Zemlya depositou um pouco de pasta sobre o nariz do homem e esperou seu mestre fazer o mesmo na boca e nos dentes. O cheiro do caldo verde de agnolia era horrível, seco e amargo, como se roupa suja estivesse sendo seca diante seu rosto. Os olhos ardiam e uma dor de cabeça invadia os pensamentos.

    Para se protegerem, Ptitsa entregou a Flor Seca, um antídoto para o cheiro horrendo. Ela bloqueava o cheiro com um odor doce agradável. No entanto, o quarto ficou interditado onde somente os dois e Oiajim trabalhavam em conjunto.

    – Acha mesmo que vai dar certo? – Oiajim não era dos mais confiantes nos procedimentos alternativos do direito da Casa de Repouso. Já tinha visto muitas coisas acontecerem por experimentos mal intencionados. – Ele não vai morrer, né?

    – Não morreu esse tempo todo. Duvido que vai ser agora. – Ptitsa pôs uma toalha pequena e molhada nos olhos do homem e tapou a barba grossa de seu queixo com outra. – O caldo já está correndo pelas veias dele.

    – Temos que esperar? – Zemlya perguntou olhando atentamente para a reação do homem na cama. – Ele nem se mexeu ainda.

    – Silêncio, agora – ordenou Ptitsa. Ele sentou-se me um banco ao lado do homem e esticou as duas mãos acima do peito dele. Calmo, respirou o mais fundo possível e entoou: – Faça correr aquilo que não esta mais em nossa posse. Faça sair aquilo que não nos pertence. Ouça a voz externa, ouça a voz interna. Arranque de si, arranque.

    Três segundos, quatro. Dez. O espasmo do peito do homem para cima assustou Oiajim e Zemlya que deram um pulo para trás. Ptitsa permaneceu calado, focado no rosto pálido do homem. Ele estava ficando pior, mais branco ainda.

    Era ruim.

    – Zem, fique do outro lado e segure o braço dele – falou rapidamente. – Rápido, rápido. Isso. Agora, segure o mais forte que puder. Oiajim, as duas pernas. Prenda o máximo que puder.

    Os dois obedeceram, e esperaram com lentidão. Outro espasmo surgiu, mais forte e da boca do homem um som estranho, agudo o suficiente para quebrar um vidro, escapuliu. Logo em seguida, um outro berro, grave, de uma criatura das trevas.

    – O que é isso? – a testa de Zemlya estava soada e seu rosto amedrontado. – Mestre?

    – Segure, rapaz. Não solte por nada nesse mundo.

    Ptitsa reforçou ainda mais seu canto, fazendo suas palavras duplicarem e saltitarem no ar, como se outros dez deles estivessem cantando dentro do quarto. O espaço entre as vozes de Ptitsa e os gritos faziam do curto silêncio deformado, vazio e oco.

    O braço esquerdo do homem se levantou, e Zemlya o pressionou de volta na cama. As pernas começaram a se debater. Ptitsa sabia muito bem o que uma Maldição fazia a uma pessoa, mas não sabia que aquele homem estava tão preso a elas.

    Ancorado em um abismo onde não queria mais voltar, era como seu antigo mestre dizia quando era vivo.

    Suas mãos tornaram a mover para a testa dele e a outra para o peito. Ele as abaixou até tocarem os dedos na pele. Os espasmos começaram a aumentar, mais e mais.

    – Convulsão.

    – Não. – Ptitsa gritou antes de Oijaim largar as pernas dele. – Se soltar agora, vamos todos sermos levados. Temos que acabar esse procedimento, está quase no final. Ele vai acordar, a mente dele está ativa, eu sinto.

    Além da mente, Ptitsa estava muito convencido de que no peito do desconhecido, existia núcleos que não deveriam estar ali. Eram três médios e um grande, como se fossem partes de uma engrenagem única.

    Um Arcano carregava consigo um único Núcleo. Os Magos retiravam suas magias dos livros e Eras passadas. Bruxos usavam a própria natureza, focados intimamente a elas, para usufruir de seus feitos. Um Adesir era uma parte de cada, tão pouco focado em núcleo que nem pareciam ter.

    Mas, esse homem, por algum motivo, carregava quatro, sendo que três deles não respondiam a sua benção. A maldição estava acorrentada a esses três núcleos sólidos, que puxavam uma grande quantidade mana do maior, o que deveria ser o central.

