Capítulo 17: A Centelha da Fúria
O universo de Jax reduziu-se ao retângulo de cristal blindado do seu visor. Lá fora, o corredor principal do Pavilhão de Adel era um inferno silencioso, uma catedral gótica profanada por uma carnificina que não fazia barulho. As luzes de emergência vermelhas pulsavam num ritmo hipnótico, banhando o metal retorcido e os corpos quebrados de seus companheiros num brilho intermitente e sangrento. O vácuo devorava os gritos, mas no canal de comunicação da unidade, o pandemônio era ensurdecedor.
“Setor Beta, fomos flanqueados! Eles estão… eles estão nas paredes! Oh, Deusa…” ESTÁTICA.
“Meu esquadrão… simplesmente… desapareceu! Não há corpos, capitão, não há nada!”
“Fogo de supressão! Fogo de supressão! Ele nem está se movendo!”
Era a sinfonia da aniquilação, uma cacofonia de estática, relatórios de status aterrorizados e o som agudo de sinais vitais se apagando um por um.
Mas Jax mal a ouvia. Seus olhos, e toda a sua alma de soldado, estavam fixos na figura que emergira da ferida na realidade. O Nemesor Entrópico.
Não era terror o que ele sentia. Não no início. Era uma espécie de reverência aterrorizada, a sensação de um crente diante de um deus sombrio – uma força primordial que o fazia lembrar das imagens sagradas de Adel em sua fúria divina.
A criatura não se movia com a urgência da batalha; ela flutuava, sua presença era uma negação silenciosa de todas as leis da guerra que Jax aprendera. Os Resonats e Declinationes, os peões esqueléticos, moviam-se com uma eficiência mecânica, mas o Nemesor… ele simplesmente era. Seu manto de metal segmentado ondulava como se estivesse submerso num oceano invisível, e sua foice de guerra colossal, uma curva de púrpura que parecia sugar a própria luz, era segurada com a casualidade de um ceifador em seu campo.
Para os outros, era o arauto da derrota. Para Jax, era o desafio final. Era o dragão no final da história, o demônio que as lendas da Hegemonia prometiam que os heróis nasceram para matar.
Então, o Nemesor virou lentamente sua cabeça alongada. Suas duas estrelas moribundas de olhos varreram o campo de batalha, passaram pelo Kation de Zeon, pelo ‘Vidente’ escondido de Anya, e pousaram, por um único e gélido segundo, no ‘Martelo’ de Jax. E então, ele descartou-o. Ele se virou, sua atenção focando em Zeon como a ameaça principal.
Aquilo não era divino. Aquilo era desdém. Um desdém frio, vasto, cósmico.
O Nemesor nem sequer o considerava uma ameaça; considerava-o um inseto. A quietude não era a de um deus ponderando sobre a moralidade; era a de um tirano que se sabia invencível, observando formigas se debaterem antes de pisá-las. E essa indiferença era um insulto que queimava mais quente que o reator de plasma de Jax.
Era um insulto à memória dos soldados que jaziam apagados ao seu redor. Homens com quem ele comera no refeitório há três dias, cujas últimas estáticas de terror ainda ecoavam em seus ouvidos, e esta coisa nem sequer reconhecia o seu sacrifício.
Era um insulto ao poderio da Hegemonia. O maior império que a galáxia já conhecera, a força que esmagou rebeliões e conquistou mil sistemas… Jax amava esse ideal, mas estava dolorosamente ciente da podridão que crescia em seu coração. Uma podridão que, ele suspeitava no fundo de sua mente, era a verdadeira razão pela qual sua unidade fora abandonada naquela armadilha mortal.
Mas mesmo sabendo disso, sua fé permanecia. Era uma fé complicada, cheia de raiva, mas ainda era fé. Não nos políticos distantes e nos almirantes traiçoeiros, mas nos humanos de carne e osso que morriam ao seu lado. Fé no ideal que a Hegemonia deveria representar e, acima de tudo, fé no poder divino de Adel.
