Capítulo 4: Ordens e Dúvidas
A viagem através do Dobramento era como morrer e renascer a cada segundo. Não era uma viagem no sentido convencional. Era uma violação.
A mega-nave Nasus, um colosso de quilômetros de comprimento, não se movia através do espaço euclidiano; ela rasgava o tecido da realidade, mergulhando numa dimensão turbulenta de potencial não realizado, um oceano de caos primordial que os antigos teóricos chamavam cautelosamente de Sub-realidade.
Para a tripulação endurecida pela guerra, era simplesmente “A Dobra”. Um atalho impossível através do impossível, um lugar onde as leis imutáveis da física se desfaziam em um grito silencioso e angustiante.
Dentro do refeitório funcional e espartano da unidade DK-78B02, a única indicação externa da travessia não natural era a forma subtil como a luz artificial dos painéis no teto parecia se curvar ligeiramente nos cantos da sala, como se vista através de água a ferver, e o zumbido subsônico constante que vibrava desagradavelmente no fundo dos dentes, uma ressonância sentida mais nos ossos do que nos ouvidos.
Para a maioria dos tripulantes, era apenas um ruído de fundo, o murmúrio constante da máquina de guerra que os transportava. Para Zeon, porém, era o som de unhas arranhando o interior de seu crânio, um eco físico da desintegração quântica que o rodeava, uma ressonância com a sua própria natureza fraturada.
Cada segundo passado na Dobra era um lembrete visceral de que ele era um homem desfeito, mantido coeso apenas pela força de vontade e, talvez, pela vontade parasita da máquina de guerra que pilotava.
Ele empurrou a bandeja de pasta de nutrientes sem gosto para o lado com um leve som metálico.
A comida racionada da Hegemonia era projetada para a máxima eficiência nutricional, não para o prazer sensorial. Como tudo o mais naquele vasto e implacável império.
“Você mal tocou na sua ração, Capitão”, observou Anya, sentada rigidamente à sua frente na mesa de metal fria.
Sua voz era calma, controlada, o tom de alguém que tinha visto mais batalhas do que gostaria de admitir e aprendera a compartimentar o horror. Ela não olhava diretamente para ele, mas mantinha o olhar fixo nas peças desmontadas de sua pistola de plasma padrão, espalhadas metodicamente sobre a mesa.
Ela limpava cada componente com uma precisão meticulosa e focada, um ritual silencioso que realizava quase inconscientemente sempre que a ansiedade familiar antes de uma missão desconhecida começava a se instalar como uma geada fria em sua alma.
Não era realmente sobre a limpeza da arma, sempre impecável; era sobre o controle. Sobre ter algo tangível que ela podia desmontar e remontar perfeitamente, uma pequena ilha de ordem num universo caótico que acabara de roubar três membros de sua unidade, três amigos.
“Os fantasmas estão te mantendo acordado de novo?”, ela perguntou, a pergunta flutuando no ar tenso do refeitório.
Zeon hesitou, passando a mão enluvada pelo rosto cansado, sentindo o suor frio sob a malha do traje. A desculpa fácil — a tensão da missão, a falta de sono — morreu em seus lábios antes de ser pronunciada. Anya o conhecia bem demais para isso.
Anos de combate lado a lado haviam forjado um entendimento tácito entre eles, uma familiaridade que transcendia palavras. Ela vira seus pesadelos antes, as noites em que ele acordava abruptamente, suando frio, a mão instintivamente agarrando o estômago onde a dor fantasma florescia.
“A Dobra…”, ele disse finalmente, sua voz baixa e rouca, admitindo uma vulnerabilidade que raramente mostrava. “Não ajuda com o barulho na minha cabeça. Parece que estou me desfazendo junto com a própria realidade lá fora”.
A sensação era como a de metal a ser lentamente corroído, cada partícula da sua consciência a vibrar em dissonância com o espaço não natural que atravessavam.
Do outro lado da mesa, Jax, o mais “novo” membro da unidade, parou com sua bebida energética estimulante a meio caminho da boca, seus olhos arregalados inicialmente com a perspectiva de vingança, agora nublados pela ordem de mudança. Ele baixou a bebida lentamente, o entusiasmo evaporando de seu rosto.
Por um momento, ele encarou a superfície metálica da mesa, processando a finalidade da ordem. Um suspiro quase imperceptível escapou dele antes que ele erguesse a cabeça novamente, um sorriso tenso e claramente forçado nos lábios.
