Capítulo 1: Um frango desempregado
Diversas vezes, eu lia livros sobre animais carnívoros, suas mandíbulas e a loucura por picanha. A escola ensinou a como reagir, caso tenha sorte de brigar com essas feras: “Fuja ou se renda!” dizia a professora em sala, e eu empenava. Embora, as possibilidades são baixas (mas nunca zero), pois os “comedores de carne” vivem no outro lado duma fronteira de concreto. Um muro colossal de 50 metros, tão insana que nem as girafas passam a cabeça. É o forte de nós herbívoros. Caso quem esteja lendo seja um humano, talvez não seja muito diferente de como penso. Se você for até a sua geladeira, talvez encontre algum da minha espécie (certamente morto)… sou um frango! Com um nome, prazer, Raoni.
Nós, animais antropomórficos, fazemos coisas como os homens: vestir roupas, ganhar dinheiro, trabalhar, se relacionar. Por isso a denominação de “sociedade complexa” não é mais dada aos humanos, mas abrange boa parte do reino animal. Vocês não estão mais no topo…
Os herbívoros também são cruéis. Na minha juventude estava com o bico mole. Sempre os bonitos, como os pavões, e os fortes como os cavalos, passam nos empregos, recebem punições brandas, e muitos benefícios (além de ficarem com as melhores fêmeas). Já os domésticos, como os cães (exceto os puros) e frangos, apenas se dedicam a miseráveis trabalhos urbanos e alguns a baixa política. Se eu fosse forte, talvez eu seria lutador de rinha e pegaria muitas galinhas. Portanto, minha juventude é apenas esquecível, sendo muito bem resumida em ficar na frente de alguma tela e comendo milho de aroma de pizza. Nada me interessava, exceto jogos e um tabu… o mundo dos carnívoros.
Ponderava desde a infância; como diabos os predadores produzem seus alimentos se vivemos em um mundo civilizado? Era impossível saber, a fronteira de concreto filtrava as notícias. Nada do que contavam na escola ou na TV era totalmente verdade. Por isso, eu e meus amigos inventamos as mais bizarras teorias, tudo por diversão. Um exemplo das conspirações mais legais (e tontas) era um modo de explicar o alto índice de cidadãos desaparecidos: alguns herbívoros sequestravam animais de corte, e vendiam no mercado negro. A maioria dos sumiços ocorria com bois, porcos, bezerros e etc, justamente as carnes mais valorizadas pelos carnívoros (segundo meus professores).
Enfim, fiquei adulto com diploma e sem carteira assinada, assim como quase todo jovem de minha geração. Metralhava currículos em toda empresa que encontrasse pela frente. E como sou ruim de mira! Queria a pontaria de sobrinhos de gerente…..
E mamãe começou fechar o tempo:
— Ó, filhote, quando vai botar as asinhas pra voar? — Toda vez que eu sentava no sofá para relaxar após um cansativo dia inteiro de fazer nada vinha essa clássica. — Já faz 5 meses que terminou a escola e está aí boiando na vida, só chupando o dinheiro do pai. E não vi nenhum movimento teu…
— Bom, o Amaril, colega meu, diz que está precisando de um entregador no restaurante do pai dele. Estou resolvendo isso…
Ah, ela engolia a raiva e se acalmava por um momento. Uma pena que o restaurante do pai do Amaril tinha fechado há uma semana antes dessa conversa.
Mas é claro, eu corria muito para encontrar trabalho.
Durante uma noitada na internet, achei um diamante bruto. Uma vaga de emprego com poucas exigências e salário bem gordo, uma lista quilométrica de benefícios, e escala 5×2 apenas para ser repositor de supermercado. Era o maior sonho de um CLT herbívoro médio. Parecia um golpe para o pato cair, e lá vai eu trouxa. Mas tinha um porém… era naquela região “proibida”, tal prêmio não era à toa. Meu rabo se levantou, não poderia soltar essa oportunidade: ganhar grana e conhecer o outro lado do muro! Noutro dia, corri ao centro de imigração para obter o visto.
— Oh, fique tranquilo, ok? Lá é bem seguro, você não será devorado! Por favor, fique tranquilo! — Foi o que eu mais ouvi das atendentes histéricas. Eu não me importei, apenas estava exausto de ficar numa fila quilométrica.
Meus pais, irmãos e amigos suaram frio diante do absurdo… ir ao mundo dos carnívoros! Ainda mais um frango! “Wooow! Alguém vai virar nuggets não é mesmo?”. Tentaram me convencer, mas já estava de saco cheio. Quando eu fazia a dança dos desempregados todos me alfinetavam, mas depois que larguei o baile questionaram minha sanidade mental. Naquela época, meu instinto era de contrariar a opinião alheia, como todo jovem dinâmico e mentecapto. Assim, apressei os preparativos, comprei passagens e reservei um apartamento. Era logo no próximo mês…
Tirar o visto para o mundo dos carnívoros era ironicamente fácil, só se pagava algumas taxas inúteis. No entanto, descobri recentemente que o contrário não é possível. Isso explica o porquê nunca vi um leão ou tigre passeando no mundo dos herbívoros.

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