    Ou seja, a quantidade de mana no interior deveria ser enorme para alimentar tanto os outros núcleos por um ano e meio. Era uma maldição de fortalecimento. Ninguém usaria isso em si mesmo, nem mesmo para testes. Um Feiticeiro ou Xamã, qualquer que fosse seu título, faria de terceiros sua cobaia.

    O homem, de repente, parou de se mexer. A grito agudo e o grave ergueram-se como um tambor de guerra, lutando entre si. Ptitsa engoliu em seco. Eram vozes diferentes, de criaturas diferentes, em um mesmo corpo.

    Suas lembranças não eram tão velhas, pois reconhecia o grito que ecoou da cidade de Algorisha no dia caótico. Uma Normadie, criatura das trevas, que foi levada a morte por um Adesir. Ptitsa ainda tinha dúvidas até aquele momento, não mais.

    – Ele é o Adesir morto.

    O silêncio se instaurou por meros segundos, o suficiente para Oiajim processar o que ele tinha dito.

    – Espera, espera. Está dizendo que ficamos um ano e meio cuidando da pessoa que fez aquela cidade ser mandada aos ares? – A voz dele não era tão calma quanto o rosto impassível. – Está realmente querendo dizer isso?

    – Eu não sabia que era ele até ouvir os gritos – Ptitsa omitiu uma parte da verdade. Bateu na própria perna, limpando o suor da palma das mãos. – Fiquei imaginando porque encontrei ele naquele dia tão longe da cidade, mas vendo que ele foi amaldiçoado, tenho certeza.

    – Amaldiçoado? – Zemlya praguejou, tremendo. Soltou o braço do homem bem devagar, com medo. – Isso é contagioso, mestre?

    – Nunca é. Maldições sempre possuem um alvo direto. Se eu estiver certo, e claramente estou, ele matou a Normadie, mas ela lançou uma parte da alma dela para dentro do seu corpo. Por isso, ele está dormindo tanto tempo.

    Oiajim ainda estava irritado, mas balançou a cabeça, entendendo.

    – Ele estava tentando se adaptar a alma dela. O ferimento do braço, ele não fecha por causa disso?

    – Sim. – Ptitsa segurou o braço direito do desconhecido. Enfaixado de cima a baixo, mas com algumas pequenas partes ainda ensanguentadas. – Ela instaurou uma marca corporal também. Isso dificulta ainda mais o processo.

    – Deuses. – Oiajim se jogou em uma cadeira, segurando o próprio rosto. – Tem noção de quanto uma maldição dessa é dolorosa? Então, ele derrotou a Normadie mesmo.

    – E destruiu uma cidade – Zemlya também estava chocado.

    – Não deveriam se preocupar com isso. – Casualmente, Ptitsa ficou de pé. – O mais afetado não foi o corpo ou a mente. Ele tem problemas muito maiores. Peça para alguém vir trocar as toalhas e colocar ele para beber água. Em menos de seis horas, ele vai acordar.

    I

    Era escuro demais. O frio que se unia a não ver nada o deixava ainda mais aflito. No dia a dia, o sol estava sempre contra seu peito e costas. Quando chovia, as gotas colidiam contra sua face e deslizavam. Aos ventos, o sopro balançava seus cabelos. Na escuridão, o frio penetrava seus ossos, doendo ao ponto dele querer gritar.

    Foi quando percebeu que sua voz não saía de jeito algum. Estava cego, surdo, mudo. O tato era o único modo de conseguir permanecer acordado. Não lembrava de quanto tempo estava naquele estado, mas a escuridão não diminuía. Era constante demais, perfurante demais.

    Me tirem daqui.

    E algo gritava de volta:

    – Não. Você se colocou aqui. Não pode sair. Não. Não.

    A cada berro, o braço direito era dilacerado, sua pele arregaçada na direção do pulso, pronta para retirar suas veias, carne e ossos. A voz misturada entre um grito funebre e um berro dolorido, grave e aguda.

    – Não. Não. Não.

    – Acorde.

    Haivor abriu os olhos, a escuridão não sumira. Piscava com lentidão, com dificuldade, fazia tempo que não abria e fechava as pálpebras.

