Grison não parava de pensar no que tinha visto há dois dias. A mente de um homem não muito jovem repleta de estranhas melhorias sobre os comandos e magias utilizadas que um dia ele tanto esperava aprender. Mudanças e melhorias que nem mesmo um Adesir teria coragem ou ousadia de buscar.

    Como alguém sem um pingo de conhecimento do mundo da mana teria capacidade de pensar em tantas coisas incríveis? Um sistema de faíscas próprias, sem precisar invocar um comando único, ou até mesmo moldes feitos diretos de um elemento para o outro, ignorando umas das Leis do Eletron.

    Nem mesmo quando ele estudou na Biblioteca, a maior reserva de livros mágicos do continente, ele teve acessos a tais representações como viu. A noite se aproximava as três da manhã, Grison não pregava os olhos porque estava focado na pontada em seu coração.

    Como ele sabe essas coisas?

    Perguntas que ele não deveria estar tendo. Era um renomado Adesir, um dos poucos que sobrou para buscar novas remessas de Absolver no continente. Não poderia se perder em um homem, não quando muitas vidas dependiam disso.

    Sua missão era conseguir ler um Absolver completamente e assim entender como a mente e seus objetivos funcionavam. O mundo não teria tanta sorte quanto décadas passadas quando uma ilha inteira foi dizimada e o atual Asumir os salvou.

    O acaso era só uma pontada de destruição.

    Por isso, estava diante do templo. As paredes rachadas e com lodo, a névoa que permutava ao redor, as árvores mais grossas e a escuridão, aquele frio que cristalizava a grama e criava picos de gelo nos galhos.

    Grison estava acostumado com o ambiente hostil, feito justamente para assustá-lo. Felizmente, seu antigo mestre sempre mencionava o medo que os Absolver tinham sobre a luz do sol e o fogo. Era o medo que um dia os deixou vulneráveis.

    – ‘Acender’. – Sua voz entoou tão forte que as paredes balançaram e o gelo nas árvores foram completamente quebradas. A porta espatifou em duas partes e um círculo de chamas carmesins envolveu Grison. – ‘Estique’.

    Uma das pontas do fogo se atirou para dentro do buraco onde as paredes estavam antes, descendo. Grison caminhou junto e parou onde o risco descia. Uma escadaria suja soprando uma aura maligna de dentro.

    – É realmente aqui.

    Ele desceu. Nada lá dentro era assustador quanto a própria aura que emanava do fundo. Continuou atento, com seus dedos prontificados para entoar qualquer comando, mas ao chegar no fundo, deu de cara com outra porta, essa feita de ferro.

    – ‘Entortar’.

    A pressão do ar envolvido por Grison tomou o ferro e o amassou ao ponto de se tornar uma bola de quase dez centímetros. Dentro, um imenso salão clareado por tochas nas pilastras perto das paredes. Um imenso desenho no chão e outro no teto, símbolos antigos e feitos por uma coloração vermelha e negra.

    Ao andar mais um pouco, uma pressão vinda do solo o atingiu. Grison se pegou preso, o ar estava sendo atirado para cima, travando sua respiração e seus dedos. Fechou os olhos e mexeu o pé, uma imensa pressão vinda de cima recaiu sobre ele.

    Arfou quando a situação se normalizou.

    – Armadilha de supressão – disse. – Não lembro de usarem isso.

    – Para pessoas que não são bem-vindas aqui, é mais do que o necessário.

    Grison expandiu seus sentidos até os limites do salão, encontrando uma figura parada ao lado de um trono enferrujado. Era uma mulher de vestido negro comprido e um medalhão no pescoço. Ele nem precisou perguntar, onde deveriam estar seus olhos a carne havia sobressaltado, a deixando um aspecto sombrio.

    Um Absolver.

    – Você deve ser o senhor Grison Bayb – ela disse, surpresa. – Eu nunca achei que encontraria esse lugar antes da segunda semana. Meu mestre não costuma errar nas suas provisões.

    – Sua mana – Grison estava confuso. – Você não é um deles. Não completamente.

