passei. Amenizou um pouco, senhor Krill, mas voltou. Agora, tem manchas vermelhas pelo corpo e está começando a ter que beber o dobro de água. – Cristine respondeu com certo pesar. – Não gosto de ver meu pai naquele estado. Antes, quando trabalhava com o senhor, ele era tão forte.
– Sei como são as coisas. Pensou no que eu disse sobre vir para cá? Já preparei os quartos e tenho todas as ervas que você vai precisar para começar a cuidar dele. – Apontou para cima de um dos armários no fundo da cozinha. – E tenho os pós de trigo e talco para coceiras.
– Ele não quer atrapalhar o trabalho do senhor – ela disse, docemente. – Quero trazê-lo porque seria muito mais fácil. Ele tem vergonha de conversar com o senhor daquele jeito.
Quase cuspindo o arroz da boca, ele tomou um pouco de água.
– Vergonha? Não consigo acreditar que ele disse isso.
– Faça uma visita a ele.
Krill e Cristine olharam para Haivor, que comia em silêncio até aquele momento.
– O quê falou, idiota?
– Faça uma visita. Pessoas doentes não gostam de dar trabalho para os outros porque acham que estão incomodando. Seu pai deve dizer isso não somente para Krill, ele deve falar isso pra todo mundo.
– Sim, ele fala.
– Meio óbvio – Haivor concluiu. – O orgulho de uma pessoa se define pelo que ela foi no passado. Se ele era forte, claramente não quer ser visto em uma cama. É uma das coisas mais doloridas que tem.
– E como sabe disso? Qual a sua experiência com doentes?
– Meu irmão era o melhor caçador da ilha onde morávamos. Um dia, ele cortou o pé em uma armadilha para ursos, e ficou quase uma semana sem poder andar. Todo mundo perguntava o que tinha acontecido, mas ele jurou que não veria ninguém.
Krill nada respondeu. Nenhum insulto. Sem ironias.
– Quando comecei a ajudar na ferida, ele disse era vergonhoso. Um caçador sendo ferido por uma armadilha de urso. – Haivor riu sozinho. – Ainda me lembro bem de como ele ficava jogando faca na parede para matar o tempo. Uma semana inteira.
– E o que aconteceu com ele? – perguntou Cristine. – A perna dele melhorou?
– Só depois dele parar de ser orgulhoso e deixar um curandeiro ver a ferida. Eu ajudei, mas não tinha experiência. Por isso, faça uma visita a ele.
O ferreiro ficou meio atônito, mas concordou.
– Acho que posso matar o trabalho hoje para fazer uma visita a um antigo amigo.
Eles se levantaram depois de terminar a comer. Krill fechou a casa inteira antes de sair. Haivor esperou com Cristine do lado de fora, os dois quietos. Quando o ferreiro saiu pela cozinha, encarou os dois.
– Vamos. Não precisam esperar por mim, sei o caminho.
A casa tinha uma saída lateral, que dava na rua. Eles seguiram juntos, Cristine e Krill lado a lado, Haivor atrás. Não era a rua principal, mas o movimento era constante. As casas unidas criavam alguns becos onde outros tomavam como atalho.
Carroças e cavalos, de vez em quando, apareciam fazendo curvas e levando alguns convidados especiais, de roupas mais pomposas e ornamentos complexos. Alguns Arcanos conversavam com alguns moradores e viu o manto de um aprendiz de Adesir, negro, com um insignia no peito.
Quatro dias no Vilarejo Imperial e tinha encontrado um Adesir. O mestre dele deveria estar por perto, mas não disse nada. Conversar com um Adesir desconhecido poderia ser arriscado. Mestre Grison alertara várias vezes que os assuntos do Grande Continente eram mais complexos do que as ilhas.
Ser atento e respeitar o espaço dos outros era essencial.
Aproximaram da casa de madeira, dois andares. Janelas largas e abertas, com uma mulher usando um vestido negro na varanda, varrendo. Um homem cuidava do jardim e outro segurava um cachorro, dando banho nele.
– São todos os que falei? – Krill perguntou ao olhar para todos eles. – Cuidaram bem de seu pai?
– Todos eles. – Cristine acenou para os dois homens do jardim. – Parecem que sempre foram da família. São todos educados e compreensivos.
Haivor viu cada um dos ajudantes acenar com a cabeça para Krill, em resposta.
– Ótimo, ótimo. Seu pai merece o melhor.
Passaram pela mulher e entraram na casa. Krill e Haivor tiraram os sapatos, entrando de meia. Cristine não se importava com os sapatos, mas o ferreiro insistia em tirá-los. Dentro, seguiram para o segundo andar passando pela sala e a escada, um corredor até o quarto.