A arrogância do Nemesor não era apenas um insulto a um império falho; era um ultraje contra a própria humanidade e seu deus, tratando todo o seu sofrimento e sacrifício como um aborrecimento menor. E por isso, ele merecia o Martelo.
E, para Jax, o insulto final era o mais profundo, uma verdadeira blasfêmia: Seu Kation, o ‘Martelo’, não era apenas uma máquina de guerra de cem toneladas. Era mais do que o pináculo da engenharia humana ou o orgulho de sua vida. Era um instrumento sagrado, era a encarnação literal do Martelo de Adel, a vontade de seu deus forjada em aço, destinada a purgar os hereges da coalisão. E esta criatura… este verme… estava tratando-o como uma peça irrelevante no tabuleiro. Pior, estava tratando-o como pó.
O Nemesor não estava apenas ignorando um soldado; estava profanando um ícone. Estava transformando sua fúria, sua fé e sua arma divina em absoluta irrelevância… e Jax não podia suportar isso.
Em seu visor, seu sistema de mira já havia adquirido um travamento de alvo sólido no centro da massa do Nemesor. Um ícone vermelho pulsava, faminto. MATE, dizia o instinto. ESMAGUE, gritava o espírito-máquina do seu Kation.
A centenas de metros de distância, no cockpit escuro do ‘Espectro’, Zeon viu tudo. Mas sua perspectiva era totalmente diferente. Ele não via um insulto; ele via uma violação da física. Seu visor tático não mostrava um alvo, mas um buraco na realidade. Onde deveria haver dados sobre escudos, blindagem e emissões de energia, havia apenas uma cascata de ícones de interrogação.
[ASSINATURA DE ENERGIA: DESCONHECIDA/FORA DA ESCALA] [DEFESAS ATIVAS: NULAS] [ANOMALIA ESPACIAL: DETECTADA] [VARIÁVEL DE AMEAÇA: INCALCULÁVEL]
Zeon não viu um general inimigo; ele viu um buraco negro em forma de homem. E, mais perigosamente, ele viu, em seu feed de dados táticos da unidade, o reator de plasma do ‘Martelo’ de Jax começar a puxar energia, desviando-a dos escudos para os capacitores de armas. Ele viu a postura do Kation pesado mudar, os ombros se inclinando para a frente, preparando-se para uma investida. Zeon sabia o que vinha a seguir. Era o mesmo impulso suicida e glorioso de todos os jovens soldados que pensavam que a fúria poderia derrotar o inevitável.
“Jax, não!” A voz do Capitão Zeon cortou a estática do canal da unidade, não com pânico, mas com a autoridade gélida e controlada de aço. O comando foi instantâneo, uma reação de frações de segundo à leitura das intenções de seu subordinado. “Relatório de status! Mantenha a posição! Fogo defensivo em padrão-Delta! Essa é uma ordem direta!“
A ordem crepitou nos ouvidos de Jax, mas soou distante, irrelevante. Mantenha a posição? A frase era um absurdo tático. Era cautela beirando a covardia. Manter a posição era o que se fazia quando se estava perdendo. Manter a posição era aceitar o cerco, era morrer lentamente. Ele não fora treinado para isso. Ele fora treinado para romper linhas, para ser a ponta da lança, para esmagar o centro de comando inimigo e assistir o resto do exército se desintegrar em caos.
Sua mente, um produto perfeito da doutrinação militar da Hegemonia, começou a construir a lógica de sua desobediência. Ele se lembrou das simulações na academia, das palestras sobre iniciativa. “Um soldado da Hegemonia não espera pela oportunidade, ele a cria”, dissera um instrutor com o rosto marcado por cicatrizes. Ele se lembrou dos holovídeos de propaganda: heróis lendários que, em momentos de desespero, desafiaram as ordens e mudaram o curso da história com um único ato de bravura audaciosa.