    Calor.

    Seu peito não estava protegido por roupas. Algo quente o rodeava de um lado para o outro.

    – Acorda, Enigma.

    Ele puxou o máximo de ar possível e levantou em um tranco violento. Sentado, levou a mão ao peito e depois a cabeça. Foi, então, que sentiu o braço direito arder tanto que soltou um gemido alto de dor. O membro enfaixado tremia bastante.

    Segurou o próprio braço, envolvendo no peito. E aos poucos, começou a soltar as lágrimas dos olhos.

    – Aquele inferno – disse, chorando. – Eu consegui sair. Merda. Doí tanto.

    – Um ano e meio. – Um velho de grande barba espessa estava em frente a cama, o observando. – Para ser exato, um ano, sete meses e seis dias. Você esteve em coma por tanto tempo que boa parte das pessoas queria te mandar para a cova.

    Haivor não o reconhecia, mas sua voz, era a dele a quem ouvia quando estava na escuridão. E não era somente da ultima vez, mas desde que se manteve preso, alguém sussurrava algo, como uma ordem, que o mantinha consciente.

    Era esse homem quem tinha o tirado de dentro daquele inferno escuro.

    – Você tem muitas perguntas, eu sei, eu sei. – Apaziguou com a mão. – Mas, eu tenho assuntos demais para tratar agora. Pensei que você acordaria em seis horas, mas levou quase uma semana. Sabe o que isso me custou? Muito trabalho e muito tempo.

    – Onde estou?

    – Como eu disse, muitas perguntas. Faça o seguinte, coma e beba bastante. Amanhã, esse lugar vai ser levado a um outro posto. De lá, poderá ser tratado melhor. – O velho era bem informal, mesmo usando uma couraça de caçador bem estranha com penas nas costas. – Se comporte, meu aprendiz virá aqui para ajudar com o que precisar.

    Haivor esperou, mas o velho permaneceu o encarando.

    – Deite logo ou quer que eu te empurre e te prenda na cama?

    – Ah, desculpe. – Haivor inclinou-se para o travesseiro. – Obrigado, seja lá quem seja você.

    – Me chame de Ptitsa. Outros gostam de me chamar de Velha Ave. Seu nome, no entanto, não pode ser falado aqui. Sei o que você é, mas faz muito tempo desde que você adormeceu e muitas coisas mudaram.

    Haivor não entendia muito bem, mas seu nome de Adesir, era o que ele se referia, não podia ser mais usado.

    – Tem algum outro nome além desse?

    Em sua mente, o berro de Agnes, a Normadie, soou tão firme e forte que parecia estar ao seu lado:

    Você ainda não esqueceu seu nome, não é?

    Sua cabeça latejou ao lembrar.

    – Não precisa se esforçar muito – disse Ptitsa da porta. – Coma e beba, entendeu?

    – Sim e… – o homem já tinha partido – obrigado.

    Um ano e meio. Ele permaneceu calado enquanto o rapaz de nome Zemlya chegou com um prato de carne e uma caneca de água. Um ano e meio caído em uma cama. Se isso já não fosse ruim, seu braço direito latejava ao ponto dele não conseguir segurar o garfo ou a caneca.

    Ele fechou o punho, irritado consigo mesmo. Aquela luta contra Agnes, ela tinha sido um tiro bem dado contra o seu próprio ego. Ele perdeu tudo o que tinha lá, toda a dignidade e também integridade como Adesir ou homem.

    A morte daquelas pessoas foi sua culpa. Todas elas.

    – Não fica irritado. – Zemlya abaixou e pegou o garfo, limpando em uma toalha. – Tem muitos pacientes que recuperam o movimento da mão depois de algum tempo. Precisa fazer exercícios constantes já que ficou muito tempo parado.

    Haivor entendeu, mas nada respondeu.

    – Meu mestre cuidou bem de você – o rapaz continuou. – Muita gente disse que você estava quase morto, mas ele viu que você tinha alguma coisa. A intuição dele nunca falha, mas sério, como você conseguiu sobreviver aquela demônio?

    – Que demônio? – Haivor o encarou, pela primeira vez. – Está falando de que?

