Os corredores da Nasus eram frios e impessoais, um labirinto funcional de metal cinzento iluminado por painéis de luz fria e utilitária embutidos no teto. Cada passo pesado de suas botas blindadas ecoava nas paredes, o único som além do zumbido onipresente e baixo da própria nave, a respiração de um leviatã de metal. 

    Ele passou por técnicos apressados e outros soldados, rostos anônimos e cansados em um mar de uniformes cinzentos, trocando apenas acenos de cabeça curtos e profissionais, a interação mínima exigida pelo protocolo. 

    A máscara do Capitão Zeon estava firmemente no lugar, uma expressão de comando controlado. Mas por baixo, o homem, sentia-se como um fantasma assombrando os corredores de sua própria vida, desconectado de tudo ao seu redor. 

    Era um observador invisível em seu próprio uniforme, uma casca vazia movendo-se através de um mundo que ele ajudara a defender, mas do qual não sentia mais fazer parte.

    Seus aposentos eram uma caixa de metal espartana, pouco maior que o cockpit claustrofóbico de seu Kation. Uma beliche de metal funcional embutida na parede, um armário de armazenamento e um pequeno terminal de dados eram toda a mobília. 

    Era o espaço de um soldado, projetado para eficiência e nada mais, não o lar de um homem. Não havia fotos, nem lembranças, nem qualquer sinal de uma vida pessoal. Apenas a funcionalidade fria de um quartel flutuante, um reflexo perfeito da existência que ele construíra para si mesmo. 

    Ele removeu o capacete com um suspiro cansado, sentindo o ar reciclado frio em seu rosto suado. Sentou-se pesadamente na beira da beliche estreita, o metal rangendo em protesto sob o peso combinado de sua armadura e de sua dor invisível.

    Os rostos dos mortos em Ganimedes — Roric, Lena, Kai — flutuaram brevemente em sua mente, imagens frescas e cruéis, seus últimos momentos gravados a fogo em sua memória. Mas foram rapidamente empurrados para o fundo pela sombra mais antiga, o eco persistente daquele outro massacre, o da sua infância. Ele fechou os olhos novamente. Não para descansar, pois sabia que o sono não viria, mas para tentar entender o eco persistente, para forçar o borrão antigo e aterrorizante a tomar uma forma definida, a contar sua história.

    Ele tentou meditar, uma técnica antiga de controle mental que aprendera nos primeiros e brutais dias de seu treinamento militar, um método para acalmar o coração acelerado, focar a mente dispersa, encontrar o centro de seu ser. Mas seu centro era um buraco negro, um vazio deixado por memórias roubadas ou apagadas. 

    Uma ausência fundamental que tornava a meditação uma forma de tortura, forçando-o a confrontar o nada onde uma identidade deveria estar. Ele forçou a concentração. Ele se concentrou no eco da memória sensorial, no cheiro metálico de ozônio e no cheiro adocicado de sangue e carne queimada. Ele tentou puxar o fio solto dessa sensação, desembaraçar o nó em sua alma, encontrar a origem da ferida.

    A dor veio primeiro, como sempre acontecia quando ele tentava forçar a barreira. Uma pontada aguda e branca atrás de seus olhos, como se agulhas de gelo estivessem sendo cravadas diretamente em seu cérebro. 

    Ele ofegou, o ar preso em seus pulmões, suas mãos subindo instintivamente para as têmporas, os dedos de metal de suas luvas pressionando com força, como se pudesse espremer a dor física para fora.

    E com a dor, como sempre, vieram os fragmentos estilhaçados. Não uma história. Não uma sequência lógica. Apenas cacos de vidro quebrado refletindo pedaços de um inferno.

    Corredores piscando em vermelho sangue. O som de gritos, agudos, infantis, cortando o ar. Rostos. Meu rosto, refletido em dezenas de corpos menores, mais jovens, congelados em máscaras de terror absoluto. Fogo. Plasma branco e purificador, sibilando enquanto apagava existências. O cheiro nauseante de carne queimada.

    A dor se intensificou, transformando-se de agulhas em pregos incandescentes. Ele grunhiu, curvando-se sobre si mesmo na beliche, a respiração presa na garganta, lutando contra a escuridão que ameaçava engolfá-lo.

    Frio. Uma dor diferente, fria e cortante em seu estômago. Olho para baixo. Metal. Uma lâmina de energia. Sangue quente enchendo minhas entranhas, roubando meu calor. Estou caindo. Aterrissando sobre uma pilha macia e úmida. Corpos. Todos com o meu rosto.

    Ele sabia, em algum nível profundo e instintivo, que era um rato de laboratório. Um projeto secreto. Uma “Reserva”. 

    A palavra ecoava em sua mente não como uma memória recuperada, mas como uma verdade fundamental e inegável de sua existência, uma marca de ferro quente em sua alma. Ele sabia que fora caçado como um animal. Sabia que fora morto, assassinado. 

