– O limiar entre a sanidade e a loucura – Haivor ouvia a voz ressoar em uma das quatro partes de sua mente. Era Ioni. Revivia uma de suas memórias deitado em sua cama. – Ele existe, mas está longe de ser assombroso como dizem. Ali, onde habita os demônios, também está o mar da sobriedade e compaixão. Eu estudei minha vida inteira para chegar a não sentir nada pelos outros, mas hoje, encontrei alguém a quem posso confiar.

    A frente dele, sua aprendiz, a mulher que tirou a vida de Cross.

    – A vida é tão valiosa que outras pessoas estariam dispostas a sacrificar tudo para tê-las.

    Agnes, então, ressoou contra o discurso do Absolver.

    – A vitalidade que emana dos seres vivos tende a ser mais deliciosa e apreciada do que a própria vida. A energia que reside em nós nos torna e se molda de acordo com nossos desejos mais profundos. Vivemos pouco tempo para compreender exatamente o que somos, mas tudo o que queremos para essa vida é o que nos faz sermos diferentes uns dos outros. A vida é diferente, a vitalidade também.

    O Filho das Folhas, Juno, estava de costas, observando o céu sem nuvens.

    – A mana é tão bela quanto a própria vida, mãe. Tenho certeza de que alguém um dia poderá dizer que somos feitos de mana assim como somos feito de vitalidade. Me sinto preso mesmo reconhecendo isso. Esse limite não é um risco no chão ou uma porta, é um abismo que não estamos dispostos a aceitar cair. Eu não quero isso para mim, quero desafiar a mim mesmo e entender o que está do outro lado.

    E então, Cross, de braços cruzados, diante do abismo.

    – Você não precisa disso. Não se renda a nada que não entenda. Você é esperto demais, irmão.

    – A vida ou a morte – Ione disse. – Escolha sabiamente.

    – Perder não é uma opção. Nunca. – Agnes mostrava seu sorriso lascivo. – Nunca nessa vida.

    – Não deveria existir um limite para pessoas como nós. – Juno relaxou os ombros, aceitando a si. – Mas, forçamos nossa mente a não querer nunca ir adiante.

    Haivor esperava por Cross novamente. Seu irmão não veio.

    – Domínio. – Algo soou mais profundo em sua mente. – Domínio.

    Haivor estava cerca de uma semana deitado na cama, desde o ataque da mulher chamada Carlotta. Não tinha recebido visitas, nem mesmo de Lina. Sua mente não descansava nem quando dormia, querendo acender uma tocha de pura formalidade.

    Ele queria desenvolver sua própria formação mágica, criar suas próprias concepções da magia, e queria fazer isso usando todas as bases e dados possíveis já tirados dos outros. De Grison, Kralus, Lina, Ptitisa, Oiajim, Arcano Piey, Gruu, Ioni, Agnes. Todos o que tiveram contato com ele.

    Não deveria haver um limite na magia. Liberdade, era o que estava procurando por tanto tempo. Liberdade de fazer o que quisesse.

    – Haivor – uma voz o chamou de fora do quarto. Era Zemlya. – Mestre Ptitsa quer falar com você.

    – Entre.

    A porta foi aberta e a Velha Ave adentrou com sutileza, fechando-a atrás de si e indo até uma das cadeiras. Sentou-se confortavelmente, puxando uma xícara de chá para si.

    – Melhorou? – questionou, enchendo a xícara. – Seu estado físico não era dos melhores.

    – Acho que sim. – Haivor não estava com vontade de conversar sobre assuntos triviais. Ele tinha usado magia de cura em si tornando os ferimentos rasos. Nem era um problema a se questionar. – Eu estou só pensando no que vou fazer daqui pra frente.

    – Está tudo bem se sentir mal.

    Haivor inclinou a cabeça um pouco pro lado.

    – Mal? Por que eu me sentiria assim?

    – Ninguém pode salvar todo mundo, é impossível. Temos que fazer aquilo que está ao nosso alcance. – Ele bebeu do chá. – Seguir em frente é a nossa melhor opção, e isso também leva em consideração que temos que nos aperfeiçoar mais ainda. Como pessoas.

    – Carlotta fugiu porque hesitei – Haivor voltou a encarar o teto. – Sei muito o que deveria ter feito, e vingado todos aqueles que morreram. Eles tinham família, tinham pessoas para quem voltar. Eu me sinto da mesma forma que Algorisha.

    – Sei que sim, por isso estou aqui.

    Ptitsa retirou um pequeno livro de dentro de seu casaco velho. Era de capa negra, grosso e com folhas amareladas.

    – Nesse mundo, Haivor, existem pessoas que estão fardadas a serem mais do que apenas pessoas, mais do que Magos, Bruxos, Adesir, Arcanos. Elas estão destinadas a serem o que quiserem. Infelizmente, eu não tive a oportunidade de ser assim. Estou preso em ajudar os outros, esse é o meu propósito de vida. É o que me faz me sentir vivo. Você, por outro lado, ainda não descobriu isso. E não só eu quem concorda com isso.