    – Da Normadie, claro. – Zemlya parecia desconfiado. – Depois da cidade ter sido destruída e todo mundo ver que foi a Normadie que tinha sido levada, os Adesir e Arcanos fizeram uma nota dizendo que ela era uma criatura que tinha mais de cem anos.

    – Cem anos?

    Sua surpresa surpreendeu o rapaz.

    – Você… parece não saber disso.

    – Eu não sabia. – Lorde Gruu veio a sua mente na mesma hora. Aquele miserável tinha dito que ela não tinha mais de algumas décadas de vida. – Quando enfrentei ela, pensei que estivesse dominando a luta, mas não sabia da idade. Tive a chance de matá-la, mas fui arrogante.

    – Mestre Ptitsa diz que os Adesir são arrogantes por natureza.

    – Ele não está errado. Isso custou caro. – Olhou para o braço enfaixado. – Bem caro. Você disse que vou recuperar meus movimentos do dedo e a força, mas sabe por que não consigo recuperar minha mana?

    O rapaz travou, perturbado.

    – Melhor conversar sobre isso com meu mestre. Ele vai explicar melhor.

    – Não sabe ou não quer falar?

    – Os dois.

    Haivor suspendeu o interrogatório, tentando pegar o garfo com a mão esquerda e comendo de uma maneira completamente diferente. A comida escapulia de seu controle, o que o deixava ainda mais frustrado.

    Se manteve na cama após o almoço, tendo que beber dois copos de água por hora e usando um caldo verde nojento que fedia a mijo na faixa do braço direito e nas pernas. Os ferimentos espalhados pelo seu corpo estavam cicatrizando mais rápido do que antes, somente pelo grande buraco na pele no membro direito que não.

    Teve que esperar até que a Velha Ave entrasse trazendo uma muda de roupas. Era a sua, dada por Mestre Grison. Sentiu saudades dele ao ver a roupa passada e limpa, como se nunca tivesse enfrentado inimigos antes. Intocada de uma ponta a outra.

    – Pedi a uma amiga que costurasse as partes rasgadas. O tecido foi fácil de encontrar, mas não tinha magia nenhuma imbuída. Enfrentou uma Normadie sem uma defesa mágica? Só um Adesir para ser tão maluco assim.

    – Já falei que não sabia que ela era tão poderosa – argumentou, tentando cruzar os braços. Não conseguiu. – Se eu soubesse que ela… se…

    – Se, se e se. – Ptitsa bufou. – Pare de se lamentar tanto. Arrependimento é só um jeito idiota de dizer que não aceitamos as nossas escolhas. Cuide para que sua mente não comece a te tirar do sério, seu humor está alterado por causa do trauma da ferida.

    Se sentou, esparramando a barriga larga nas costas da cadeira.

    – Você já percebeu que não consegue armazenar magia. Zemlya me falou. Lembra de algo final contra a Normadie?

    – Só a magia que usei. Um círculo mágico de cinco pontas, verde. A sensação de vibrar junto do ar e acertá-la. – Era como se estivesse lá, revivendo novamente. – E o sorriso dela, da Agnes.

    – Isso não é novidade, lembrar dela é até comum já que essa marca feia que foi deixada em você é dela. – Ptitsa coçou a têmpora. – Você foi imbuído com uma Maldição.

    Maldição. Uma magia sombria de um mundo onde a luz não existia. Algo tão sombrio que foi deixado em Eras passadas e nunca foi trazido para a atual. Lera em um livro, na Torre Mágica, uma vez.

    – Maldições já são fortes e poderosas por natureza, mas quem deixou essa marca ai fez um trabalho bem feito. A Normadie deixou uma parte da alma dela em você, mas como ela gostava tanto de você, também fez esse negócio feio ai.

    – Uma parte da alma dela?

    – Ela criou um vínculo com você. Maldições podem ser por Alma e Corporal. Sozinhas já fazem um estrago, juntas são piores ainda. Sei que não é do feitio dos Adesir olhar para dentro de si, mas seu núcleo mágico está deformado, normalmente, ele deveria ser uma estrela solitária, mas agora é como um planeta, e tem diversas luas.

    Haivor fechou os olhos. Dentro de si, enxergava aquela escuridão novamente, uma companheira nada amigável. O seu núcleo estava lá, irradiado, brilhante, grande o suficiente para lançar incontáveis comandos e moldes. Só que, ao redor deles, pequenas esferas tão brilhantes quanto sugavam sua energia.

