Capitulo 3 - Dádivas e Maldições (II)
Haivor armou tudo no mesmo dia. O dracar foi tirado do lado de fora da casa e queimado. Cross ficou irritado porque demoraram anos para conseguir traduzir um barco que conseguisse chegar até o Estreito. Mas, Haivor não. O projeto do dracar estava gravado em sua mente como uma cicatriz ficava marcada na pele, não poderia esquecer dele.
Todos os seus projetos, cada um dos pergaminhos, era apenas uma forma de relembrar de onde veio e para onde queria ir. Uma fonte de motivação pessoal que o impulsionava a nunca voltar para a vala, nunca mais.
E com esse preceito, ele queimou o navio com todos os rolos de seu quarto. Nada além de um espaço aberto sobrou dentro das quatro paredes. O vazio do seu peito já era esperado, então se conteve para não ficar socando a terra como Cross fazia.
– Está envergonhando a morte do nosso barco – ele disse. – Você jurou que não ia fazer nada quando eles voltassem.
Ainda olhando pro chão, Cross nada respondeu.
– Você prometeu – Haivor reforçou. – Não vai fazer nada.
– Não vou.
– Ótimo. Levanta-se, eles estão vindo.
A mudança drástica da postura de Cross mostrou como estava irritado e centrado. Ele estava usando sua malha grossa que sempre vestia quando enfrentava animais selvagens e bestas sanguinárias pela ilha. Seus olhos cruzavam como espadas, prontas para dilacerar o batalhão inteiro que chegava.
Era Ercha na frente, montado em um cavalo. Como Havior havia dito para Cross, Monich não iria voltar para seus braços. Não naquele dia.
O capitão de Bustap desmontou e bateu na roupa pesada antes de tomar caminho até os dois. Seus olhos foram para o lado da casa, onde antes estava o dracar. Suas sobrancelhas tremeram, mas sua reação foi a mais branda possível. Haivor nunca saberia que ele estava atrás do barco, não sem tocá-lo.
– Senhores – anunciou ao se aproximar. – Sinto informar que minha irmã teve de ficar para resolver alguns assuntos importantes de meu pai.
– Poderia ter mandado um mensageiro para fazer isso – Cross rebateu com raiva, e recebeu um olhar do irmão. Ele brandou a voz. – Não precisava vir aqui para avisar.
– Creio que a situação é bem mais complicada do que isso. – Ercha segurou um pouco para continuar, com um tom mais astuto. – Na verdade, não é muito complicado. Eu pensei que fazendo um papel mais simples, de questionador, os dois poderiam me ajudar, mas vejo que fizeram um trabalho um tanto quanto… calorento.
De braços cruzados desde que Ercha se apresentou, Haivor respondeu:
– Você viu um barco e achou que os rumores de que alguém conseguiu cruzar o Estreito de Helmeth foi o nosso. Vi como ficou olhando para ele ontem, mas estamos tão decepcionados quanto você. – Ele mostrou descontentamento. – Eu trabalhei duro, por quase um mês, e ele quebrou antes mesmo de chegar ao lago.
Se Ercha tinha caído, não demonstrou.
– Muitos desistiram ao longo do tempo – Ercha disse. – Criar um barco que atravesse o lago e enfrente as correntes continentais seria uma dádiva. Apenas o Imperador possuí homens habilidosos assim, mas se alguém da ilha conseguir, seria um perigo.
– Achei que todos estivessem fazendo tentando sair da ilha para terem uma vida melhor.
– Se todos saírem da ilha, não vai ter ninguém para cuidar dela. – Ercha era direto, mas até esse discurso impressionou Haivor, não Cross. – Uma criação dessa colocaria o monopólio do continente ameaçado, mesmo que um pouco.
– Ou poderia ser usado como uma moeda de troca.
Lá estava, a sobrancelha trêmula. Não por muito tempo, só o suficiente para que Haivor soubesse que estava pressionando sua ferida aberta.
– Eu acho que uma moeda de troca deveria ser um pouco mais brilhante. Um barco não faz muito o tipo de mercadoria para pessoas importantes. – Ele até tentou sorrir. – Se vocês queimaram, deve ter sido porque tinha sido um desastre. Ele parecia bem inteiro ontem.
– Rachado por dentro. – Cross balançou os braços. – Todinho. Não dava nem pra colocar o remo.
– É uma pena. Cross, o inverno está chegando, pretende começar as caçadas junto dos outros do vilarejo?
– Eu caço sozinho. Mas, pretendo levar Haivor comigo esse ano. Ele tem que aprender a sair de casa de vez em quando. – Levantou o queixo, curioso. – Por que a pergunta?
