Ele os deixou no refeitório austero, o eco de suas últimas palavras — “Tenho um mau pressentimento sobre isso” — pairando desconfortavelmente no ar como uma névoa fria. Enquanto caminhava pelos corredores cinzentos e impessoais da Nasus, o mau pressentimento não era apenas uma avaliação tática baseada em ordens suspeitas. 

    Era algo mais profundo, mais visceral. O sonho persistente. A memória fragmentada daquele massacre esquecido. A dor fantasma que ainda pulsava em seu estômago em momentos de estresse. 

    Era como se o próprio universo, ou algo dentro dele, estivesse tentando lhe dizer algo, um aviso urgente sussurrado no eco de seu próprio sangue roubado ou fabricado. Mas a mensagem estava corrompida, ilegível, perdida na estática de sua própria mente quebrada.

    ***

    A porta dos aposentos de Anya se abriu com um silvo suave quando ele se aproximou, o sensor de proximidade reconhecendo sua assinatura de comando. Ela não se virou. Estava sentada na beira de sua beliche estreita, vestindo apenas uma regata preta justa e calças cargo militares gastas. 

    A luz fraca e indireta do pequeno quarto iluminava sua pele escura e os músculos definidos de seus ombros e do braço direito nu, músculos esculpidos por anos de treinamento implacável e combate real. Seu cabelo preto era curto, um corte prático e militar que acentuava as linhas angulosas de seu rosto concentrado. 

    Ela era uma mulher de estatura média, mas construída com a densidade funcional de uma atleta de elite, cada fibra de seu ser afinada e pronta para o combate a qualquer momento. Em seu colo, repousava o brilho metálico frio de seu braço esquerdo protético, desconectado na altura do ombro. Com sua mão direita, de carne e osso, ela tentava meticulosamente ajustar um micro-atuador teimoso na junta do cotovelo biônico com uma chave de fenda sônica.

    “Se um dia você aprender a bater antes de entrar, Capitão, eu vou saber que o império finalmente venceu e esmagou a última centelha de rebeldia em sua alma”, disse ela, sem levantar o olhar, um sorriso zombeteiro e familiar em sua voz, mesmo enquanto lutava com o mecanismo.

    Zeon entrou, deixando a porta deslizar e fechar-se silenciosamente atrás dele. O quarto dela era tão espartano e funcional quanto o dele, mas possuía um caos organizado que falava de sua personalidade. 

    Peças de armas recém-limpas e lubrificadas dispostas ordenadamente em uma esteira magnética na parede; um datapad aberto sobre a pequena escrivaninha, exibindo mapas táticos complexos de Mimas, a lua de Saturno que orbitava o Pavilhão; e na parede acima da beliche, presa com fita adesiva gasta, uma única foto holográfica antiga e desbotada. 

    Nela, cinco figuras jovens em armaduras de combate sorriam para a câmera, seus capacetes sob os braços suados. Ele e Anya, visivelmente mais jovens, os rostos ainda não tão marcados pela guerra. E três outros rostos sorridentes — Roric, Lena, Kai — que agora eram apenas fantasmas, ecos dolorosos em uma imagem desbotada.

    “Se eu batesse, você provavelmente atiraria através da porta por puro reflexo”, respondeu ele, sua voz inesperadamente mais suave agora que estavam sozinhos, a formalidade do comando se dissipando na familiaridade. “E, como você mesma gosta de lembrar, você tem uma mira muito boa”.

    “A melhor”, ela concordou sem falsa modéstia, soltando um suspiro frustrado quando o atuador se recusou a ceder sob a ferramenta sônica. “Então, o que te traz ao meu humilde buraco de metal no meio da Dobra, Capitão? Veio me dar mais ordens sem sentido para uma missão suicida no fim do universo conhecido, ou apenas veio admirar a vista?”. Sua zombaria era uma armadura tão eficaz quanto a cerâmica de seu Kation.

    Ele se aproximou e sentou-se ao lado dela na beliche estreita, o metal rangendo sob o peso combinado de seus corpos e armaduras internas. Ele não disse nada por um momento, apenas pegou gentilmente o braço protético pesado de seu colo. 

    O metal era frio ao toque, mas estranhamente familiar, quase uma extensão dela mesma em sua mente. Ele pegou a chave de fenda sônica da mão dela e, com um toque experiente nos controles minúsculos, ajustou a frequência da vibração sônica. 

    O zumbido agudo da ferramenta mudou de tom ligeiramente, e o atuador teimoso finalmente cedeu com um clique suave e satisfatório.