    Essas eram as luas que Ptitsa falava.

    – Isso que está vendo é um efeito de maldição. Eu achava que ter uma maldição já era suficiente, mas ter três delas. – Assobiou, impressionado. – Isso que é ser azarado.

    – Como é possível? – Haivor não entendia como tinha chegado a isso.

    – É simples. A mais antiga, pelo que vi, é datada de quando você era bem pequeno. Algo em torno dos seus primeiros anos de vida. Não sei o que é, mas tenho certeza que tem a ver com sua magia oculta. Não faça essa cara, não é novidade para mim. A segunda data de dois ou três anos, eu acho, algo mais sombrio, uma criatura. Chuto que foi um Absolver de Primeiro ou Segundo Domínio.

    O velho era bom em suposições.

    – Como consegue acertar essas datas?

    – Eu sou perito em muitas coisas, núcleos mágicos é uma delas. Essa última não é tão pior quanto a do Absolver. Ela suga mais de você, porém, é menos destrutiva. Seu núcleo mágico é denso o suficiente para suportar as duas primeiras, mas a terceira é demais. Na teoria, elas estão sugando mais do que você consegue produzir, isso faz com que você não consiga produzir magias, mesmo as mais básicas.

    Tentou formar uma centelha elétrica, porém, só um estalido liberado rangeu no ar. Tão fraco quanto o próprio Haivor.

    – Isso é o efeito de sua maldição. – Ptitsa nada estava com medo ou impressionado. Parecia até normal. – Hoje em dia, muitos sacerdotes fazem benção para livrar de pequenas pragas, mas esse seu problema é bem pior. Tirar isso de você vai ser bem ruim, e se já não fosse pior, sua magia oculta te deu uma dádiva.

    – Não sinto muita confiança nas suas palavras.

    – E nem deveria. Eu só estou supondo desde que entrei aqui. Algo em suas veias me diz que você tem a capacidade de absorção de mana.

    O Filho das Folhas, ou era algo assim, Haivor não se lembrava muito bem dele. Sua memória parecia estar partida em vários fragmentos diferentes.

    – Todos os seres vivos possuem essa capacidade de absorver a mana do ar, da terra e das coisas ao redor. Sua capacidade é mais afiada e mais forte, consegue tirar quase cinco vezes mais rápido do que os outros. Essa absorção é o que tem te mantido vivo até agora.

    – Então, eu deveria estar morto?

    – Para mim, deveria ter morrido no momento que foi enfiado essas duas maldições. – Sua voz era coerente com a faceta estranha. – Ninguém sobrevive a três maldições. Ninguém sem um propósito. E se você está vivo, acredito que o destino quer assim.

    Haivor não podia discordar.

    – Mas, eu preferia estar morto do que não poder usar meu braço.

    A Velha Ave manteve o tom sério:

    – Morrer é um processo. E você acabou de sair de um deles. Reviveu. É isso. – Acertou a perna com um tapa. Suas bochechas estava vermelhas. – Está quase na hora do café da tarde. Se junte a nós dessa vez. Conheça seus vizinhos de quarto. Agora que acordou, esse lugar vai ser reservado a outro.

    – Agradeço a hospitalidade. Zemlya disse que tive sua atenção todo esse tempo.

    – Gosto de coisas sem sentido. Sabendo o que você tem, perde a graça toda. – Ele deu uma risada seca. – E tenho que lembrar que muita coisa mudou desde que adormeceu. Já escolheu um nome?

    – Sim. – Era o único que restava. – Me chame de Haivor.

    – Haivor. – Ptitsa conjurou o nome com grande ferocidade. – É um nome bem simples, mas robusto. Me lembra dos antigos soldados do Exército do Verão. Se arrume e venha, tente caminhar um pouco.

    Com a saída do velho, Haivor sentou-se na lateral da cama e se levantou. A magia de cura que aprendeu com Foton estava fazendo efeito. Essa, pelo menos, não precisava ser externalizada. A mana era liberada e reforçava seus músculos. Tirou a roupa e vestiu a sua. Cerca de um ano sem estar em posse de suas propriedades, era como se tivesse sido exilado. A tranquilidade de estar em si era reconfortante.

