POV: HELENA IVYRA

    Atravessei a rua com passos lentos, observando cada detalhe da fachada simples do prédio. Agora que estava mais próxima, percebia o quanto tudo ali era rudimentar. Azul e branco, divididos por uma linha vermelha discreta.

    À distância, alguém poderia confundir com um consulado francês. Afinal, a paleta de cores era idêntica, mas de perto, revelava-se modesta. Uma pequena cobertura protegia a entrada, e ao lado dela, um canteiro com suculentas e uma árvore grande que projetava sombra em um canto da calçada.

    À minha frente, o prédio se erguia como um sobrevivente obstinado de uma era esquecida.

    O céu estava coberto por nuvens cinzentas que se arrastavam como véus antigos sobre os prédios. Algumas luzes da praça ainda permaneciam acesas, mesmo durante o dia. Erro da prefeitura, provavelmente…

    Ao me aproximar da entrada, notei a porta dupla escancarada, um tapete aconchegante à frente. Dei mais alguns passos e ve— BAM!

    E alguém se esbarrou comigo lateralmente, sem querer (eu achava).

    Dei dois passos para trás, surpresa, tentando me recompor.

    — Ai! Me desculpa, eu…

    O homem nem me olhou. Passou por mim com o passo firme e uma expressão amarga.

    — Não tenho dinheiro pra contratar putas a essa hora — rosnou, sem sequer virar o rosto.

    Fiquei levemente paralisada e assustada.

    As palavras caíram como pedras. Levei alguns segundos para processar o que acabara de ouvir.

    — O quê…? — murmurei, com a boca ainda entreaberta.

    Olhei em sua direção. Ele já se afastava, atravessando a porta dupla. Usava um sobretudo escuro, amassado. Mas o que realmente chamava atenção eram as manchas esverdeadas na pele, especialmente nas mãos e no pescoço. Não era maquiagem. Nem sombra. Era… estranho.

    Arqueei uma sobrancelha, desconfortável. Seja lá o que ele fosse, ou achasse que era, definitivamente não sabia como tratar alguém.

    — Além de grosseiro, parecia saído de um glitch de RPG — resmunguei, tentando afastar o incômodo.

    Respirei fundo, sacudi o mal-estar e entrei na biblioteca.

    O interior foi um alívio imediato. O ar carregava aquele perfume que só lugares com história possuíam: uma mistura de mobília antiga, poeira suave, tinta velha e livros. Muitos livros.

    O primeiro andar era acolhedor, mesmo com sua simplicidade. Algumas mesas redondas ocupavam pontos estratégicos do salão, cercadas por estantes altas e pesadas. Ao fundo, cinco corredores de livros se estendiam como os corredores de um templo literário, cada prateleira guardando fragmentos de ideias, mundos, passados imaginados ou reais.

    Nas paredes laterais, pequenas seções temáticas completavam o espaço com charme: coleções temporárias, livros infantis, revistas acadêmicas, literatura esquecida.

    Contei discretamente os visitantes. Talvez sete ou oito pessoas, espalhadas entre mesas e estantes. Algumas em silêncio absoluto, outras cochichando ou escrevendo.

    Vi a escada de madeira que levava ao segundo andar.

    Lá em cima, o espaço mudava. Era um mar de estantes. A disposição era mais densa, quase labiríntica. Etiquetas coloridas indicavam gêneros, tópicos e épocas: Ficção Clássica, Encantamentos Técnicos, Teoria Literomágica, História do QP. Tudo bem organizado, apesar da aparência cansada.

    Lá havia menos gente que ali. Contei cinco ou seis leitores, baseado nos vestígios de energia que emanavam levemente, cada um imerso em seu próprio universo, olhos grudados em páginas ou telas.

    Virei-me e caminhei até o balcão da entrada. Lá estava Rose.

    A bibliotecária continuava a mesma de sempre, como se o tempo simplesmente tivesse decidido respeitá-la. Usava óculos com armação metálica fina e um coque esticado que desafiava a gravidade. Sua expressão era calma, mas havia sempre um brilho nos olhos. Como se soubesse mais do que demonstrava.

    — Bom dia, Rose — disse com bom humor, apesar do encontro estranho há pouco.