Ao abrir, a luz do sol penetrava levemente em cima da cama. O homem estava escorado na cama, usava um óculos e lia um livro. Ele era forte, mais do que Krill, braços largos e fimes, e um rosto quadrado, perfeitamente sincronizado com as bochechas.
Ao erguer o rosto, sua boca se expandiu em um sorriso.
– Isso é inesperado – até sua voz parecia ser de uma pessoa saudável. Mas, Haivor viu as manchas mencionadas pela filha. Espalhadas pelo pescoço e antebraços. – Mestre Krill, nunca esperaria vê-lo aqui.
– Eu tinha que fazer uma visita. – Krill pegou uma cadeira abaixo da janela e pôs ao lado da cama. – Um velho amigo continua sendo um velho amigo, mesmo estando doente. Mas, mandar sua filha me dizer que estava envergonhado de ir morar em minha casa? Sabe que aquela residência é tanto sua quanto minha.
– Eu saí de lá faz quinze anos. Não poderia continuar sendo minha depois de tanto tempo.
Krill bufou.
– Bobagem. Irá comigo, leve sua filha e os ajudantes. Tenho tudo o que precisa para fazer que melhore. Comprei tudo essa semana. Farei um chá de erva doce, que você gosta e beberemos todos os dias até sua recuperação.
– Uma oferta mais que tentadora. E esse, quem é? Outro secretário?
– Ele é um dos bons, pai – Cristine respondeu. – O tio Krill gosta dele.
Krill lançou um olhar fulminante para a mulher.
– Gostar? Esse é um idiota completo, Klausos. O mais idiota possível.
Haivor continuou de braços cruzados, ouvindo o desgosto do ferreiro.
– Ele não faz nada direito. – Krill continuou. – Parece que está perdido em outro mundo. Nem mesmo parece que presta atenção no que faz. Fica todo dia focado naqueles livros. Não posso mandá-lo embora porque foi Piey quem o mandou.
Klausos riu, mas começou a tossir fortemente. Levou a mão no peito, engasgando um pouco. Cristine o ajudou com tapinhas nas costas, finalmente parando.
– Desculpe. É mais normal do que parece. Mas, qual o seu nome? Parece ser bem velho para ser um aprendiz. O que você é?
– Sou Enigma. – Haivor nem fez menção de cumprimentá-lo.
– Um Adesir? – Klausos assentiu. – É melhor do que um aprendiz. Se conseguiu ficar mais de dois dias com Krill, já pode ser considerado um homem de sorte. Ele é complicado, mas depois que pega todas as manhas do que fazer, você se adapta rápido.
– Sem falar, comer quieto, lavar o rosto e dentes, banho. Não tocar em nada. – Haivor fez que sim com a cabeça. – Eu estou chegando perto.
Krill mantinha o queixo duro, queimando uma raiva nos olhos que divertia Klausos e Cristine.
– Mas, meu amigo – Klausos referiu a Krill – não posso simplesmente sair pela rua dessa forma. E não quero que pare de trabalhar para tomar conta de mim. Ainda posso caminhar, mas não quero sair na rua desse jeito.
Os dedos dele, Haivor também notara, estavam inchados e cortados, como os do Saun e do homem que havia deixado a carta no primeiro dia. Pareciam iguais, como se feitos pela mesma coisa.
– Posso providenciar que te levem sem ser visto. Seu quarto está intocado, e posso dar o outro a Cristine. Enigma quase não dorme, e quando dorme, fica no chão da sala.
– É verdade? Eu lembro que alguém costumava fazer isso quando mais novo.
Krill fez beiço, não gostando de ouvir aquilo.
– Eu estava projetando, não lendo. Ele dorme em qualquer canto e acorda muito cedo.
– É o meu trabalho. Cuidar de você.
Da porta, a empregada apareceu correndo. Haivor deu espaço para que entrasse, mas nem precisou. De onde estava, proferiu rapidamente.
– Senhor Krill, sua oficina. Alguém está lá.
– Não importa muito, eu não estou trabalhando hoje.
– Não, senhor. – A mulher falava com preocupação. – Ele está dizendo que colocará fogo em tudo se não vê-lo agora. Ele é um Arcano, senhor.
Krill estava para se levantar, mas Haivor esticou a mão.
– Eu cuido disso. Fique e conversem. Volto daqui a pouco.
– Tem certeza? – Klausos perguntou, sério. – Os Arcanos não gostam muito dos Adesir, pelo que me lembro.
– Por isso que ele vai querer falar comigo. Desviar a atenção da oficina para um Adesir. – Haivor saiu pela porta. – Krill, não saía dai.
– Você não é minha babá – o ferreiro gritou, tirando gargalhada dos dois. – Moleque atrevido.
II
De volta para a casa, Haivor ultrapassou a saída lateral e encontrou o homem com o robe largo e um cachecol ao redor do pescoço. Estava bem agasalhado, com um chapéu quadrado em cima da cabeça.