    Em um fraca desatenção, desequilibrou-se e teve que segurar na parede. Suas pernas bambeavam. Efeito do tempo desacordado.

    Respirou fundo, tentando manter-se de pé e caminhou passo a passo até a porta. Abriu e saiu para um estreito corredor que ligava a uma grande sala. Diferente do seu quarto, o lugar do lado de fora era mais escuro e frio, com as paredes mais úmidas e cheiros variados no ar.

    Crianças brincavam de correr e passaram por ele, dando voltas e retornando para a sala. Tateando a parede, foi até lá. As camas eram todas simples, menos de um metro do chão, suportadas por pedaços de madeira e separadas por panos largos bem limpas.

    No entanto, o lugar em si era meio sujo. Haivor conhecia um lugar parecido com esse; Senbom. Sua antiga vila era tão precária que quando algum nobre do Grande Continente chegava lá, um quarto era decorado diretamente para que se sentisse em casa. Ali, viu mais da sua própria casa do que o Grande Continente.

    – Haivor – Ptitsa o chamou de uma outra porta, com Zemlya e um curandeiro que se chamava Oiajim, já o tinha visto passar pelo seu quarto uma outra vez. Se aproximou. – O café da tarde vai começar. Eu queria que se juntasse a nós na mesa do lado de fora.

    – Ele mal consegue andar – Oiajim interveio, casualmente. – Submetê-lo a esforço logo de cara só vai piorar seu quadro.

    – Claro que não. Sinto o vigor dele. – A Velha Ave era bom com as palavras. Oiajim só revirou os olhos. – Aqui, uma caneca. Beberemos café e comeremos pão. Hoje é um dos poucos dias restantes para ficar nessa pocilga.

    Haivor tomou a caneca e os seguiu para o lado de fora. Os ventos gelados o pegaram na mesma hora. Bateu o queixo ao ver o branco da neve caindo e as cristas de gelo espalhadas pelas copas das árvores secas ao redor da casa de pedra.

    Era um assentamento pequeno, podia ser menor que uma vila, com casas de pedras únicas, de telhados quadriculados e uma rua de terra que ligava todas até onde estavam, a tal Casa de Repouso.

    – Tome. – Zemlya esticou um casaco grosso feito de pele, que Haivor aceitou de bom grado. – O clima perto da muralha é sempre bem estranho, e muda sempre. Aos poucos, você se acostuma.

    – Muralha?

    – Estamos quase no meio do Grande Continente. – Apontou o dedo para a esquerda. – Consegue ver aquela parte escura depois da névoa? É a Muralha Oeste.

    Ele estava quase dez dias da cidade de Algorisha, mais de duas semanas do Vilarejo Imperial a pé. Tinham carregado ele por muito tempo para até ali. Tinha sorte de ter sido Ptitsa e não um maluco qualquer.

    – Ah, finalmente. Olivier Garno, seu pato manco.

    Velha Ave recebeu de braços abertos um gordinho homem de óculos, cabelos lambidos e velho como ele. A diferença de altura era imensa. Ptista era talvez duas vezes maior do que Olivier, mas os dois se abraçaram como se fossem um só.

    – Porco – Olivier retribuiu com um sorriso. – Faz quase dez verões que não te vejo, e você me chama para esse lugar no final do mundo? Eu soube que era você quando me falaram. Só um maluco para querer minha ajuda.

    – Nossas histórias sempre prevalecem, meu amigo. Venha, sente-se comigo e se esquente.

    Oiajim e Zemlya sentaram nas laterais junto de Haivor, deixando ambos velhos cara a cara.

    – Quer ir direto aos negócios? – Olivier tirou um pequeno rolo do seu anel, espalhando-o pela mesa. – Seu pedido foi muito exigente, mas mudar uma grande área da Muralha é duro, até mesmo para nós dois juntos.

    – Precisaremos de algum tipo de investimento. Eu já fiz alguns preparativos para esse esquema. Raul e Adam vão se juntar a nós dois, em breve.

    Esses nomes fizeram Oiajim suspirar fundo e Olivier gargalhar.

    – Vai trazer a equipe inteira? Eu nunca deveria ter ido para Patrono.

    – Olivier é o arquiteto do Palácio Real – Zemlya comentou baixo. – Ele e meu mestre tem uma ligação estranha. Parece que são amigos faz muito tempo.