– Os rumores dizem que a mata está bem mais fechada do que o costume e as criaturas parecem famintas. Monich sempre disse que treina todos os dias com… esse pilar de madeira – apontou para o boneco de treino. – Achei que seria melhor se treinasse com algo mais real.
– Não tenho interesse.
Ercha não discutiu sobre, mas encarou a casa atrás dele. Estranhamente, ele parecia ainda mais curioso do que antes.
– Vocês fizeram uma boa casa. É de oliveira?
– Betânia – respondeu Haivor.
Ercha deu uma olhada no telhado e depois nas janelas.
– É bem diferente das que tem em Bustap. Seria ótimo ter mãos habilidosas como essas trabalhando para meu pai.
– A pessoa quem fez a casa já morreu faz cinco anos.
A resposta fez Ercha murchar. Haivor se divertia por dentro. O homem queria vantagem sobre qualquer coisa para usar contra eles. Ficou inspecionando a madeira, os degraus e até mesmo a terra ao redor da casa.
– Parece tudo tão simples – ele disse. – Mas, ao mesmo tempo, parecem tão diferentes da que temos em casa. A pessoa quem fez isso deixou algum tipo de papel com instruções ou algo assim? Eu compraria de vocês.
– A casa estava vazia quando chegamos aqui. O nome do homem era Ahin Mabuq, ele era um escrivão e estava aprendendo marcenaria. O coração dele parou no meio de um dia de verão, e os moradores da vila enterraram no cemitério.
– Triste saber sobre isso. É incrível que o destino pode nos condenar a viver uma vida inteira de miséria, e nos matar no primeiro de dia de riqueza. – Ele se virou para os dois. – Não acham irônico?
– Não – Havior foi seco. – A morte assusta somente aqueles que não vivem. Nós vivemos.
Ercha contemplou a resposta acenando com o dedo, andando de um lado para o outro.
– Então, acredito eu que nada mais temos a conversar. Mas, eu gostaria de um pouco de água para dar ao meu cavalo. Será que poderiam disponibilizar para mim?
Os olhos de Cross foram sentidos por Havior. O instinto do caçula estava aguçado, apitando.
– Quer de graça? – perguntou.
– Posso pagar, se quiserem.
Três dedos se levantaram.
– Três moedas de prata? – Ercha já tinha enfiado a mão no bolso quando viu Havior negando. – O que é então?
– Três moedas de ouro. Aqui e agora.
Não foi só Ercha que foi pego de surpresa, mas todos os soldados e o próprio Cross. Ninguém além de Havior estava sério.
– Pegamos essa água do rio com nosso esforço, e a usamos todos os dias. Ela é sagrada para nós. Pagamos um tributo para o Chefe de nossa vila além de nos sustentar.
– Isso é um pouco alto demais, mesmo para todo esse discurso.
– Então não dê água ao seu cavalo. – Havior deu de ombros, de qualquer maneira. – Eu não estou com sede.
Ercha caminhou de volta para o cavalo, com a cara fechada e montou no animal.
– Isso foi um golpe duro – disse. – Vim aqui apenas para demonstrar minha preocupação a vocês e entregar uma mensagem, e nem mesmo água é nos respondido. Uma ofensa.
– A vida é dura – Havior cruzou os braços. – Eu gostaria de saber quando Monich voltará.
– Por mim, não voltaria nunca. Ontem achei que eram homens diferentes dos porcos que vivem naquele chiqueiro, hoje entendo que todos são iguais. Medíocres.
– Qual chiqueiro se refere? O meu ou o seu? Pelo que você falou, minha casa é muito mais limpa que a sua.
Ercha apontou rapidamente para os dois e depois para a casa.
– Ateiem fogo. Queimem tudo.
A respiração de Cross se tornou pesada ao ponto da fumaça cinza poder ser vista. Ele se segurava ao máximo para não ir pra cima de Ercha.
– Irmão, uma facada…
– Não. – As flechas foram erguidas e suas pontas acendidas a chama vermelha. – Precisamos disso. Eles tem a vantagem.
Cross se segurou ao máximo. As flechas começaram a passar por cima dos dois, acertando o teto de palha e se espalhando com rapidez. O trabalho de anos destruído em minutos. Cada risco no céu era uma nova chama alastrada na madeira.
Em menos de cinco minutos, a casa se tornou o ponto mais luminoso da ilha. Madeira caía e a palha voava, as brasas se camuflavam no meio da fumaça negra que emergia ao céu nublado. Havior apenas assistia. Nada em seu coração além de uma pequena faísca de dor.
– Agora, nem chiqueiro vocês possuem.
Ercha se retirou marchando com seu batalhão.