    – Ainda sou apenas uma aprendiz. – Ela abaixou a cabeça, respeitosamente. – Assim como um Arcano é para uma Adesir. Eu estive estudando muito a política dos Arcanos, até mesmo suas formas de treinamento.

    – Então, esse lugar é um santuário. – Grison praguejou para si. – Ele não está aqui.

    – Não. – A mulher colocou o livro em cima de uma mesinha no canto do salão. – Mas, eu estou. E qualquer um que tenta entrar nos domínios do mestre Ioni é meu inimigo. Me chamo Luna, um Primeiro Círculo.

    Agora Grison entendia. Ele não poderia sentir a mana de uma Absolver de Primeiro Círculo justamente porque ele era do Sexto Domínio, aparentemente também do Sexto Círculo. No entanto, era justamente por esse fato que a Absolver se tornava perigosa.

    Grison não podia sentir os comandos da magia dela, não antes dela criar.

    – Atualmente, senhor Grison, eu entendi que os Adesir escolhem um nome simbólico para que vocês não precisem dizer seus verdadeiros nomes. Sempre me perguntei o motivo disso, bom, até cerca de algumas semanas quando tive a honra de matar meus primeiro humano. Ele era forte, lutou ferozmente, e tinha uma estranha sensação de vitória no rosto, eu usei muitos comandos nele, tantos que fiquei até mesmo abismada, ele conseguiu suportar todos até eu rasgar seu peito com aço quente. Ele gritou o nome de uma pessoa.

    Lentamente, Grison puxou a manga longa do casaco até o cotovelo, e instaurou dois anéis em seus dedos.

    – Continue – ele disse. – E o que ele fez depois disso?

    – Ele disse que não estava com medo de morrer. – Luna deu uma risada. – Foi uma das coisas mais interessantes que vi na minha vida. Eu nunca deveria matar uma pessoa, mas senti vontade de fazer isso com ele. Disse que quando seu irmão voltasse, eu morreria.

    – Você matou o irmão de Haivor.

    A boca dela se abriu.

    – Isso, esse era o nome dele. Um nome tão bonito.

    – Se divertiu bastante. – Grison pôs um cordão no pescoço e olhou para Luna. – Estou pronto. Quer começar?

    – Sua calma é opressora. Meu mestre nunca disse que um Adesir era assim. – Os passos dela pararam quando ficou de costas para o trono. – Eu farei o que for preciso para divertir o senhor também.

    – Não será preciso. – Círculos de cor azulada começaram a surgir ao redor de Grison velozmente, cada uma com estranhas letras e hexágonos, com linhas ligando uns aos outros. No centro de tudo, o próprio Grison. – Nós trocamos nossos nomes para que monstros como vocês sintam medo só de ouvirem.

    Luna girou a cabeça rapidamente para o alto. Os círculos estavam se expandindo por cima, criando um teto apenas de comandos.

    – Usando sua magia de ar antes, eu expandi o espaço entre as moléculas. Usando a minha própria magia de ar, eu uni todas elas e aqueci. – O anel de seu dedo anelar brilhava. – Palavras tem poder. Observe. ‘Chuva’.

    Uma nuvem negra tomou conta dos círculos mágicos. Todo o salão começou a receber uma brisa suave, e aumentou rapidamente, arrastando os pés de Luna um pouco para trás. E então, um flash. Dezenas de relâmpagos começaram a descer exponencialmente em seguidas, todos mirados para o mesmo ponto.

    Grison continuou observando os raios explodirem o solo e sumirem, e no segundo seguinte, outros surgirem. Esperou por quase dez segundos, a fumaça e poeira estavam alastradas, mas seus sentidos expandidos localizavam a mulher.

    – Sei que está ai. Esse foi um comando de escala menor, duvido que você tenha sido morta por ele.

    Realmente, Luna havia conjurado uma barreira vermelha em cima de si. Seu braço direito, que tocava o escudo, tinha sido eletrocutado. Marcas vermelhas e riscos negros tinham deixado seu membro quase inutilizado.