Eles nos enviaram para cá, pensou ele, sua mão se fechando no controle de armas. Eles enviaram a melhor unidade de assalto da frota. Eles me deram esta máquina. O ‘Martelo’. Não o ‘Escudo’. Não a ‘Parede’. O ‘Martelo’. Sua função estava em seu nome. E ali, a poucos metros de distância, estava o prego mais importante do universo, esperando para ser cravado. Recuar agora não seria disciplina. Seria uma traição ao seu propósito, à sua máquina, a tudo em que ele acreditava.
A atenção do Nemesor estava cravada em Zeon. A criatura identificara o ‘Espectro’ como a ameaça tática principal, o cérebro da resistência. E, ao fazer isso, deu as costas ao ‘Martelo’.
Para Jax, isso não era apenas uma “janela de segundos”. Era um convite. Era a arrogância blasfema do inimigo se manifestando como uma fraqueza que um verdadeiro soldado de Adel tinha o dever de explorar.
Ele podia sentir a hesitação de Zeon pelo canal, a cautela do tático. O capitão era um jogador de xadrez, calculando as perdas, tentando encontrar um padrão no caos impossível, paralisado pela lógica diante do ilógico.
Mas Jax não era um jogador. Ele era a marreta destinada a quebrar o tabuleiro.
A decisão solidificou sua fé em uma fúria justa. Ele abriu o canal da unidade, não para pedir permissão, mas para declarar sua intenção, sua voz um rosnado sobrepondo-se à ordem iminente de Zeon:
“Eu vou quebrar essa coisa! Pela Hegemonia! POR ADEL!”
Não foi apenas um grito de desafio. Foi uma oração de guerra.
O processo de despertar o ‘Martelo’ para seu potencial máximo era um ritual que Jax conhecia como seu próprio batimento cardíaco. Ele não apenas apertou um botão; ele esmagou o punho enluvado contra o painel de desvio de energia, bem sobre a runa amarela e preta de Adel gravada no metal ao lado de seu console.
“Protocolo ‘Fúria de Adel’: Iniciado.”
A iluminação do cockpit diminuiu para um vermelho-sangue, enquanto o reator de plasma em suas costas começava a zumbir com uma nova e furiosa intensidade. O som vibrou através do convés de metal sob seus pés, um rosnado baixo que subiu pelas suas pernas e se instalou em seu peito. Ele podia sentir o calor subindo pelas paredes da cabine, o cheiro de ozônio e metal quente enchendo o ar reciclado, misturando-se ao seu próprio suor.
No seu visor, ícones verdes se acenderam em uma cascata satisfatória. [REATOR DE PLASMA: 110%] [CAPACITORES DE ARMA PRINCIPAL: CARREGANDO] [SISTEMAS DE MIRA: TRAVADOS]
Ele olhou para o Nemesor através da mira, um contorno vermelho pulsante sobre a forma escura do inimigo. O mundo exterior desapareceu. Havia apenas ele, sua máquina e o alvo.
Com um movimento de seu polegar, ele liberou as travas de segurança de seu arsenal secundário. Ouve-se um thump-clank pesado e satisfatório quando as correias de munição cinética se encaixaram nos canhões automáticos de seus ombros. Ele podia ouvir o zumbido agudo dos micro-mísseis em seus casulos, os espíritos-máquina dentro deles despertando e gritando por um alvo.
Esta era a sinfonia da Hegemonia. Ruído, calor e poder avassalador. A antítese do silêncio frio e arrogante do inimigo. Ele iria quebrar aquele silêncio. Ele iria ensiná-lo a gritar.
“Jax! Não faça isso! É uma ordem!” A voz de Zeon era uma faca, mas Jax já estava além da obediência.
Com um último pensamento, uma imagem fugaz da medalha que ele sonhava receber, ele empurrou os aceleradores para a frente.
Os propulsores em suas pernas e costas explodiram com uma fúria azul e branca. O Kation de cem toneladas, o ‘Martelo’ da Hegemonia, avançou pelo corredor como um touro de metal desencadeado, um rugido de fúria mecânica contra o vazio. O chão de obsidiana rachou sob o impacto de seus pés, e a máquina de guerra tornou-se um cometa de aço e desprezo.

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