Era moreno, de lábios secos e um rosto fino.
– Posso ajudar? – Haivor perguntou ao se aproximar. Viu-o se virar. – O ferreiro Krill não está trabalhando hoje.
– E onde posso encontrá-lo, Adesir? – a voz era baixa, mas penetrante. – Tenho um assunto muito importante a tratar com ele. Tive que fazer um apelo a sua presença, mas vejo que mandaram outro guarda-costas.
– Ele está visitando um doente. E dizer que iria queimar sua oficina é um belo modo de chamar sua atenção. – Haivor deixou os braços cruzados, mas estava pronto a qualquer momento. – Sou mais secretário do que guarda-costas, então, diga e repassarei para ele.
– Não são palavras que quero demonstrar a ele. – O Arcano tirou um pequeno papel do bolso de sua calça e o fez flutuar. Haivor o pegou. – É uma data de entrega. Fiz um pedido faz um mês sobre um cajado. Ele disse que estaria pronto em uma semana, mas tive imprevistos pela minha vinda.
– Bom, repassarei para ele. Mas, não deve demorar para voltar. Quer esperar até amanhã ou vai querer colocar fogo na oficina?
O Arcano deu uma risada.
– Não farei isso. Só queria saber onde ele estaria. Voltarei a noite.
Haivor entregou o papel de volta para o Arcano, que partiu pela rua logo depois. Era um homem até simples. Diferente do que estava acostumado na Torre Mágica, ele era bem modesto. Prestes a retornar para a casa de Klausos, avistou Krill e Cristine com o homem em uma cadeira de rodas.
O choque foi repentino, e Krill rapidamente gritou da rua:
– Dê passagens, idiota. Não queremos que ninguém nos veja.
Cristine e Klausos riam e gargalhavam até entrarem no quintal da ferraria. Krill era o único que mantinha um tom sério olhando ao redor, buscando alguém que teria o visto.
– Ninguém estava na rua – disse, aliviado. – Agora, podem ficar comigo. Vou preparar o abafo do som e podemos conversar hoje.
Kraulos assentiu com um rosto ameno.
– Obrigado, amigo. De verdade.
– Pare com isso – Krill abriu a porta. – Venha, moleque, me ajude a colocá-lo para dentro.
Haivor ajudou, levando a cadeira para dentro. Lá, Klausos foi mostrado a casa como se nunca estivesse dentro. Ele e Krill ficaram horas conversando dentro da oficina sobre histórias antigas, aventuras sobre uma fuga contra uma velha maluca, sobre atirar pedras nos telhados dos vizinhos e como gostavam de ficar criando pequenos moldes de ferro com o antigo ferreiro da cidade.
Depois, Krill se tornou um aprendiz dominando facilmente a forja e Klausos ficou com as finanças da loja, expandindo o nome do seu melhor amigo até o apelido de Construtor chegar a Torre Mágica.
– Dali – continuava Klausos – Krill conseguiu contratos com tantas pessoas que o dinheiro entrava mais do que gastávamos. O problema é que eram tantos pedidos, que ele não dava conta sozinho, então, chamamos mais de dez assistentes e aprendizes. Aprenderam rapidamente e se tornaram leais.
– Eu sou um ótimo mestre – Krill concordou consigo, convicto. – São todos ótimos ferreiros hoje em dia.
– Mas, nenhum deles chega aos seus pés, tio – Cristine respondeu, com o sorriso doce no rosto. – Ninguém tem o seu título.
– Minha querida, título é só uma forma idiota de tentar diferenciar uns dos outros. Não é o que você faz… – Krill encarou o amigo.
– É como faz. – Klausos concluiu. – Eu sempre ouvia isso do antigo ferreiro. Ele era um bom homem, nos ensinou muita coisa. Todas essas armas, escudos, equipamentos, é como se fosse uma memória antiga.
Haivor nunca se interessou muito pelas histórias das pessoas. Era sem graça, até certo ponto. A história sofrida nunca deveria ser contada, mas eles falavam de coisas passadas, de dores e cicatrizes, como se fossem um evento engraçado.
Todos os seus pesadelos, de situações de perigo, eram revividas por sua mente que quase não se esquecia de nada. Se tornar um aprendiz piorou ainda mais já que trabalhava a divisão e concentração para não esquecer de nada.
As dores do passado deveriam ser engraçadas e contadas daquela forma?
– E você, Enigma? – Klausos o chamou. – Como era sua infância?
– Prefiro não falar sobre. Não foi agradável.
Krill fez uma cara feia.
– Como se fosse pior que a nossa. O que houve? Seu pai e sua mãe não eram casados e você nunca teve um quarto só seu? Ou seu pai brigava com você quando roubava uns biscoitos? Isso eu fazia sempre.