    – Cross. – Grison tirou um anel. Ela não respondeu, respirando rapidamente. – Esse é o nome da pessoa que você matou. Um Adesir tem o direito de matar seu inimigo da maneira mais rápida possível, mas terei paciência com isso.

    O braço de Luna tremia, mas ela não conseguia fazer nada além de ranger os dentes.

    – A eletricidade que paralisou seus braços não são comuns. Eles tiram até mesmo o controle dos ligamentos e veias. – Grison esticou o braço na direção dela. – Um lugar no fim do mundo, com pessoas pobres lutando para sobreviver dia após dias. Essa foi sempre minha maior raiva, o motivo de vocês escolherem pessoas que nunca podem fazer nada contra vocês. Ah, e não se preocupe, farei com que entenda minha raiva diretamente.

    Um círculo abaixo dos pés de Luna cresceu mais de dez metros. Ela não teve tempo. Uma barreira retangular a prendeu rapidamente. E então, água começou a subir, a submergindo. Ela ficou água até o pescoço, e Grison parou o comando.

    – O que está fazendo? – a voz dela não era a mesma de antes. Estava com medo. – O que é isso?

    – A caixa da surpresa. Essa água é chamada de Rinaro. Tem uma propriedade mágica de conseguir absolver e reagir a qualquer propriedade mágica feita. Se, por exemplo, eu fizer assim… ‘Eletrifique’.

    A cor do círculo abaixo dela mudou para amarelo e os raios transbordaram a água. Luna soltou um grito desesperado enquanto seu corpo inteiro era arrebatado de um lado para o outro. Ele parou os raios.

    – Ou… ‘Queime’.

    A água mudou sua estrutura e fogo se espalhou por dentro. Engolida pelo carmesim brilhante, seus gritos ecoavam. Grison só parou quando a voz de Luna sumiu no ar. O Adesir não sentia um pingo de empatia por ela.

    – E posso fazer mais umas dez coisas iguais a essa.

    Quando o círculo mágico se desfez, Luna caiu de peito. Cabelos queimados, a roupa rasgada e a pele quase como se tivesse sido triturada por um rolo compressor. Grison, do outro lado, apenas retirou o segundo anel do dedo.

    Suspirou, meio chateado.

    – Realmente achei que você seria problemática. Sua arrogância em ser aprendiz de um Absolver era claramente apenas soberba. Sem um pingo de experiência em batalha, dominada completamente por magias e comandos fracos. Se tivesse encontrado com Haivor, ele realmente teria te matado. Você quem colocou aquela mensagem na mente do irmão dele, deu sorte de não ter sido ele quem veio aqui.

    Tremendo, Luna ergueu a cabeça e virou-se de peito para cima.

    – Acha que meu mestre realmente queria matar aquele pequeno ratinho? – Ela deu uma risada dolorosa. – Ele matou meu amigo. Apenas devolvi o presente. Fiz com que sofresse até o último estágio.

    – Está pagando por isso agora.

    – Pagando? Você é realmente ignorante. Meus planos são pequenos comparados ao de meu mestre. – Ela parou de falar quando Grison se aproximou. – Meu mestre nunca iria deixar que entrasse aqui se não fosse por uma boa causa. Ele vê mais do que todos nós. A morte de um homem, o nascimento de outro. Nada disso importa para ele. Eternidade. É isso que realmente faz sentido para mestre Ioni.

    Aquelas palavras não eram da boca para fora. Grison abaixou ao lado dela. Se não fosse por ser uma Absolver, sua aparência seria semelhante a de uma nobre do Grande Continente. Poderia ter uma vida fácil, uma família, até mesmo uma boa vida.

    Primeiro, Grison tirou o medalhão do peito dela, guardou. Depois, tirou a luva.

    – Verei o que é importante para seu mestre.

    E tocou sua testa.

    I

    Haivor tinha certeza de que quem tivesse matado seu irmão estaria morto, mas isso não o impedia de estar diante de uma das criaturas mais bizarras.