    — Helena! Você de novo por aqui? Pensei que tivesse migrado pro digital — comentou, com um sorriso cúmplice.

    — Nunca totalmente. Vim numa espécie de missão hoje. Estou procurando livros sobre Dominadores Autores… os clássicos. Conceitos mais teóricos, se possível — respondi, consultando o caderno em cima da mesa, onde ficava um pequeno resumo das seções.

    Ela franziu os lábios, pensativa, e girou lentamente a cadeira até uma velha gaveta de fichas.

    — Vamos ver… Hmm. Tem coisa boa na seção de Teoria Literomágica, segundo andar, corredor C. Também tem um novo compilado que voltou da restauração essa semana: Fundamentos do Princípio da Crença. Acho que você vai gostar, deve estar na sessão de coletânias no final do corredor C. — disse Rose, franzindo o cenho, indicando que estava tentando se recordar a informação correta.

    — Você sempre salva meu dia, Rose — agradeci, anotando rapidamente o corredor e o nome do livro.

    — Só devolvendo o favor. E não esquece de registrar o livro, hein? — disse com um sorriso sincero, fechando o arquivo e voltando à velha cadeira.

    Acenei com um sorriso e subi ao segundo andar.

    O corredor C era silencioso e ficava no canto mais afastado da biblioteca. Tinha vista para uma rua residencial nos fundos. As estantes ali eram mais altas, mais antigas. O piso de madeira rangia a cada passo, como se a biblioteca conversasse comigo.

    Caminhei pelos corredores. A quantidade de pessoas era parecida com a que contara antes, talvez um pouco menos de dez. De relance, achei que vi sobretudo o homem estranho, mas decidi evitar qualquer contato.

    Quando finalmente cheguei ao corredor C, procurei entre os títulos e encontrei dois livros que me chamaram atenção.

    O primeiro: A Pena e o Arch: A Ascensão dos Primeiros DAs.

    A sinopse dizia algo como: “Uma análise histórica dos primeiros autores conhecidos e capazes de vincular a magia à escrita. Há diagramas, nomes esquecidos, fórmulas primárias de ativação lírica. O livro argumenta que os primeiros DAs não eram escritores no sentido clássico, mas pessoas que registravam encantamentos por meio de símbolos.”

    O segundo: O Poder dos Nomes: Ensaio sobre a Escrita como Domínio.

    Este era mais denso. Abordava a escrita como ferramenta ontológica — a ideia de que, ao nomear algo, o autor criava sua existência. Um princípio semelhante ao da “palavra criadora” em religiões antigas, ou ao “nome verdadeiro” em Shadow Slave. Havia trechos que relacionavam esse conceito ao QP, como uma extensão da alma textual.

    Levei os dois até uma mesa no canto, próxima à janela.

    O mundo lá fora parecia distante agora. Só existia papel, silêncio, conhecimento.

    Abri o primeiro livro e, antes de começar a leitura, percebi que ainda não encontrara o que Rose mencionara.

    “Talvez estivesse mais ao fim do corredor… depois procuro melhor.”

    Comecei a ler e mergulhei profundamente em um estado de concentração.

    A cada página, sentia como se caminhasse mais fundo na espiral que era o Dilema do Autor. Criação, crença, originalidade, poder. A ideia de que escritores não eram apenas contadores de histórias, mas moldadores delas. Cada história tinha uma narrativa natural e uma artificial ao mesmo tempo. O autor era quase um deus nos mundos ficcionais. Mas, nos registros históricos, não havia um autor no sentido clássico. havia o registrante, aquele que anotava os acontecimentos.

    Esse registrante podia ser considerado um Dominador Autor?

    — Por conceito, não. Afinal, ele não criou a história, apenas a transmitiu. Mas, ainda assim, foi ele quem escreveu em palavras — ponderei, cruzando as ideias.

    De fato, o autor que registrava fatos tinha poder semelhante ao de um Dominador Autor sobre a ficção. Se, por exemplo, um escritor descrevesse os vikings como bons samaritanos, nossas ideias sobre eles hoje seriam completamente diferentes. Como saber o que realmente aconteceu? Consideramos vários autores? Organizamos os registros narrativamente?

    “Dúvida interessante… Bom, estou no melhor lugar para encontrar uma resposta pra isso. Vamos continuar com a leitura!”


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