    A dor fantasma persistente em seu estômago era a prova física disso. Mas os detalhes — a sequência dos eventos, o porquê por trás do massacre — tudo se dissolvia em estática branca e dor aguda sempre que ele tentava focar, como se uma parte de sua própria mente estivesse ativamente lutando para mantê-lo ignorante.

    Ele forçou mais uma vez, desesperado por respostas, tentando atravessar a parede de dor e estática que protegia o segredo de sua origem.

    E então, como uma única estrela aparecendo em um céu nublado, a única imagem clara surgiu. A única memória que parecia ter um começo e um fim definidos.

    Escuridão. O cheiro de lixo podre e metal enferrujado e morte antiga. A tampa pesada de um contêiner de lixo se abre com um rangido. Luz fraca entra. Um rosto paira acima de mim. Um garoto, não muito mais velho que eu na época. Cabelos loiros e sujos, olhos azuis arregalados, cheios de um terror que espelhava o meu, mas também de algo mais… uma fé fanática e inabalável, uma determinação assustada. Ele sussurra algo, palavras apressadas que eu não consigo entender completamente. “Vontade… Adel…”. Então, ele me empurra para fora do contêiner. A queda. Curta, mas chocante. O cheiro avassalador de podridão e metal queimado. O gosto de poeira vermelha na boca. Marte.

    Ele abriu os olhos, ofegante, o suor frio escorrendo por seu rosto. A dor em sua cabeça recuou para uma enxaqueca latejante. 

    Ele olhou para suas mãos enluvadas. 

    Por que? Quem era ele? Por que aquele garoto o salvara? 

    Era mais uma peça do quebra-cabeça que não se encaixava, mais uma camada de confusão em sua existência fraturada.

    Ele se lembrava da fome desesperadora em Marte. 

    Lembrava-se de lutar por restos de comida nos becos fétidos das cidades-colmeia de sucata, do recrutador do exército imperial, um homem velho e cansado que não fez muitas perguntas, apenas ofereceu uma saída. Se recordava de ter escolhido o nome “Zeon” de um mapa estelar pendurado na parede do posto de recrutamento, um nome aleatório, sem significado, mas que representava uma chance de enterrar seu “antigo eu” sem nome para sempre. 

    Ele se lembrava de ter abraçado a mentira com a força de um homem se afogando agarrando-se a um destroço. De ter se tornado a agulha no palheiro, o fantasma na máquina, escondendo sua verdadeira natureza sob camadas de disciplina e violência controlada.

    Ele lutou, sangrou, subiu de patente através de mérito e brutalidade. 

    Tornou-se um herói de guerra, uma lenda relutante. Capitão Zeon. Um nome construído sobre uma fundação podre de medo e mentiras. Cada medalha que recebia, cada elogio vazio dos oficiais superiores, era apenas mais uma camada de aço frio sobre a verdade aterrorizante que ele carregava: ele era um projeto, o último de sua espécie, um resquício do Massacre dos Clones, uma heresia ambulante que seria exterminada sem hesitação se sua verdadeira identidade fosse descoberta.

    Ele olhou novamente para suas mãos enluvadas. Por baixo do metal e da fibra sintética, ele era uma fraude. Um fantasma assombrado por outros fantasmas. E agora, o império que o queria morto, mas que não sabia de sua existência, o estava enviando para o lugar mais silencioso do sistema. 

    O lugar onde ele teria mais tempo para pensar, para lembrar. Mais tempo para ser torturado por cacos de memória que ele não conseguia juntar em uma imagem coerente.

    “”Malditos sejam”, ele sussurrou para o silêncio opressor de sua câmara de metal. “Malditos sejam todos”.

    Um alarme soou pelo hangar e pelos corredores da nave, um som profundo e ressonante que vibrou através do convés, sinalizando o início dos preparativos finais para o salto de dobra. O tempo de reflexão — ou tortura auto-infligida — havia acabado.

    O homem na beliche se levantou. A exaustão ainda estava lá, um peso invisível em sua alma, mas a disciplina férrea de séculos de treinamento militar assumiu o controle, uma segunda natureza mais forte que qualquer dor ou dúvida. Ele não era mais um experimento, o rato escondido, o garoto quebrado sofrendo em uma beliche de metal em um lixão esquecido em Marte. Ele era Zeon, o Capitão. Ele tinha ordens a cumprir.

    E em um universo brutal que só entendia a obediência cega e a violência eficiente, essa era a única identidade, a única máscara, que o mantinha vivo. A missão em Saturno podia ser uma armadilha, para se livrar de uma unidade que sabia demais após a última missão, uma piada cruel ou apenas mais uma ordem sem sentido na engrenagem de uma guerra eterna. 

    Não importava. Ele iria, porque era isso que os soldados faziam. Era isso que ele fazia. A alternativa era confrontar o vazio que a máscara de Zeon mal conseguia conter, e esse era um inimigo contra o qual ele não tinha armas.

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