    Bustap era uma cidade pequena, mas não era uma cidade tão pobre. O lugar para onde ele estava indo anteriormente era a casa dos Lio, onde iria diretamente conversar com Ercha sobre o ocorrido. Se conseguisse dizer para ele que seu irmão estava morto, ele poderia reconsiderar muitas coisas. Talvez, o ataque na floresta não seria um problema.

    Queria dizer que não se importava mais com os problemas dele, e esclareceria que estava voltando para sua cidade. A morte de seu irmão mexeu com sua cabeça, e Grison estava constantemente dizendo que as habilidades dele poderiam ajudar muitas pessoas.

    Faria isso. Voltaria para a cidade, tentaria ajudar as pessoas.

    Na hora que chegou no pátio externo da casa dos Lio, um frio de congelar a arma ultrapassou por ele. Suas roupas pesadas não puderam conter tanta gelidez, e tremulou como se sua pele fosse jogada contra as montanhas de gelo.

    Teve que parar e encarar ao redor. As pessoas também estavam na mesma situação, porém, nenhuma delas procurava a estranha fonte de ar que soprava naquela direção. Era temerosa, assustadora. Ele próprio tinha sentido isso, quando chegou na cabana onde encontrou seu irmão.

    Era a mesma aura, a mesma secura, seus lábios duros e a garganta rangendo.

    O Absolver estava ali.

    Não era definitivo nem claro, mas seu instinto nunca o deixava de lado. Pessoas andando, roupas comuns, os comerciantes longe, anunciando alguns alimentos e objetos básicos, alguns pescadores e marinheiros conversando. O padrão era o mesmo… menos o encapuzado perto da parede da casa dos Lio.

    Ele não mostrava seu rosto, braços e pernas cobertos por um manto longo e grosso. Até mesmo seus pés estavam cobertos. Haivor podia estar completamente enganado, mas nunca deixaria aquele desgraçado fugir. A vida do seu irmão tinha sido tirada, a esposa do seu irmão, o chefe Kanad. Quantos mais ele faria de vítima? Grison tinha dito que mataria quantos pudesse, porque era o que criaturas como ele faziam.

    O ódio dentro de Haivor era tão intenso que ele nem mesmo tocou que estava indo na direção do Absolver. Quando a criatura moveu a cabeça na direção dele, o dedo de Haivor se mexeu criando uma faísca vertical de quase um metro. Ele a segurou e lançou.

    Brandindo a mão, os dois dedos ossudos levantados, o ar ondulou várias vezes, parando a faísca no ar.

    – Então, é você. – Ioni puxou o capuz da cabeça, mostrando seu rosto magro, o topo de sua cabeça lisa e a falta dos dois olhos. O golpe atirado por Ioni tinha sido vaporizado no ar ao mesmo tempo que todas as pessoas que observaram já corriam. – Por alguma razão, você ainda está vivo. A morte de seu irmão não foi o suficiente para que sua mente fosse corrompida? Achei que a sua vingança contra os Lio faria de você um ótimo aprendiz.

    – Achou errado.

    Haivor estalou os dedos e as ondas do ar colidiram contra o escudo do próprio Ioni. O Absolver viu seu escudo desmanchar, mas não se alterou em nada. Era bem claro como as ondas deveriam se portar para interferir nos ataques dos oponentes, mas Haivor não tinha nada além de suposições.

    Para vencer uma luta contra uma criatura que era chamada de demônio, deveria tocá-lo. Leria cada um dos movimentos que ele treinou em sua vida, cada uma dos comandos, e usaria contra ele. Conseguiria uma vantagem, saberia cada passo.

    Como se aproximar, essa era a pergunta importante.

    – Uma ótima performance – Ioni disse. – Treinou bastante Moldação. Grison te deu belas dicas. Criar rachaduras no próprio ar, alterando para segmentos de areia.

    Como ele consegue ver que mudei uma pequena parte do ar? Haivor estagnou no lugar.

