Ano 10.346, 23  de  Mensis Sacrificium, EBT. Dia de Sanguinis.

    O silêncio era uma mentira.

    Na penumbra da câmara de acoplamento, o único som era o zumbido baixo e constante dos sistemas de suporte de vida e o murmúrio distante dos motores de manobra da mega-nave. A figura sentada no trono de pilotagem era imóvel, uma estátua de metal cinza-escuro contra um ninho de cabos de dados e conduítes de refrigeração. Parecia mais um componente da máquina do que seu mestre, uma peça de um quebra-cabeça mecânico. 

    Dezenas de fios grossos, como serpentes de fibra ótica, conectavam-se diretamente a portas ao longo da espinha dorsal de seu exoesqueleto, pulsando com uma luz azul pálida a cada ciclo de dados, transformando-o em mais um componente da máquina do que em seu mestre. O ar cheirava a ozônio, óleo lubrificante e ao cheiro estéril de metal reciclado.

    O ar cheirava a ozônio, óleo lubrificante e ao cheiro estéril de metal reciclado — o perfume de seu único e verdadeiro lar.

    Ele era uma estátua de metal cinza-escuro, imóvel, a mente à deriva em um lugar muito mais ruidoso que o hangar da mega-nave Nasus. Um lugar de fogo e gritos, um borrão de terror que se recusava a tomar forma, mas nunca a desaparecer.

    Vermelho. O mundo é vermelho. A luz estroboscópica dos alarmes de emergência pintando os corredores brancos com pinceladas de sangue. O cheiro. Ozônio e carne queimada. Um cheiro doce e doentio que se agarra ao fundo da garganta. O som de botas de metal batendo no chão, não em uma marcha disciplinada, mas em uma fuga desesperada, caótica. Rostos. Tantos rostos, todos iguais ao meu, congelados em máscaras de terror infantil antes de serem apagados por fogo de plasma. 

    Corra, Kael. Corra.

    A sensação era a de afogamento. Um pânico frio que subia pela garganta, o coração batendo descontroladamente contra as costelas, um animal em uma jaula tentando escapar. Mas não havia para onde correr. A memória, ou o que quer que fosse, não era uma imagem. Era uma sensação. Um eco.

    Um som agudo e insistente quebrou a quietude fabricada.

    Bip. Bip. Bip.

    Vinha de um pequeno painel no console, uma luz âmbar piscando em sincronia com o chamado. A agulha da realidade perfurando o balão da memória. A figura não se moveu. O som era irritante, mas era um som do mundo real, e o mundo real, por mais brutal que fosse, era preferível ao inferno de onde sua mente acabara de retornar.

    Bip. Bip. Bip. Zeon. Responda.

    A voz sintética do comunicador era desprovida de emoção, mas carregava o peso inconfundível da autoridade do Alto Comando, Hesperus, o seu comandante. A figura de metal finalmente se mexeu. Um silvo de ar pressurizado ecoou na câmara quando as travas do capacete se soltaram. A placa frontal da armadura recuou em uma série de segmentos sobrepostos, revelando o rosto de um homem.

    Não era o rosto de um jovem herói de propaganda. Era o rosto de alguém no final dos seus trinta ou início dos quarenta anos, anguloso e gravado com as linhas finas de uma vida de conflito. 

    O cabelo castanho-escuro, de comprimento médio e despenteado, estava grudado na testa com suor frio. Uma barba cheia e densa, mais um produto do pragmatismo do campo de batalha do que de estilo, escondia parcialmente as cicatrizes antigas em seu maxilar. Seus olhos, escuros e penetrantes, piscaram lentamente, ajustando-se à luz fraca do cockpit. 

    A exaustão ali era profunda, não apenas pela falta de sono, mas pelo peso recente das perdas na última campanha. Eram os olhos de um homem que tinha visto o universo queimar — e acabado de enterrar mais alguns dos seus — sentindo-se responsável por parte do fogo.

    Ele respirou fundo, o ar reciclado da nave enchendo seus pulmões. Outra vez. O mesmo sonho.

    Não é um sonho, corrigiu uma voz cínica em sua mente. É uma memória. E memórias são fantasmas que não morrem.

    Ele fechou os olhos por um instante, mas a escuridão atrás de suas pálpebras era pior. As imagens voltaram, não como uma história, mas como um ataque sensorial. A lâmina de energia de um fanático. O calor insuportável. A sensação de seus órgãos sendo cozidos. Inconscientemente, sua mão enluvada subiu e segurou seu estômago, bem abaixo da placa peitoral da armadura. 

