Capítulo 4: Meu bicho de estimação
Quando os humanos eram dominantes, muitos deles tinham animais de estimação. Basicamente, é um bicho com serventia de companheirismo e divertimento. Por exemplo, nas fazendas usavam cachorros para pastorear e como guarda, ou nas cidades é só para brincar. Essencialmente, um bicho de estimação difere de amigos ou filhos: não fazem cara de desaprovação, são fiéis até o inferno, (quase) qualquer coisa que fizer pra comer os agrada. Eu me recordo de ter visto algo na televisão quando menor, mas nunca havia entendido mesmo depois das penas engrossarem. Mas algo mudou quando fui ao mundo dos carnívoros: minha amizade com Andor, que se entrelaçou com o rolar dos meses. Nesse intervalo, aprendeu a dizer o próprio nome e a responder aos meus chamados. Nos finais de semana, brincávamos de bola, num parque abandonado. Eu acordava após às 10h e acariciar ele me fazia acalmar. Andor se tornou um animal de estimação? Mas eu não ando com ele numa coleira, como os cachorros.
Eu também me questionava se Andor gostava de mim. Animais de estimação não conversam com seus donos…
— Claro que gosto! — e ele corre até mim — vou gostar ainda mais se hoje vamos brincar de bola no parque!
— Ah, sim, só não grite. Não gosto de chamar atenção…
Ele aprendeu a falar numa fagulha, fiquei um tanto feliz e assustado. O que essa espécie é capaz? Ah e ele cresceu! Embora os humanos tenham um ritmo de crescimento lento, Andor engordou bastante. Sinceramente até demais. Me incomodava a possibilidade de Andor ter tomado hormônios anabolizantes quando novo, caso ele fosse um animal de abate. Afinal, o ganha de massa é apenas temporário, mas suas consequências do uso ficam para sempre.
E, ao mesmo tempo, me encorajei a ir ao outro mercado da cidade, sozinho, comprar a “carne universal” para minhas experiências. Era um tanto bisonho as atendentes olhando minha compra e depois para mim. Todavia era necessário.
Nas noites de sábado, quando Andor dormia, fazia experiências. Basicamente, eu comia a “carne universal”, donde vinha toneladas de memórias nunca vivenciadas. Algumas eram razoáveis, mas a maioria eram tão desgraçadas que me vinha uma sensação insuperável. Algo muito estranho, afinal, sempre acreditei que alucinações sempre se baseiam no que já foi visto. Mas o desfecho sempre era o mesmo, vomitava como uma cachoeira, era o efeito colateral. E depois, sentado no chão do banheiro, olhando por dez minutos o vaso todo melecado. O ar ficava pesado, era necessário um grande esforço para puxar o ar adentro dos pulmões. De certa forma, me estimulava a não olhar para cima, com medo de algum castigo divino.
Logo eu levantava e anotava em documentos tipo PDF ‘s tudo o que vi e senti. Não cheguei a nenhuma conclusão definitiva, somente uma hipótese: aquelas lembranças psicóticas vinham da carne humana que comi. Uma das evidências era que em algumas alucinações eu via outros humanos, trancados em celas no estilo industrial, com potes de comida em quantidade quase infinita. Ou seja, é como uma linha de produção. Impossível de se tentar confirmar, mas não desisti.
E logo após as experiências, fitava Andor dormindo, por uns 10 minutos. E mais nada. Era incrível olhar meu bichinho de estimação, talvez humanos não sejam tão feios assim. Mas era bizarro saber que experimentei a carne de sua espécie como um predador (embora não engolia), e eu o amava como companheiro. Será que pode fazer relação com os humanos que viviam em zonas rurais, onde tinham galinhas de estimação ao mesmo tempo que matavam para comer?!
***
Em um episódio marcante com Andor, começou no nascimento de um belo sábado, e eu querendo dormir. E lá vinha ele de novo:
— Vamos ao parque?
— Não, hoje Raoni não está bem — respondi sem olhar, capotado no sofá de exaustão das experiências. Não posso negar que eu sentia vergonha…
— Quer remédio? — perguntou meu bichinho, tentando encontrar uma solução.
Não, eu não precisava. Dormir era mais que o suficiente. Entretanto, isso não importava a Andor, que me forçou a tomar os remédios. Um beijinho e outro abraço melecado. E após isso, meu disjuntor caiu, eu não ouvia, via, sentia ou cheirava nada. Com certeza, meu ronco lembrava o barulho de um motor diesel.
Acordei. E Andor não estava no meu quarto. Nem no banheiro. Muito menos dentro da privada. Minha honesta reação diante disso foi…
(Insira aqui uma expressão deveras assustada)
Saí do apartamento, alucinado e enxergando as cores desbotadas. Primeiramente corri pelos arredores do prédio, que não encontrei nada. Decepcionado, fui para a rua, e logo no portão dei de cara com uma velha garça moradora. Perguntei a ela se tinha visto um humano em tamanho P, e me respondeu positivamente apontando a direção: a mesma do parque que sempre ia, então a resposta era óbvia. A velhata nem começou a falar e eu disparei. Quem disse que galinha não voa? Fiquei 6 segundos no ar para ser mais rápido do que andando!