    – Não mostre sua inexperiência logo de cara, rapaz. Se no meu lugar estivesse alguém do seu nível, claramente isso seria minha derrota. Mas, você não enfrenta uma pessoa qualquer. Longe disso, eu sou Ioni Albueno, um Absolver de Quinto Círculo. Você, nem Arcano é. Essa é a diferença. Se eu fizer assim. – A ponta do seu dedo mirou para o solo. – Tudo o que você pretende fazer acaba. É esperto, mas nem tanto. O que fará agora?

    – Honrar o nome do meu irmão, hoje.

    Num arrastar de braços, mais de dez fragmentos elétricos surgiram, cada um deles mais extenso que o outro. Haivor mudou seu foco para eles, cada um dos seus ataques seriam direcionados de maneiras distintas.

    Grison havia dito:

    – Um Arcano treina para criar estruturas, e para isso, precisamos imaginar como elas devem ser. Quanto mais forte for a sua imaginação, mais fácil será o molde dos comandos.

    Se eu pensar em uma cadeia de ataques diferentes, feitas de golpes diferentes, ele vai ter que se proteger de modos diferentes. Essa é a minha brecha.

    – Acha que assim pode me derrotar? – Ioni imitou os movimentos de Haivor. As dez faíscas longas de um lado rivalizavam contra mais de uma centena do Absolver. – Acha que assim fará o nome do seu irmão será lembrado?

    – Não tenho mais nada a perder agora. Quando eu estiver morto, poderei me encontrar com ele de novo. Falarei de como mantive a cabeça erguida para te matar, e direi o quão covarde é uma criatura que sequer pode lutar de igual para igual com ele.

    A boca de Ioni se alongou em um sorriso.

    – Patético. Claramente é um humano. ‘Flechas’.

    A centena de fragmentos disparou na direção de Haivor. Ele se concentrou ainda mais. Não importava se estava prestes a morrer. Faria valer a pena. Faria o nome de seu irmão ser lembrado. Faria com que tantas vezes o sorriso dele, a raiva que ele sentia por não ser o melhor caçador, por não ter casado com Monich, por não ter feito o melhor que pôde, faria tudo o que um dia Cross disse valer a pena.

    Tudo por um único momento.

    – ‘União’.

    Todos as linhas brilhantes diante seus olhos se misturaram, quebrando-se e partes e unindo em outras. Seus pés colidiram contra o chão e a terra foi marcada por outro comando ‘Elástico’. O ar ao seu redor também ‘Areia’.

    E os raios disparados colidiram contra a sua barreira eletrificada. Haivor segurou cada um dos movimentos de frente. Era como um escudo e seu braço era pressionado a cada instante. Não fechou seus olhos momento algum, encarando o Absolver enquanto ele criava ainda mais disparos.

    Estava apenas brincando, podia ver que seus dedos só mexiam de um lado para o outro, mas nada além disso. Se quisesse, realmente poderia matá-lo.

    – Persistência é uma palavra muito maltratada, sabia? – O Absolver então conjurou um grosso bastão feito de energia. – ‘Junção’. Observe como a magia é invocada em pessoas como eu. E fique desapontado consigo mesmo. Ouça minha voz e caia na realidade, Haivor. Ainda está vivo porque eu quis, porque eu quero. Farei com que se torne meu, você tem talento, um talento que só pode ser refinado por mim.

    Ele jogou o bastão.

    – Nem fodendo.

    Haivor soltou o escudo elétrico e bateu ambas as palmas. O atrito causou uma segunda onda de choque, levando as faíscas inacabáveis e o bastão a pararem no ar, voltando apenas alguns centímetros.

    Ele ativou os comandos ao redor dele. ‘Elástico’, no solo, subiu para o escudo, o tornando mole. ‘Areia’ se uniu com a elasticidade, criando pedras na frente. E Haivor usou ‘Impulso’, como último comando.