– E como fazia.
Haivor sorriu para os dois, mas negou.
– Ainda prefiro não falar.
– Ah, vamos, idiota. – Krill o pressionou. – Diga pelo menos como é o seu irmão. Você falou dele hoje cedo. Ele vive aonde?
– Em Sembon. – Haivor respondeu, indiferente. – Enterrado. Junto da minha mãe e do meu pai.
A boca de Krill estava aberta e ele soltou um ‘ah’. Haivor cruzou os braços e respirou meio fundo.
– Eu disse que não era uma boa história. Vou pegar um pouco de água, vocês querem?
Cristine se levantou tão envergonhada quanto seu pai.
– Vou com você.
Os dois saíram da oficina e foram para a cozinha. Haivor pegou um jarro no armário e entregou para ela. Pegou um segundo e foi até o barril do lado de fora. Encheu o primeiro.
– Meus pêsames – Cristine disse ao seu lado. – Pela sua família.
– Não precisa se preocupar. Meu irmão morreu faz uns cinco meses, e não lembro dos meus pais, só sei que estão mortos. – Passou o primeiro jarro para ela. – E não fico mais irritado com isso.
– Ele sabe que você virou um Adesir?
– Foi por causa dele que virei. – Haivor encheu o segundo jarro. Olhou para ela, aquele rosto de traços finos e olhos largos, concentrados. – Talvez, esteja orgulhoso.
– Tenho certeza que está. – Ela sorriu, os dentes brancos, alinhados. – Eu estaria. Você é uma boa pessoa. Krill gosta de você. Ele não gosta de ninguém a não ser a família dele.
Haivor desviou o olhar e concordou.
– Ele é diferente.
Cristine ergueu a jarra.
– Eles estão nos esperando. Vamos voltar.
Quando entraram na sala, ouviram uma tosse muito forte e o grito de Krill.
– A água. Rápido.
Cristine entrou correndo já enchendo uma caneca. Seu pai estava curvado na cadeira, tossindo muito, o rosto vermelho e uma mancha crescendo atrás de sua orelha. Ela se alargava constantemente e parecia inchar mais.
Mesmo bebendo, Klausos continuava tossindo, tentando colocar alguma coisa para fora.
Haivor largou a jarra rapidamente, passou pela Cristine e encostou na bolha. Liberou sua mana pela palma, correndo como uma manta, cercando a área infecciosa. A respiração dificultosa do homem começou a diminuir e ele a tosse diminuiu gradualmente.
Haivor continuou com a mão ali, usando a manta, até que ele conseguisse se recuperar completamente. Krill e Cristine ficaram alarmados ao ver que Klausos estava conseguindo se manter instável dentro de uma crise pesada.
Quando a manta se desfez da mão de Haivor, tocou a testa dele com o dedo e depois procurou o braço direito.
– O que você fez? – Krill perguntou mais curioso do que preocupado. – Como ajudou ele?
– Não importa. Quanto tempo você tem essa mancha aqui? – Apontou para uma em especial, no pulso. – É a mais velha?
– Isso. – Cristine respondeu pelo pai. – Ela apareceu faz três meses. Meu pai estava trabalhando com os documentos de uma exportação de material quando a crise atacou. Ele não conseguia nem respirar, tivemos que chamar um Arcano.
– E o idiota do Arcano disse que a doença era respiratória, não foi? – Haivor negou com a cabeça. – Que babaca. Aposto que ele cobrou bastante só pra dizer isso.
Krill chegou mais perto, várias vezes, afim de olhar o que Haivor encarava. Klausos permanecia respirando facilmente, mas virou a cabeça para Haivor.
– Por que ele mentiria sobre isso? Não iria ganhar nada a não ser dinheiro.
– Eu não sei, mas não é respiratória. – Haivor encostou em uma das bolhas. – Seu braço e dedos inchados, cortes na pele e manchas. É uma doença de plantio.
– Plantio? Tipo, plantas e flores?
– Isso. – De dentro do anel, tirou um pequeno frasco com terra dentro. – Essa é a Terra Negra de Sedan, eu peguei um pouco porque ela custa caro e a Torre Mágica não gosta de dar as coisas para os aprendizes. Ela ajuda na circulação de sangue depois que misturada com a água.
Cristine ainda encarava o lugar onde a bolha deveria estar, mas foi completamente anulada.
– A bolha não some do nada, some?
– Depois que você fizer o que estou falando, elas vão começar a sumir.
O frasco foi deixado na mão de Krill. Cristine e Klausos estavam claramente contentes, mas Haivor ainda permanecia bem indiferente.
– Quero saber quem é esse Arcano que visitam vocês. Eu gostaria de conversar com ele.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.