Relembrar acontecimentos nunca vivenciados, me tornou uma obsessão, um vício, assim como meu companheiro Andor. Cada vez mais íamos ao parque brincar, inclusive durante o meio de semana. Cada vez mais passava a fazer minhas experiências, comecei a fazer só aos sábados e depois aos domingos também. Institui comer a carne crua, pois os flashbacks ficaram mais nítidos, eram novas observações para estar próximo da verdade, estar próximo de Deus. E cuidar do garoto humano era apenas para neutralizar meus remorsos…

    — Andor, vamos ao parque? — chamei o garoto — Comprei raquetes de tênis para jogar!

    — Não papai, Andor tá… não dá papai, não dá…

    — Vamos lá Andor… quero te deixar feliz…

    Não papai, o menino não quer. E eu não entendi.

    E foi a partir dessa tarde de terça-feira que Andor começou a ficar esquisito. Parecia que o parque perdeu a magia. Só fiquei meio… sei lá (como descrever essa sensação?), mas admito que me desnorteou um tiquinho. Afinal, eu precisava respirar um pouco de ar.

    E nos próximos também.

    Sutilmente, meu bicho de estimação passou a dormir durante o dia. Dorme e come, dorme e come, só não é vagabundo porque ainda é criança. Absurdo, o garoto antes ligado em 220 volts do que em tensão de pilha. E quando não roncava, ele ficava nos cantos, vidrado em algum diabo imaginário. Demorei a perceber que a alma dele começaria a desprender-se de seu corpo. Então eu tentava animar e funcionava às vezes…

    Esqueça um pouco de Andor. Lembre das experiências. Eu queria mais e mais, então comecei a fazer nas sextas-feiras também. Não canso de falar dos flashbacks loucos que corrompem minha mente. Isso é um bom motivo para fazer experiências na segunda, não acha? Eu estava a poucos milímetros de descobrir mais sobre humanos! Sim, eu percebi que esses seres restantes apenas vivem em fazendas e laboratórios, para comer, engordar e serem abatidos. Ok, eu não tinha provas concretas, apenas visões. Entretanto, todas as evidências desse mundo carnívoro sussurrava a mim “Acredite!”. Mas agora, como eles chegaram a esse ponto? Para saber mais, eu deveria fazer experiências na quarta-feira, meio de semana? Pô, isso é genial! Ah, mas e se eu fizesse na quinta…

    Quando acordei desse sonho excitante, eu estava no banheiro do supermercado. Sentado no chão, próximo ao vaso, pois minhas pernas não suportavam tantos estímulos. Limpei o vômito e lavei bem o rosto, para alcançar a alma. Era a experiência 34 da semana, pois estava comendo carne universal todo dia. É a abstinência…

    Eu ainda não compreendia o porquê dos flashbacks e todo aquele efeito.

    Logo quando eu saí do banheiro, a raposinha Lily notou. Ela dizia que minha pele estava estranha, que eu tinha certos tiques de movimentos. Já fazia um tempo que nossas conversas ficavam apenas no “olá” e “tchau”, eu deixei de responder suas mensagens (afinal eu tinha que focar em Andor). E sinceramente, já não sentia tanto afeto por ela, portanto apenas respondi de forma que mantivesse o costume. Como resposta, ela mostrou um pacote plástico com um melecado não apetitoso:

    — Explique isso…

    — Ãh, o que tem? — Cocei a cabeça, com preguiça de responder.

    — Como assim, o que tem?! — e apontou a etiqueta — está escrito “Carne Universal, Acém”. Resolvi xeretar a tua mochila, pois estava com um odor bizarro. O que você tem na cabeça?

    São minhas coisas, apenas largue isso, eu respondi. Logo ela repreendeu, me descarnando: ela mudou sua personalidade, de indiferente ao mundo para intrometida. Me chamou de palavras nojentas, um marco de que nunca mais iríamos trocar um “Bom trabalho, até mais!”. Apenas virei de costas daquela erupção e segui ao trabalho.

    ***

    E noutro dia, Andor passou a manhã na cama, como se uma bigorna o esmagasse. Virava de um lado e de outro. E não dizia nada, com os olhos ocos. Me fazia lembrar 2 caroços de azeitona.

    — Vamos lá, eu te levo ao parque, faço o que você quiser — e ele bufava, com certa dificuldade de respirar — Só me diga algo!

    E nada.

    Em um dia sem volta, Andor se tornaria completamente passivo. Um corpo onde a alma evaporou. Não me respondia, só ficava com a boca entreaberta e cara cinza. Eu diria que eram olhos sem uma face. De vez enquanto ele gaguejava palavras soltas. E ria sozinho. Olhando a parede, nunca a mim. Passado alguns dias, nem a parede o divertia mais.

    E num intervalo de algumas semanas, Andor começou a ter dificuldades para fazer tudo: tive que voltar a dar comida na boca, a trocá-lo e dar banho. Chegou ao ponto de ele nem pedir mais para ir ao banheiro, eu teria que adivinhar! Além disso, suas pernas começaram a atrofiar, ao ponto que não suportaria nem o que restou da alma evaporada. E logo eu pensava “Andor não adoeça! Você é meu bichinho de estimação!”. Era melhor levar ao hospital, mas o que fariam de mim ao ver um humano solto por aí? Ele seria abatido? Eu apareceria em rede nacional? Inflamado por desespero, tentei medicar, entretanto, sem resultados. Já sabia que humanos de abate eram semelhantes aos bois, pois esbaldavam de estimulantes hormonais para engordar e fazer muita carne. Então, a durabilidade deles…

    Quando averiguei isso, me naufraguei. Meio sozinho, afinal ficou impossível conversar com meu bichinho de estimação. Não havia mais nenhuma forma de expressar o que ele sentia, exceto seu rosto: dor. Leves franzidos nas sobrancelhas, a boca torta para o leste e um nariz retraído, a reunião de tais fatores indicava que Andor sentia dor. E só, ademais, era tamanha expressividade de um cadáver no velório. Dor ou inexpressividade. Às vezes somente dor.

    Ah, sei lá, resolvi comer carne universal, só para esquecer…

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