Capítulo 5: Sussurros na Dobra
A amargura na voz de Jax pairou no ar tenso do refeitório, um eco sombrio da fé abalada de um jovem soldado confrontando a lógica fria da guerra. A ideia de que eles, a “melhor ferramenta”, pudessem ser justamente aqueles que o Alto Comando podia se dar ao luxo de perder, ficou suspensa entre os três sobreviventes como uma sentença não dita.
Anya ergueu o olhar das peças meticulosamente dispostas de sua pistola de plasma, um reconhecimento sombrio em seus olhos experientes. Ela pegou o fio da meada de Jax, mas o torceu em algo ainda mais frio, mais sinistro.
“Ou talvez a ferramenta seja o alvo”, disse ela, o tom agora desprovido de qualquer zombaria anterior, substituído por uma suspeita gélida que fez até Zeon sentir um calafrio. Um sorriso sombrio e sem alegria torceu seus lábios enquanto seu olhar passava do rosto pálido de Jax para o semblante impassível de Zeon novamente.
“Talvez eles não estejam nos enviando para proteger a Forja coisíssima nenhuma. Talvez estejam nos enviando diretamente para uma armadilha”.
Ela fez outra pausa dramática, seus olhos escuros fixos no rosto impassível de Zeon, procurando desesperadamente por qualquer sinal, qualquer reconhecimento tácito da verdade perigosa que ela estava verbalizando.
Quando não encontrou nada além da mesma exaustão estoica e controlada de sempre, uma máscara que ele aperfeiçoara ao longo de séculos, seu sorriso vacilou por um instante, a especulação cínica solidificando-se numa possibilidade terrivelmente real em sua mente experiente. “Talvez nós sejamos parte do pacote sacrificial”.
Jax passou as mãos pelo cabelo curto, a frustração e a confusão estampadas em seu rosto jovem. Ele bateu o punho fechado, mas sem força, na mesa de metal.
“Eu não entendo!”, ele explodiu, a voz carregada de uma angústia que ia além da simples raiva. “Eu acredito em Adel. Acredito na Guerra Santa, no nosso propósito. Mas… isto?”. Ele gesticulou para o vazio ao redor, indicando a missão absurda.
“Ser arrancado da luta real, onde nossos irmãos morreram, para… para Saturno? Como isso se encaixa no plano divino? Como não ir para Io agora nos leva à vitória? Parece… errado. Ou somos peões num jogo que não entendemos, ou… ou há algo que não nos contaram”. A fé ainda queimava em seus olhos, mas agora estava cercada por uma sombra de dúvida e ressentimento.
Zeon finalmente falou, sua voz um barítono baixo e cansado, mas firme, cortando a tensão crescente entre seus dois subordinados como uma lâmina fria. “Ou talvez não haja pacote nenhum. Talvez seja apenas política imperial, como sempre. Um nobre qualquer querendo mostrar serviço, movendo peças irrelevantes no tabuleiro para parecer importante para a corte. Já vimos isso acontecer antes, dezenas de vezes. A campanha desastrosa de Dione foi estendida por três malditos meses só porque um almirante incompetente precisava desesperadamente de uma ‘vitória’ para sua promoção”.
Ele olhou de um para o outro. Anya, a veterana, sua âncora cínica e pragmática no mundo real, cuja desconfiança era um espelho sombrio da sua própria. Jax, o novato… idealista, sim, mas agora com o fogo de sua fé vacilando, questionando as mesmas ordens que ele próprio sentia cheirarem a traição.
Os rostos sem vida de Roric, Lena e Kai pairaram por um instante doloroso em sua mente, uma ferida fresca sobre a cicatriz antiga de seu passado.
Eles eram tudo o que restava de sua unidade. Os únicos que sobreviveram ao inferno recente em Ganimedes. Eram sua responsabilidade. Sua família substituta, no único sentido distorcido que a palavra ainda tinha para ele.
A fé do garoto… antes tão pura, quase cega, agora estava claramente abalada, confusa. Ele ainda se agarrava à doutrina, mas a realidade brutal da guerra e a lógica falha do comando começavam a corroer suas certezas. E por algum motivo inexplicável, ver essa dúvida florescer em Jax o aterrorizava ainda mais profundamente do que a fé cega.
Havia um alarme silencioso enterrado em sua alma que gritava em protesto sempre que a doutrina de Adel era invocada, mesmo que agora com hesitação. Uma repulsa visceral, uma necessidade quase física de proteger aquele garoto não apenas do inimigo, mas do próprio Império que o estava moldando.
Zeon não entendia completamente o porquê dessa reação. Era apenas… uma parte intrínseca dele. Uma cicatriz profunda em sua alma, cuja ferida original ele não conseguia se lembrar, apenas sentir o latejar constante.
Ele olhava para Jax e via não um soldado promissor começando a questionar, mas um cordeiro ainda mais perdido, balindo confuso enquanto era levado para um altar sacrificial que ele, Zeon, conhecia intimamente em seus pesadelos, mas não conseguia descrever em palavras. E isso o enchia de um instinto protetor feroz, quase paternal, que era uma dor física em seu peito.
Ele precisava mantê-los seguros, Anya e Jax, longe desta missão que cheirava a problemas, a ordens ilógicas, a algo muito errado. Mas ele era um soldado. Um Capitão da Hegemonia Humana. E soldados obedecem ordens, mesmo as que os levam para a morte. Era a única lei que restava em seu universo quebrado. Questionar era o primeiro passo para a dúvida, e a dúvida era o caminho para o abismo que ele lutava tanto para manter trancado.
“Não importa o porquê”, disse Zeon, sua voz agora desprovida de emoção, cortando qualquer outra discussão com a autoridade final do comando.
“Nossa missão é chegar a Saturno, avaliar a situação no Pavilhão e estabelecer um perímetro de segurança. Anya, quero que você faça uma varredura completa e profunda de todos os sistemas de comunicação do Pavilhão assim que chegarmos. Procure por qualquer coisa fora do comum: transmissões fantasmas não autorizadas, interferência inexplicável, silêncios onde deveria haver ruído constante. Jax.”.
Ele se virou para o piloto mais jovem, encontrando seu olhar ansioso com firmeza. “Você é a nossa ponta de lança. Seu ‘Martelo’ é nosso aríete. Em qualquer ponto de entrada hostil, você abre o caminho, e nós exploramos a brecha. Sua blindagem é a mais pesada, então você é o nosso escudo móvel. Mantenha-se na frente, proteja nosso avanço tático e esmague impiedosamente qualquer coisa que se mova e não use nosso uniforme. Entendido?” .
O rosto de Jax se iluminou instantaneamente com o propósito renovado, a dúvida substituída pela determinação. “Entendido, Capitão! Serei seu escudo e sua espada!”.
“Bom”, disse Zeon, levantando-se da mesa, o metal de sua armadura rangendo. “Agora vão descansar. Tenho um mau pressentimento sobre isso tudo”. A última frase escapou antes que pudesse contê-la, um vislumbre raro da preocupação sob a máscara do comando.

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