Ano 10.346, 24 de Mensis Sacrificium, EBT.

    A Nasus saiu do Dobramento com um solavanco violento que fez as placas do casco rangerem como ossos velhos a quebrar. A quietude súbita que se seguiu foi mais perturbadora do que o zumbido constante e enlouquecedor da viagem sub-real. Zeon já estava na ponte de comando, a disciplina férrea do soldado superando a exaustão profunda de seu corpo e alma após a noite anterior. Anya estava ao seu lado, seu braço protético recém-calibrado conectado diretamente a um console tático, seus olhos castanhos e penetrantes fixos nos fluxos complexos de dados que apareciam na tela holográfica. Jax estava um passo atrás, seu olhar dividido entre o profissionalismo tenso exigido pela situação e a admiração quase religiosa de um peregrino se aproximando de um lugar sagrado.

    No visor principal da ponte, Saturno pairava, um gigante gasoso majestoso e indiferente, seus anéis icônicos um disco vasto de gelo e poeira que cortava a escuridão do espaço como a lâmina de uma foice cósmica. E em órbita de uma de suas luas menores e geladas, Mimas — marcada por uma cicatriz colossal em forma de cratera que encarava o vazio como um olho morto —, flutuava o Pavilhão de Adel.

    Era uma fortaleza-templo, uma relíquia imponente e sombria da Era da Expansão. Agora, parecia mais um mausoléu do que uma base militar ativa. Sua arquitetura era antiga, deliberadamente gótica, com torres altas de metal negro que perfuravam o vácuo e vitrais blindados e opacos que não viam a luz de uma estrela há séculos. Emanava uma aura de silêncio profundo e macabro, um túmulo flutuante no gelo.

    “Nenhum contato com o Pavilhão, Capitão”, relatou o oficial de comunicações da ponte, sua voz soando estranhamente alta e tensa no silêncio opressivo que se instalara. “Todos os canais abertos, sem qualquer resposta. Os Guardiões não estão respondendo aos nossos chamados”.

    “Impossível”, murmurou Jax, sua voz uma mistura dissonante de perturbação genuína e reverência quase infantil. “Os Guardiões mantêm uma vigília de oração perpétua. Seus cânticos sagrados são transmitidos continuamente em uma frequência de baixa latência para toda a frota como um sinal de fé. O silêncio… é uma blasfêmia. Uma profanação”. Ele se aproximou do console de Zeon, sua ansiedade religiosa superando o protocolo militar. “Capitão, devemos ir imediatamente. Algo está terrivelmente errado. Algo está profanando aquele lugar sagrado”.

    “Acalme-se, Jax”, disse Anya rispidamente, sem tirar os olhos de seu próprio console. Um brilho complexo de dados verdes e vermelhos refletia em seu rosto concentrado, mas sua expressão era de alarme crescente. “Não é apenas silêncio de rádio. É um vácuo completo. Sem transmissões de qualquer tipo. Sem assinaturas de energia detectáveis, nem mesmo as de suporte de vida. Sem vazamento de radiação residual do reator principal. Nada. Taticamente falando, Capitão, este lugar não existe mais. É um buraco negro nos meus sensores”.

    Zeon sentiu um calafrio percorrer sua espinha, um arrepio que nada tinha a ver com a temperatura da ponte. Trezentos anos. Por trezentos longos anos, uma unidade de elite da Ordem dos Guardiões, monges-guerreiros fanáticos e dedicados, guardava aquele lugar sagrado e esquecido. Silêncio de rádio era impensável para eles. Um blecaute total de energia era uma impossibilidade tática numa instalação daquela importância, mesmo que simbólica. O mau pressentimento que o atormentava desde que recebera as ordens se transformou num nó frio de gelo em seu estômago.

    “Abra um canal seguro diretamente para o Comandante Hesperus, aqui a bordo desta nave”, ordenou Zeon secamente ao oficial de comunicações. “Criptografia Nível Sombra”.

    O oficial hesitou por um instante, seus olhos se arregalando visivelmente sob as luzes da ponte. “Senhor, um canal Nível Sombra requer autorizações múltiplas e…”

    “Eu sei perfeitamente o que requer. Abra o maldito canal”, disse Zeon, sua voz baixa, mas não deixando o menor espaço para discussão.

    Após alguns segundos tensos de estática e cifras de segurança piscando, o rosto pálido, magro e impassível de Hesperus apareceu em um pequeno visor privado no console de Zeon. “Capitão. Uma comunicação não programada e fora do protocolo. Presumo que você tenha notado a… anomalia”. A voz do comandante era calma, quase entediada.

    “Anomalia?”, rosnou Zeon, a fúria fervendo sob sua disciplina. “Eu chamo de um cemitério flutuante. O Pavilhão está morto, silencioso e frio. O que diabos está acontecendo aqui, Comandante?”.

    “A situação é, de fato, mais delicada do que suas ordens iniciais sugeriam”, disse Hesperus, sua voz calma e professoral, como se estivesse explicando uma equação complexa para um aluno lento. “Há aproximadamente 78 horas padrão, nossos sensores de longo alcance detectaram uma flutuação quântica sutil, porém distinta, emanando diretamente do Pavilhão. Uma assinatura de energia anômala que não corresponde a nenhuma tecnologia conhecida da Hegemonia ou, crucialmente, da Coalizão. Durou exatamente 17 minutos e depois cessou abruptamente. Desde então, registramos uma ausência total e inexplicável de quaisquer sinais”.

    “E você não achou pertinente nos informar que estávamos voando cegamente para o meio de uma anomalia quântica desconhecida?”, cuspiu Zeon, o protocolo esquecido em sua raiva crescente.

    “A informação foi classificada no nível mais alto, Capitão. Acima de sua autorização”, Hesperus respondeu friamente, uma repreensão velada. “A natureza real de sua missão é de reconhecimento e contenção, não de simples patrulha. Suspeitamos que a flutuação detectada possa ser um sinal de instabilidade perigosa no próprio Coração Quebrado — ou, um cenário consideravelmente pior, uma tentativa externa bem-sucedida de sondá-lo ou acessá-lo. O silêncio dos Guardiões pode ser um protocolo de segurança extremo que eles iniciaram… ou,” a pausa de Hesperus foi perfeitamente calculada para máximo efeito, “pode ser uma consequência direta e fatal do evento”. 

    “Sua missão, Capitão Zeon, é descobrir qual dessas duas possibilidades aterradoras é a verdade. Você é a ponta de lança. Seus olhos são os meus olhos. Proceda com extrema cautela, mas proceda com a máxima urgência. O destino da relíquia mais sagrada da humanidade pode estar em jogo”.

    A comunicação se encerrou abruptamente. A explicação era lógica, coesa. Fazia sentido tático. E cada fibra do instinto de soldado veterano de Zeon gritava que era uma mentira bem construída. “Reconhecimento e contenção,” pensou ele com uma amargura crescente. “Palavras bonitas.” Mas era uma mentira que vinha com o peso inegável de uma ordem direta do Alto Comando. Uma ordem que ele não podia recusar.

    “Prepare imediatamente as tropas de desembarque”, ordenou Zeon para a ponte, sua voz agora desprovida de qualquer questionamento, fria e profissional novamente. “Minha unidade vai na frente”. Havia algo terrivelmente errado naquela missão, ele sentia nos ossos, mas ordens eram ordens. E ele as cumpriria, mesmo que o levassem direto para o coração do perigo desconhecido.

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