Quando cheguei, lá estava Andor. Brincando sozinho em um balanço, que rangia pela falta de lubrificante. Fiquei um pouco longe, observando, contudo, ele não me reparou. Era algo mágico. Mas ver a brincadeira do meu companheiro logo acabaria. Passou por trás de mim, um casal de hienas, que viu Andor e cochicharam:
— Ei, aquilo é uma carne universal viva? — perguntou a fêmea — esses bichos não estavam extintos?
O macho, super interessado na conversa fiada, disse um OK sem olhar no rosto da sua mulher e seguiu a vida.
— Eu queria experimentá-lo. Afinal, a carne fresca tem gosto diferente da versão congelada — o macho pouco se lixou com isso e seguiu o caminho. Em resposta, a fêmea parou de caminhar, cruzou os braços e rosnou, batendo os pés. O marido percebeu e virou para trás, e ao se deparar com o “coiso” do mal, fez uma expressão de derrota. Quase se ajoelhando, se indagou o que a esposa desejava. A hiena respondeu:
— Cace minha carne fresca — ela apontou a Andor. Ah, não.
A hiena macho suspirou e foi ao parque. Faça o que sua mulher manda ou morra, não é mesmo? Chegando na frente do menino, o ranger do balanço parou. Não consegui ver mais Andor, pois as costas da hiena, largas como uma geladeira, tapava tudo. Eu precisava largar minha passividade, mas estava contra uma máquina de moer carne. E eu sou uma carne suculenta e saborosa. Não importava, fui até lá tomar a iniciativa:
— Ah… olá? Eehhh… gostou de meu amigo?
— Ah, olá! — o macho me cumprimentou com um rosto sofrido — esse é teu amigo? Oh, céus, minha mulher quer comer ele!
Bom, não bastava convencer que Andor não é churrasco? Teoricamente, sim, mas a hiena macho justificou que era impossível, e apontou-lhe à esposa, a rainha que jamais poderia ser contrariada. Entretanto, o esposo não queria ser acusado de quaisquer crimes. Conversamos um pouco sobre estratégias (coisa de homens), mas chegamos em um consenso: se eu fosse lá conversar com a besta, talvez nada de mortal aconteceria.
Chegamos a frente da hiena fêmea, e eu sofrendo carregando Andor no colo. Ela me analisou dos pés até minha crina e depois mirou nos olhos: quem é esse frango com um humano nos braços? Ah, bom…
— …E esse é meu humano que estou cuidando por esses dias — disse eu terminando tal explicação.
— Mas seu Raoni, eles são para comer, não são? — Era muito doce essa hiena, sua voz lembrava arranhar um quadro verde nas unhas.
— Talvez os outros humanos, mas esse aqui não, é parceiro demais. — E Andor soltou um sorrisinho, olhando para mim.
Então, ela indagou o óbvio: você adotou como filho?! Que absurdo! Não, não! Ele é meu animal de estimação, é meu companheiro. Ele ocupa o tédio, a depressão e a ansiedade de minha vida… ora, mas o que é animal de estimação? Tive que explicar isso também, aff… queria minha casa. Mas o céu já se tornava alaranjado.
— Ok, por quanto você vende para mim?
Hã? Vender? O bicho que salvei da morte, iria vender a amizade por um punhado de dinheiro? Imediatamente iria atacá-la e:
— 8.000 Nozes, aceita?
Eu, por exemplo, ganhava 3.800 Nozes por mês naquele mercado e era considerado um salário supimpa. Agora, 8.000?! Bom, raciocinei um pouco e… 12 mil! A hiena berrou e aumentou o lance! Perguntou novamente, quase encostando seu focinho no meu bico e não respondi nada, apenas gaguejei em algum linguajar não identificável. Com uma resposta neutra, ela sacou o celular e já estava abrindo o aplicativo do banco. Bom, talvez não seja tão ruim… seria a primeira vez que minha conta atingiria 5 dígitos. Mas Andor interveio:
— Wow! 12 mil é muito dinheiro! Papai, vamos comprar muita comida! Por que não aceita logo?
Ah, você não entenderia.
O macho hiena diria algo à tua esposa dominante, mas antes resolvi tomar o ataque. Num lance, coloquei Andor nas minhas costas e saí em disparada. Não olhei para meu “retrovisor”, com medo de ver os olhos do capeta. Virei numa rua à direita e como decolar de um avião de caça, pulei o muro de um terreno abandonado. Uma pena que meu avião de caça voa apenas 5 metros, e com carga adicional tal alcance se reduz: meus pés bateram no muro e capotei com minha carga. Mas graças a minha sorte natural, não tive ferimentos graves, apenas perdi algumas penas. Entretanto, ouvi berros por trás do muro, alguém estava sendo arrastado para os portões do inferno… o macho hiena devia amar a sua esposa.
Voltando para o apartamento, eu matutei se toda aquela fuga era necessária. Admito, o remorso era uma âncora. Mas o importante é que Andor estava salvo…
— Poxa, mas eu ia brincar com novos amigos! — e ele afundou na decepção.

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