    Quando o tempo do atrito se desfez, todos os disparos se uniram em um único ponto; o próprio escudo. Com a elasticidade, todos os golpes começaram a ser engolidos, e criarem uma ponta para dentro, onde Haivor estava. Ele continuou focado. O bastão também entrou, estufando a barreira ao seu limite

    – Meu irmão treinou seu corpo para suportar a magia que eu possuía. Fiz com que ele entendesse que pessoas como eu também existiam. Eu podia ler seus pensamentos e saber como seu corpo reagia, mas sempre fiz o mesmo comigo.

    Ioni parou todos os disparos feitos. Dessa vez, ele criou um círculo mágico de cor vermelha bem escuro diante de seu peito.

    – Sua voz se tornou irritante para mim, Haivor.

    – Espero que se lembre de mim, então, quando atravessarmos o outro lado da vida. – Ele socou a ponta do escudo, onde todos os disparos tinham sido agrupados. – Te vejo no inferno, idiota.

    Tudo voltou para Ioni rapidamente. Ele criou uma barreira ao redor de si, engolindo cada um. Haivor fez uma volta, saindo da linha dos ataques e respirou fundo.

    – ‘Repetição’.

    Um novo escudo elétrico ganhou forma e poder. Ioni sentiu algo estranho em seu peito. Não era medo. Isso ele não sentia. Desde que nasceu, sua natureza não permitia o medo irradiar sua mente. Era uma fraqueza humana. Na busca por poder, usavam o medo como trampolim.

    Essa era a figura principal da raiz humana. Quanto mais eles desejavam algo, mais utilizavam de emoções negativas para alcançar esse objetivo. Nunca deveria se deixar levar por essa emoção. Depois do Quinto Círculo, apenas um Adesir poderia derrotá-lo.

    Olhando para Haivor e sua criação de múltiplas defesas elétricas, teve que erguer seu outro braço, criando uma segunda camada de círculos mágicos.

    O corpo humano se desgastava para cada tipo de magia usada. Se não for treinado para aguentar a pressão dos comandos, sua carne poderia derreter, os ossos quebrar, até mesmo as veias estourariam.

    Porém, se dois comandos fossem usados de maneiras diferentes, um para ataque e outro para defesa, essa quebra seria definitiva. Essa era a limitação básica de um Adesir e um Absolver. Para cada braço, uma conjuração de círculo mágico ou comando, porém, se eles forem direcionados para uma defesa, o outro membro não pode atacar.

    Ioni estava completamente preso em golpes que nunca cessavam. Quando uma defesas elétricas paravam, Haivor criava outra logo em seguida, sempre se aproximando, pouco a pouco. Os círculos ao redor de Ioni se tornara tão densos, que cada disparo feito tinha que ser dissipado, não mais engolido.

    Estava sendo suprimido por um homem que não era um Adesir, nem mesmo Arcano era. Vê-lo tão perto de sua defesa, com um olhar destemido, frenético, vingativo. Ele não iria parar. Teria que fazer qualquer coisa para mandá-lo para longe.

    Se ele perdesse, que tipo de glória teria a contar aos seus mestres antigos? Seria ridicularizado. Feito de palhaço.

    Impossível perder para ele.

    Mas, Haivor estava perto demais, soltando um rugido mais agressivo do que um animal selvagem. E encostou na barreira, com mais de dez defesas elétricas disparando ao seu redor. Como uma criatura dessas poderia ser tão poderosa? Ioni não sabia responder.

    Como alguém tinha tanto poder para atirar? Como o corpo dele aguentava o dano sem ao menos ceder? Como sua mente se concentrava para ativar tantos disparos ao mesmo tempo? Um único comando de ‘Repetição’ não faria esse estrago. Algo a mais o movia.

    O quê? É um enigma.

    A mão de Haivor adentrou a barreira, mesmo sendo queimada aos poucos, mas o homem sequer gritava. Ioni estava chocado, ele nunca tinha visto nada parecido, nem mesmo com os seus mestres. Alguém conseguir penetrar uma defesa mágica com as mãos nuas.

    Com um grito de Havior, Ioni acordou de seus pensamentos confusos:

    – Eu… posso tocá-lo.