    “Você sempre aperta demais esses parafusos de ajuste”, disse ele, sua voz um murmúrio baixo e íntimo enquanto seus dedos ágeis começavam a trabalhar nos delicados mecanismos internos expostos do braço biônico, um conhecimento nascido de anos ajudando-a com a manutenção.

    “E você sempre sabe como consertar”, ela respondeu, relaxando visivelmente um pouco ao lado dele, a tensão em seus ombros diminuindo. 

    O calor de seu corpo era um contraste bem-vindo com o metal frio em suas mãos. Eles ficaram em silêncio por um longo momento, o único som sendo o zumbido baixo da chave de fenda e o murmúrio distante e subsônico da nave rasgando a Sub-realidade.

    “Você também sente, não é?”, ela perguntou finalmente, sua voz perdendo completamente a zombaria usual, tornando-se baixa e séria. “Isso… não é uma missão de guarda. É algo mais. Algo podre”.

    “Não”, ele admitiu relutantemente, seus olhos ainda focados no intrincado trabalho mecânico, evitando o olhar dela. “Não é”.

    “Ganimedes…”, ela sussurrou, o nome da lua pairando no ar entre eles como uma maldição recém-pronunciada. 

    “Eu continuo vendo os rostos deles, Zeon. Roric… Lena… Kai… Eles confiaram em mim. Meu trabalho era a vigilância. Eu era os olhos da unidade. Eu deveria ter visto aquele flanco se formando. Eu deveria ter avisado a tempo”. Sua voz começou a se quebrar, a culpa crua finalmente rompendo sua compostura habitual.

    “Foi o caos da batalha, Anya”, disse ele, repetindo as palavras vazias que dissera a si mesmo e a ela mil vezes desde aquele dia fatídico. 

    “Ninguém poderia ter previsto aquele ataque”.

    “Eu teria visto!”, ela insistiu, sua voz agora embargada, as lágrimas que ela se recusava a derramar tornando seu tom áspero. “Se eu estivesse onde deveria estar. No meu posto. Se eu não estivesse… distraída. Tentando salvar sua bunda teimosa”.

    Zeon parou de trabalhar abruptamente. 

    Ele sabia exatamente do que ela estava falando. A memória era tão nítida e dolorosa quanto a dor fantasma em seu estômago.

    Ganimedes.

    Uma emboscada brutal num cânion estreito de gelo e rocha. O Kation dele, o ‘Espectro’, cercado por múltiplos inimigos, os escudos de energia falhando sob o fogo concentrado. E Anya, abandonando sua posição de sniper segura em um cume a quilômetros de distância, mergulhando de forma imprudente e suicida no meio do caos para salvá-lo, deixando o resto da unidade completamente cega para o ataque que veio pelo flanco desprotegido.

    Ele colocou o braço protético cuidadosamente de lado na beliche e se virou para encará-la. “Anya…”.

    Ela não o deixou falar, não o deixou oferecer o perdão que ele sabia que ela não aceitaria. Em um movimento rápido e fluido, ela se moveu, envolvendo-o por trás, seu único braço forte e quente apertando seu peito com uma força desesperada, sua bochecha pressionada firmemente contra as placas frias de suas costas. Ele podia sentir o tremor fino percorrendo o corpo dela, a manifestação física de uma culpa profunda que ela carregava como uma segunda armadura, mais pesada que qualquer metal. 

    Zeon permaneceu imóvel por um longo momento, permitindo o contato, o cheiro familiar de seu cabelo, o calor de seu corpo contra o dele, uma âncora inesperada e bem-vinda em um universo que parecia estar se desfazendo ao seu redor.

    O homem se sentou em silêncio, o braço protético esquecido ao lado deles, enquanto ela o abraçava por trás, buscando um consolo que ele não sabia se podia oferecer. Lentamente, ele se virou dentro do abraço dela, seus rostos agora a meros centímetros de distância. Seus olhos castanhos escuros, normalmente tão calculistas e cínicos em batalha, estavam agora cheios de uma vulnerabilidade crua e dolorosa que apenas ele, em raros momentos como este, tinha permissão para ver. 

    Ela se inclinou, seus lábios se aproximando hesitante dos dele, o mundo vasto e hostil se resumindo àquele pequeno espaço íntimo entre eles, à troca silenciosa de suas respirações. A pergunta silenciosa pairava entre eles: até onde a culpa e a necessidade os levariam desta vez?

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