    – Nunca perguntou a eles sobre isso? – Haivor contrapôs. – Afinal, ele é o seu mestre.

    – Ele sempre troca de assunto. Diz que não é importante.

    – E não é – Oiajim concluiu. – Tomem seus cafés e continuem ouvindo.

    Haivor beliscou o líquido negro e sentiu o gosto forte descer pela sua garganta. Se existia alguma parte dele que ainda dormia, despertou na hora.

    – Pretendo me mudar nos próximos dias. Não quero que Luzin venha colocar o olho na gente. Faremos a viagem juntos, o que acha?

    – A saideira? Isso vai ser emocionante. Estou com você, Porco. Faremos um ótimo recinto para seus homens e se eu gostar, fico por um tempo. Um lugar fortificado é melhor do que uma cidade cheia de gente rabugenta que não aguenta um copo de rum amargo.

    – Você ainda toma isso?

    Os dois continuaram conversando sobre a vida. Haivor tentou focar nas palavras deles, em alguma história que dissesse sobre o passado da Velha Ave ou do Olivier, um Arquiteto renomado de Patrono. Nada. Nem mesmo um conto antigo de suas aventuras juntos.

    Falavam sobre casualidades banais, sobre o gosto da carne em determinada época do ano, sobre o céu que mudava o clima a cada meia temporada do mês, e sobre ervas e plantas medicinais. Zemlya e Oiajim já tinha desistido de entender e se foram para dentro da Casa de Repouso, Haivor seguiu seus passos, meia hora depois de não entender absolutamente nada.

    Deixou o quarto reservado para outra pessoa, alguém com mais prioridade; uma garotinha que tinha um caroço no tornozelo até o joelho. Ela ardia em febre, adormecida. Carregava por Oiajim e um outro homem.

    O clima não era muito diferente com os outros pacientes, cada um deles parecia carregar uma doença ou algum tipo de ferimento estranho. E as carcaças de alguns soldados, sentados conversando, era prova de que não afetava somente os pobres e fracos.

    Aquela Casa de Repouso estava longe de tratar de doenças como gripe ou doenças de pele. Estava longe de serem doenças normais.

    – Melhor descansar – Oiajim apareceu da porta. – Mesmo que você consiga se colocar de pé, precisa de nutrientes de quando está acordado para se manter saudável. Aqui tem uma coberta e não tire esse casaco de pele se não quiser passar frio a noite.

    Haivor tomou aquelas coisas para si e agradeceu.

    – Apenas não volte a ficar doente – Oiajim disse, sua face marcada pelo cansaço. – Já temos problemas demais para gente de menos.

    – Vocês tratam muitas pessoas. – As camas e paredes feitas de lençóis chegavam a quase cinco dezenas, esticadas de ponta a ponta. Havior havia visto uma escadaria que levava a um segundo andar, que supostamente deveria haver mais pessoas. – Por que vivem tão longe dos centros urbanos?

    – Parei de me perguntar isso quando descobri que não importa muito se você está perto ou não de uma cidade para pegar alguma coisa. Essas pessoas precisam de ajuda e não podemos removê-las daqui.

    – E como vão migrar para a Muralha Leste desse jeito?

    – Só deus sabe o que Ptitsa está pensando, mas já vi isso acontecer. Uma ideia que pode mudar o rumo das coisas. – Ele abriu o braço. – Essa casa, por exemplo, uma ideia que ele teve sozinho e que hoje é mais cheio do que uma ala de curandeiros em Patrono.

    – Aquele velho é astuto – Haivor admitiu mais para si do que para ele. – Dá pra ver nos olhos dele.

    – E é por isso que a gente não vai contra as ideias. – Oiajim o fitou por um tempo. – Ele disse que você era importante, e que valeria a pena manter conosco. Uma boca a mais para comer é sofrido, Haivor, então, tente entender um pouco do que fazemos aqui.

    – Claro, claro. – Era a única coisa que Haivor teve a responder. – Se eu puder ajudar com algo. Vocês cuidaram de mim por um ano inteiro, é mais do que minha obrigação devolver isso de algum jeito.

    – Um ano e sete meses. – Oiajim deu uma risada seca. – Mas, quem é que está contando, não é?

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