    – Os outros?

    – Todos eles. – Ptitsa sorriu. – Todos eles concordaram que você é diferente, só você parece não entender isso. O que fez semana passada é diferente de tudo o que já tínhamos visto. Kusha não queria acreditar, mas você a deixou sem palavras.

    Haivor não respondeu. Ouvir elogios vagos sobre sua movimentação, sobre sua magia. Ele assistiu sua luta várias vezes depois de ter derrotado Carlotte e achou mais de dez maneiras de ter matado ela antes do golpe suposto final.

    Ele tinha hesitado porque a liberdade de seus movimentos não parecia ser dele. Era uma união dos que habitavam em sua mente. Ioni, Agnes, Juno e Cross. As memórias não eram atormentadoras, porém, reflexivas.

    – Achamos que você está perdendo tempo conosco, aqui.

    Essas palavras o acordaram.

    – O que quer dizer?

    – O sul é um lugar muito pequeno comparado ao norte – Ptitsa explicou. – Aqui, você terá apenas dois tipos de situações. Correr e lutar. Não pode ser nada além de um peão para os Adesir, e na sua condição, nunca saberemos quando seu corpo estará apto a lutar novamente. Está perdendo seu tempo em uma luta que nem mesmo é sua.

    – Vocês são meus amigos, eu luto por uma causa justa.

    – Luta porque acha que é justa. Porque ainda não viu como é o outro lado da moeda. Eventos ocorrem dessa forma, e acho que ninguém deveria decidir seus desejos mais íntimos. – Ptitsa entregou o livro para ele. – Kusha, Pojan e Kralus fizeram anotações sobre a mana que você deveria conhecer, algo que te faria ser melhor, mais forte, mais habilidoso. Pessoas como você só perdem tempo com pessoas como nós.

    – Pare de dizer essas coisas – Haivor esbraveceu. – Ninguém pode dizer que o que faço é errado.

    – Mas, você sabe que seu coração pede outra coisa mais importante do que estar aqui conosco, mais importante do que partilhar uma vida com alguém. A sua prioridade nunca foi a justiça, esse não é um pecado que você carrega consigo.

    – Pare, agora.

    – Não. – Ptitsa bebia o chá calmamente. – Sua prioridade é aprender sobre tudo. Pojan e Kusha me disseram que você tem uma habilidade rara, mas eu já sabia. A leitura de qualquer coisa. Eles estão errados, Haivor. Essa não é a sua habilidade, nunca foi.

    Haivor se sentou na cama.

    – Sua verdadeira habilidade é adaptação. Uma magia oculta que te fornece capacidades para superar qualquer obstáculo a cada vez que se chega em um limite, mas ela é diferente de todas as outras. Quando seu limite é traçado, deve ser possível ultrapassá-lo para se chegar do outro lado. Se não houver nada que te faça ir além, então, nunca chegará mais longe. Aqui, onde está agora, você enfrentou Carlotta, uma Imperadora de Sangue, criatura tão antiga que nem mesmo se sabia que estava viva, e a fez retornar. Seu limite foi quebrado, e outro foi trajado. Agora, deve seguir em frente, até que você consiga chegar até do outro lado.

    – Uma busca incessante por algo que nunca será compensado – Haivor compreendia muito bem. – Eu sei o que é isso, mas não quero deixar tudo para trás.

    – Isso não é algo que você possa decidir. Estou aqui justamente pela decisão que a Muralha tomou. – Ele se levantou, deixando a xícara na mesinha. – Como representante do conselho da Muralha, digo por todos os envolvidos em nosso círculo pessoal, que você, Haivor ‘Enigma’ está proibido de entrar em nossas casas. Seu futuro não pertence mais a nós, nem mesmo pertence ao sul onde seu título de Adesir está restrito. Sua única forma de seguir em frente…

    – Não faça isso, Ptitsa – Haivor se levantou. – Por favor.

    –… para o norte. Lá, encontrará as respostas que procura, respostas que talvez nem mesmo precisem de perguntas. Nada mais resta para você aqui. Darei um dia, apenas. Depois disso, o conselho será responsável por mandá-lo para fora as forças.

    Haivor perdeu o chão.

    – Isso é tudo. Cuide-se.

    Ptitisa deu as costas e saiu pela porta lentamente sem olhar para trás.

    Haivor abaixou a cabeça e levou a mão ao rosto. Tanta vergonha. Quase com trinta anos e queria chorar por estar partindo.

    Aquela tinha sido a despedida mais seca que recebeu na vida, porém, a mais responsiva. Estava indo embora porque seu futuro não estaria mais envolvido com aquelas pessoas. Ou seja, todos estavam o deixando ir.

    Ele não tinha utilidades ali.

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