Eram homens como ele que Haivor passou a desgostar durante sua vida. Estava com quase vinte e sete anos, tinha feito muito para pessoas diversas de cidades e vilarejos, até mesmo para Bustap, e mesmo assim, por causa de uma única palavra ou uma sentença delas, um sentimento mudava.
Aquela casa tinha sido seu refúgio quando estava irritado, onde aprendeu a controlar suas emoções para que não ficasse igual seu irmão. Foi onde conheceu seu irmão e também onde leu as primeiras páginas de um livro.
Suas memórias lembranças moravam ali.
Acordou somente quando a mão de Cross tocou seu ombro. Seu irmão também encarava as chamas, mas Haivor podia ver que não era raiva que estava passando dentro dele, era tristeza. Essa era sua casa, antes mesmo de ter sido de Haivor, e agora, destruída.
Os dois nada disseram por uma hora inteira.
I
No meio da mata, uma cabana tinha sido erguida entre as árvores, usando a própria floresta como camuflagem já que as paredes foram infestadas de musgos e trepadeira. Quem estivesse andando por ali teria que afiar muito a visão para conseguir diferenciar os tons de verde.
Um homem já tinha entrado naquela floresta tantas vezes durante sua vida que estava habituado em localizá-la. Duas semanas atrás, a casa dos dois irmãos foram queimadas, Cross carregou o que conseguiu recuperar e Haivor carregou apenas um pequeno machado na mão, quebrando galhos secos pelo caminho.
O tempo que ficaram na cabana foi o suficiente para melhorarem a porta e as paredes. Cross adorava ver o irmão pensando e usando sua estranha habilidade. Tinha feito com ele, e sentados juntos, via os dedos de Haivor tocar a superfície da madeira incontáveis vezes.
E repentinamente, parava.
– Madeira não é bom para construir casas. Precisamos de algo mais sólido.
Cross correu para fora de casa, pegou um balde de água, jogou na terra, pegou a lama com as mãos e jogou no baldo, correndo de volta. Sentou-se e esperou. Os dedos tocaram a lama como fazia com a madeira.
– E ai?
– Mole demais. – Havior tirou uma das mãos e pegou a madeira. – Achei que depois de endurecer a lama, ela ficaria como… pedra.
– Pedra? De onde tirou essa ideia? As vezes não sei de onde tu tira isso.
Ele pegou um dos casacos na mesa e colocou sobre si. Jogou um em seu irmão.
– Está ficando frio.
Havior vestiu, ainda sentado.
Os dois preparam a comida e fizeram a refeição em silêncio. Depois de uma hora, sentados olhando para o nada, um em cada canto, que ouviram passos do lado de fora. Cross já estava com o arco na mão quando a porta foi batida duas vezes.
– Sou eu.
A porta foi aberta. Oriun estava com um chapéu na cabeça e uma espécie de bacia de palha nas costas. Ele entrou rapidamente, jogando as coisas no chão e se aproximando da fogueira. Respirou fundo.
– Lá fora tá muito frio – reclamou com razão, sua mão estava branca. – Tá ficando pior. Não sei como vocês vão aguentar ficar aqui o Inverno todo.
– Temos planos para fazer outras coisas – Havior se sentou ao lado dele. Cross ficou do outro lado da fogueira. – O que conseguiu descobrir?
Cross conhecia Oriun desde que eram pequenos. Nunca teve muito contato com ninguém de Bustap, mas seu irmão fazia questão de conhecer e ajudar muitas pessoas. Nunca entendeu porque fazia tanto isso, mas depois de perderam suas casas, essa pergunta teve uma resposta.
Era como se tivessem uma divida eterna. Havior pedia um favor e ninguém poderia negar. Aos poucos, aqueles pedidos que as pessoas faziam no passado não eram meras construções de madeira como uma cadeira ou mesa. Oriun era o exemplo claro, a mãe dele sofria de uma doença nos ossos que a fazia chorar todas as noites frias.
A solução de Havior foi ir a floresta e achar uma erva que conseguisse amenizar aquela dor. Ele encontrou uma quantidade que a fazia dormir levemente e conseguisse se mexer bem melhor.
Por isso, não duvidou quando ele disse que conseguiria recuperar Monich de um acordo irracional como aquele.
– O Chefe Kanad está doente faz quase três meses. Tem algum tipo de doença na pele. O irmão dele tentou fazer um acordo com uma cidade, mas foi feito de bobo. Ele prometeu a própria irmã para que seu pai fosse salvo, mas ele fez contrato com Shok.
– Shok? – Havior repetiu, descrente. – O cara que tentou te enrolar com os remédios da sua mãe?
– Esse desgraçado mesmo.
Havior olhou para Cross.
– Traz ele pra cá.