    Como uma garra, os dedos de Haivor pressionaram sua face. Os olhos do homem eram furiosos e cheio de ódio. Ioni os encarava, tão admirado quanto chocado. Porém, ele não sabia que estava sendo lido, todas as suas memórias, todos os seus momentos de reflexão e treinos, todos os seus enfoques. Até mesmo sua confusão no momento final.

    Perder para alguém que nem mesmo tinha um título? Sua missão era apenas matar Kanad Lio, mas estava sendo derrotado por um zé ninguém. A pressão no seu rosto era tanto que já tinha desistido de erguer um dedo.

    Qual a chance de uma formiga matar um elefante? Ioni uma vez perguntou a si.

    – Depende do veneno – seu mestre respondeu. – De quanto esforço a formiga faz. O elefante jamais vai pensar que sua morte está próxima, e sentirá o veneno no seu último suspiro, prestes a morrer.

    Era isso. Ioni tinha certeza. Esse era o enigma que não tinha decifrado ali. Era o veneno, a chave para uma formiga. Seu corpo morreria… Não. Não morreria. Uma formiga pode ser pequena, mas um elefante precisa de muito tempo para morrer. Levaria anos, talvez décadas.

    Não morreria. Não agora.

    Ele esticou o braço, agarrando o pescoço de Haivor rapidamente.

    – É isso, então – ele berrou para Haivor. – Esse é o enigma. É o nosso enigma. Farei com que seja a formiga mais incrível desse mundo. Farei com que seja lembrado, mesmo que eu tenha que estar em outro corpo. Se eu tomar sua força de vontade, minha mente será carregada de levar você para sempre.

    Haivor apertou ainda mais a cara dele.

    – ‘União’ – Ioni gritou.

    – ‘Molde’ – Haivor berrou de volta. – Não vou deixar que leve meu corpo com você, desgraçado.

    Inesperadamente, o corpo de Ioni secou. Sua boca começou a murchar e sua pele esfarelar. Haivor fechou a mão quando toda a carcaça dele se tornou pó, e seus próprios braços começaram a tremer.

    Gritou, caindo de joelhos. Milhões de lembranças começaram a penetrar seu cérebro ao mesmo tempo. Não somente de Ioni, mas de todos os que encostou um dia. Uma senhora com braço quebrado, um garoto com doença óssea, a perda de um filho, um marido, uma esposa, uma mão e um pai, o tipo de madeira que usaria para fazer um navio, o ferro usado em espadas, conhecimentos gerais do mar tirados de um capitão, o calculo dos ventos, até mesmo a posição das estrelas.

    Milhares caminhando para seu centro, onde estava sendo gravadas fortemente. Gritando de dor, o solo abaixo dele começou a estalar e rachar, ao mesmo tempo a lateral de seu cabelo foi manchada por uma cor branca.

    Ele caiu de braços no chão, se apoiando enquanto seus membros eram todos bombardeados por dor aguda. Via os treinamentos de seu irmão e como o corpo dele aguentava. Estava passando pela mesma sensação de mais de vinte anos em apenas alguns minutos.

    – Não desista – ouviu alguém dizer. Era sua mente? – Se desistir agora, irá morrer. Não deixe que ele domine sua mente. Tome controle da situação.

    Domine ele, Haivor. Acredito em você. Sempre acreditei. Mate ele de dentro pra fora.

    – ‘Molde’ – gritou. – Molde. Molde. Molde.

    A dor foi suprimida. Os estalos nos ossos pararam, as lembranças estagnaram.

    A sua antiga casa, estava vendo-a novamente. Na frente dela, Cross batendo na parede e no degrau.

    – É seguro, pode vir.

    – Tem certeza?

    Um rapaz pequeno passou diante dele. Era ele próprio, cerca de quinze anos atrás. Cabelos curtos e um gingado tímido.

    – Claro que tenho. Confie em mim, sou seu irmão, não sou?

    – É.

    Cross segurou a mão de Haivor ainda jovem e o levou para dentro da casa.