    Uma dor fantasma, afiada e fria, floresceu ali, um eco da perfuração que o derrubara há séculos. Ele podia sentir o metal frio da baioneta, o choque, o sangue quente enchendo suas entranhas. Ele podia sentir a vida se esvaindo.

    Eu morri naquele dia. Todos nós morremos. Então, por que eu ainda estou aqui?

    Um suor frio escorreu por sua espinha. Ele abriu os olhos, forçando as imagens para o fundo de sua mente, para a caixa de aço trancada onde ele guardava todos os seus fantasmas. Ele xingou baixinho, uma maldição rouca que foi abafada pelo zumbido da cabine.

    Bip. Bip. Capitão Zeon. Confirme o recebimento.

    “Malditos burocratas”, ele rosnou para si mesmo, sua voz soando estranha em seus próprios ouvidos após o silêncio. Ele se inclinou para frente, ativando o comunicador com um toque no console. A luz âmbar parou de piscar.

    “Capitão Zeon, unidade DK-78B02, piloto do Kation ‘Espectro’, na escuta”, disse ele, sua voz agora firme, profissional, a máscara do soldado exemplar firmemente no lugar.

    A voz sintética de Hesperus do outro lado não perdeu tempo com formalidades. “Capitão, suas ordens de patrulha foram alteradas. O Alto Comando o reposicionou. Sua unidade deve se preparar para um salto de dobra imediato para o sistema de Saturno. Coordenadas a seguir.”

    Zeon franziu a testa. Saturno. O setor mais silencioso e sem eventos de todo o território da Hegemonia Humana. O lugar onde as carreiras iam para morrer. “Saturno? Com todo o respeito ao comando, a frente de batalha em Io está um caos. A Terceira Frota perdeu três cruzadores de Kations na semana passada. Minha unidade é mais necessária lá. Por que a mudança?”

    Houve uma pausa de um segundo, o tipo de pausa programada que significava que a pergunta não era bem-vinda e estava sendo registrada em seu arquivo de serviço. “As ordens são absolutas, Capitão. O Pavilhão de Adel requer sua presença. Prepare sua unidade.”

    O canal se fechou com um clique seco. Nenhuma explicação, nenhuma justificativa. Apenas uma ordem.

    Malditos do império, Zeon cuspiu no silêncio, batendo com o punho enluvado no console. O impacto mal fez o metal vibrar. Ele odiava isso. Ser um peão em um tabuleiro de xadrez tão vasto que você nunca conseguia ver a mão que o movia. Por séculos, a Hegemonia Humana lutou uma guerra de desgaste contra os exércitos da Coalizão, e ele, Zeon, era uma de suas melhores armas. 

    Uma lenda, eles o chamavam. O Fantasma de Ganimedes. O Carniceiro de Io. Nomes construídos sobre uma montanha de corpos. Mas, no final, ele ainda era apenas isso: uma arma, apontada para onde os generais e nobres distantes, em seus palácios na Terra-Prime, decidissem.

    Ele suspirou, o som se perdendo na vastidão do cockpit. Resmungar não mudaria as ordens. Com uma série de movimentos praticados, ele começou o processo de desconexão.

    “Espectro, iniciar sequência de desacoplamento neural. Código: Zeta-Nove-Alfa.”

    “Sequência iniciada, Capitão”, respondeu a voz calma e feminina da IA de seu Kation. “Desativando interface neural primária. Retraindo conduítes de dados.”

    Um por um, os cabos grossos de fibra ótica se retraíram de seu exoesqueleto com silvos pneumáticos suaves, as luzes azuis que pulsavam em sincronia com seus pensamentos se apagando. A sensação era desconcertante, como a de um membro adormecido despertando dolorosamente. 

    O fluxo constante de dados táticos, leituras de sensores em tempo real e diagnósticos de sistemas que eram uma segunda corrente sanguínea para ele, agora se esvaindo, deixando-o subitamente cego e surdo para o universo exterior, confinado novamente à sua própria e limitada percepção humana. 

    O trono de pilotagem o liberou de suas amarras magnéticas e restrições físicas, e ele se levantou, sentindo novamente o peso esmagador da armadura de combate completa. Não mais uma segunda pele ágil e poderosa, mas uma casca pesada de metal e cerâmica, uma prisão ambulante. 

    A ordem era absurda, o destino desconhecido, mas o dever chamava. E Zeon, ou o que restava dele, responderia.

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