“Ah, sim. Saturno”, ele disse, o tom tentando soar respeitoso, mas falhando em esconder a amargura. “Claro. É a proximidade com o divino, Capitão”, continuou ele, as palavras agora soando quase ensaiadas, a convicção fervorosa de antes substituída por uma resignação ácida que fez Zeon estremecer interiormente por um motivo diferente.
“A Dobra… onde as leis físicas são maleáveis… tocamos na essência da criação! Instáveis? Natural! Mas devemos ver isso como uma bênção, não é mesmo?”. Ele gesticulou vagamente com a mão livre. “Afinal, estamos indo para o Pavilhão do próprio Deus Adel! O lugar mais sagrado de toda a Hegemonia.” Ele fez uma pausa, e a ironia tornou-se mais espessa. “Guardar o Coração Quebrado!”.
Jax se inclinou para frente, o sarcasmo agora evidente. “Francamente, Capitão, não consigo imaginar honra maior. Mal posso esperar para polir relíquias enquanto a verdadeira luta acontece em outro lugar”. A última frase foi quase um sussurro, carregado de ressentimento mal disfarçado.
Anya parou abruptamente de polir o cano de emissão de sua arma e ergueu o olhar, fixando-o em Jax com uma expressão complexa que era uma mistura agridoce de pena e um carinho relutante, quase maternal.
“Garoto,” ela disse, sua voz seca como poeira de Marte “Honra? Se eles se importassem com honra, teriam nos dado uma licença decente, talvez até em Terra-Prime, depois do inferno que sobrevivemos em Ganimedes. Por isso não entendo essa ordem idiota. Eles não nos mandariam para o lugar mais empoeirado e esquecido do sistema para sermos babás de uma relíquia quebrada e inútil. Honra é a palavra bonita que eles te dão em seu funeral. Enquanto você está vivo e respirando, eles te dão ordens estúpidas”.
Jax, após seu desabafo irônico sobre a “bênção” de ir a Saturno, ainda parecia remoer a ordem, mas um resquício de sua doutrinação emergiu, embora tingido de frustração.
“Olha, eu entendo que ‘honra é servir a um propósito maior'”, ele disse, as palavras quase citadas dos manuais da Academia, mas seu tom era tenso, não fervoroso.
“E sim, proteger o presente de Adel deveria ser um propósito maior. Eu li os mesmos malditos arquivos que você, Anya. O Coração Quebrado, a arma divina, a mãe das vitórias, blá blá blá…”. Ele gesticulou com impaciência. “Mas enviar nós, agora? Tirar-nos de Ganimedes onde Roric, Lena e Kai acabaram de…? Isso não parece proteger nada sagrado. Parece… inútil. Uma ‘vigília sagrada’?” Ele bufou, a ironia retornando. “Ou só um jeito de nos tirar do caminho?”.
“É uma vigília num cemitério esquecido”, concordou Anya secamente, remontando sua pistola com um clique metálico satisfatório e final.
Ela se inclinou ligeiramente para frente sobre a mesa, sua voz baixando para um tom conspiratório, dirigido principalmente a Zeon. “Pense nisso, Zeon. Taticamente. A frente de batalha em Io está um inferno absoluto. Perdemos três cruzadores só na semana passada, fora as perdas de Kations e infantaria. E eles tiram sua melhor unidade de assalto pesado, a única especializada em combate de mechas em ambientes de baixa gravidade como as luas de Júpiter , e nos enviam para uma maldita missão de guarda num sistema morto? Não faz o menor sentido tático. É como usar um bisturi a laser de precisão para martelar um prego enferrujado. É um desperdício criminoso de um recurso valioso e escasso. A menos,” ela fez uma pausa significativa, seus olhos escuros e penetrantes encontrando os dele por cima da mesa, “que o prego não seja o verdadeiro alvo”.
Jax bufou novamente, descartando sua tentativa anterior de racionalizar a ordem. “Fundação do edifício? Que se dane a fundação se a casa toda está pegando fogo em Io!”. Ele passou a mão pelo cabelo curto, agitado.
“A única ‘ameaça iminente’ que eu vejo é para nós, Anya. Talvez a matemática do Alto Comando seja simples: três sobreviventes valem menos do que uma frota inteira? Talvez a ‘melhor ferramenta’ seja justamente a que eles podem se dar ao luxo de perder?”. A amargura em sua voz era palpável, a fé abalada pela lógica fria da guerra que ele estava começando a entender tarde demais.

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