    – Sua história é trágica – uma voz soou ao seu lado. Uma fumaça negra flutuando, a aura sombria. Era o próprio Iono presente. – Pais mortos. Amigos mortos. Ninguém para cuidar de vocês. Famintos. Jogados em uma vala. Sem um pingo de esperança. E então, conhecem um ao outro. O destino é estranho.

    – Não deveria estar aqui.

    – Você também não. Alias, aqui o mundo é fechado. Sem nada a ver. Você fez isso comigo, não foi? Me trancafiou em uma sombra. Nesse lugar imundo. Usou um único Comando para mudar toda a estrutura do meu pensamento, da minha magia.

    – Ninguém mandou tentar entrar em mim.

    – Agora, estou preso em um lugar onde nem mesmo posso ouvir o mundo do lado de fora. Eu, quem desejei ter minha visão de volta, perdi tudo. Você tirou de mim, Haivor Resi. Tudo em você é um enigma pra mim. Tudo.

    Haivor abriu os olhos, encarando o chão destroçado abaixo de si. Estava fora de sua mente, respirava normalmente, mas as pessoas ao redor não se aproximavam. Encostou no próprio peito, depois nos olhos, estava tudo no lugar.

    Somente sua mente estava diferente. Todas as leituras que tinha feito em sua vida estavam gravadas lá. Até mesmo quando era pequeno, do seu primeiro experimento com uma leitura até os experimentos com círculos mágicos de Ioni.

    Estava tudo ali.

    – Haivor.

    Era Ercha Lio e seu irmão, Oxin Lio. Ambos paralisados por terem visto a estranha batalha se desenrolar até que o Absolver ter sido feito de pó.

    – É você? – Ercha perguntou, nervoso. – Responda, por favor.

    – Ele está fora de si – Oxin disse, rapidamente. – Temos uma chance de matá-lo, agora. O Absolver foi derrotado, só precisamos tirar ele do caminho.

    Haivor levantou os olhos, furioso.

    – Haivor – outra voz o chamou. Perto das pessoas, Grison estava de pé, caminhando em sua direção. – Se fizer isso, será exatamente como Ioni. É o que deseja?

    – Ele tentou me matar – Haivor rangeu os dentes. – E perdi meu irmão no mesmo dia. Se não fosse por ele, eu teria chegado a tempo.

    – Verdade, se não fosse por ele, você teria seu irmão de volta e os dois estariam mortos. – Grison parou dois metros dele. – Pessoas normais usam métodos normais para chegar a algum lugar. Assassinato, suborno, um contrato com uma criatura demoníaca. Métodos que pessoas como nós não faríamos.

    – Não sou como você.

    – Exato. – Ele esticou a mão para Haivor. – Mas, você pode ser. Derrotou um Absolver que se dizia estar no Quinto Círculo, mas era uma mentira completa. Ele era apenas um pequeno peixe iludido que achou que seu corpo estava próximo da perfeição.

    – Grison – Ercha o chamou. – Por favor, não queríamos levar esse problema para você.

    – Senhor Lio, eu estou aqui justamente por esse problema. Por sua chamada incompetência, a vida de muitas pessoas correram perigo. Sua ação de chamar um demônio para cuidar de seu pai, quando deveria ter pedido ajuda aos Arcanos fez com que o irmão dele fosse morto.

    Ercha encarou Havior ainda de joelhos no chão.

    – É verdade, Haivor?

    – Só pode estar de brincadeira comigo. – Haivor fechou a mão e se levantou. – Não diga meu nome, nunca mais o pronuncie. Não quero mais olhar para a cara de vocês, nunca mais.

    Grison o deixou passar. A multidão abriu caminho para o homem. Uma mecha de seu cabelo estava branca, e seu rosto parecia ter ficado mais velho, ainda assim, era Haivor que muitos conheciam. Sua aparência era parecida, mas sua aura era de alguém completamente diferente.

    Andando, Haivor tinha uma palavra na sua cabeça, uma palavra que estava o atormentando desde que teve a conversa com Ioni em sua mente.

    Enigma.

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