Cross se levantou, encaixou o arco atrás das costas e os dois machados na cintura.
– Volto em um dia.
A porta se abriu e o grandalhão saiu. Oriun encarou Havior, aflito.
– Não acha que é perigoso deixar ele ir sozinho? Não estou dizendo que ele não é tão inteligente, mas você me disse que a relação do seu irmão é muito complicada.
– Ele precisa espairecer, a melhor forma de fazer isso é indo atrás de uma presa. Cross não irá matar a não ser que sinta sua vida ameaçada. – Ele fez uma menção para que o amigo continuasse. – Preciso de mais detalhes.
– Kanad está doente. O filho dele, Ercha, fez esse acordo doentio e colocou a vida da irmã em perigo. Então, tentou contatar um antigo amigo de outra ilha, que disse que tem um remédio que usaram em um senhor com a mesma doença que o pai dele.
– Funcionou. Por isso, ele queria o barco.
– Ele procurou por todo lugar, até que ouviu alguém dizer que estava em uma das bordas do lago, perto do Estreito de Helmeth, e viu um barco completamente diferente do que estavam acostumados, que navegava sobre a onda e não empinava com a vela. Conseguiu ultrapassar o Estreito e saiu pelo mar, vagando por quase uma hora inteira. Ele disse que viu duas pessoas gargalhando e levando o barco depois para o meio da floresta, em direção ao vilarejo mais pobre de Senbom.
– Polgos.
– Onde vocês moram. – Orin concordou. – Agora, ele tá tentando achar a pessoa de todas as forças possíveis. Até mesmo foi pra Reim atrás daqueles caras que fazem expedições de barco pelos rios. Não encontrou nada nem ninguém que tivesse escutado sobre o barco que cruzou o lago.
– E pra quem Ercha deixou a irmã dele?
– Essa é a parte engraçada da história. Shok disse que ele tinha um conhecido que sabia curar aquela doença, mas esse conhecido tinha um nome diferente, começava com Y.
A face de Havior se escureceu.
– Ele falou sério?
– Bastante. Mas Ercha se encontrou com a pessoa, disse que faria qualquer coisa, e o cara pediu a irmã dele. Por alguma razão, a mulher tem alguma coisa que atraiu ele.
Nenhuma criatura que tinha sua inicial com Y ou W eram feitas pelos deuses. Eram guiados por um mundo sombrio, onde o sol não era recebido. Eram homens e mulheres, até mesmo animais, cegos por natureza, mas que enxergavam de alguma forma.
Seus rostos eram comuns, mas seus olhos, eles eram cobertos por carne, não existindo nada no lugar.
– Eles dizem que são criaturas feitas pelos demônios – Orium abaixou a voz com mais frio. – Que no Inverno, não sentem frio e que caminham de pés descalços no gelo. Quando eu soube que Shok era amigo desse cara, eu agradeci por ter te conhecido antes de fazer qualquer acordo com ele.
– Se Shok está envolvido com esse tipo de coisa, então Ercha deveria saber. Se ele ainda está disposto a entregar a própria irmã mesmo tendo uma chance de conseguir o remédio em outra ilha, está fazendo sua jogada de permanência.
– O que isso quer dizer?
– Se o Chefe Kanad morrer, ele vai se tornar o próximo Chefe e terá o apoio de um dos Absolvidos. Eles se chamam assim, Oriun, não são demônios.
Havior não sentia o mesmo medo dos Absolvidos como o resto do povo. Nasceram cegos e deformados, com uma capacidade de enxergar o mundo de maneira muito mais complexa do que a comum. A visão deles era por um outro sentido, como um cego normal era.
Apenas por viverem juntos, isolados, eram temidos. Eles já tinham falado com Cross uma vez, perguntando sobre uma madeira boa para ser usada contra ferro. Havior nunca entendeu a pergunta, mas achava fascinante.
– Mesmo não sendo demônios, fico com calafrios só de falar deles.
– Eu entendo. Pode passar a noite aqui se quiser, tem uma fogueira acessa e um bom lugar para dormir.
Oriun negou.
– Minha mãe ainda precisa dos remédios. Vim porque você pediu. Ela sempre fala que está com saudades de você. Apareça lá quando isso tudo que você está fazendo acabar.
– Irei. Obrigado, amigo.
Havior o abraçou, e assim como sempre acontecia, pôde ler claramente a mente do homem. Antes de Oriun sair, ouviu seu nome.
– Caso precise de alguma ajuda com a perna, me diga. Ajudarei com o que precisar.
Oriun não respondeu, mas deu uma risada.
– Você é a pessoa mais estranha que conheço, Havior, mas é uma das mais interessantes também.
Ele saiu, fechando a porta.
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