POV: HELENA IVYRA.

    Lá ia eu… mais um dia em que acordava no meio da madrugada, e sem sono, ainda por cima. Vish… Por quê?

    Devido àquela clássica ansiedade com o dia seguinte. Já fazia isso tantas vezes que, naquela altura do campeonato, mais parecia um costume ou até um hobby do que um problema real.

    — Uáááá… que sono do caralho! — murmurei, limpando os olhos com os dedos, tirando a remela da noite anterior.

    Levantei e fui até a janela.

    O quarto estava mergulhado numa penumbra azulada, quebrada apenas pela luz tímida da madrugada que escorria pelas frestas da cortina.

    A cama, ainda quente atrás de mim, soltava leves estalos de madeira, como se implorasse para que eu voltasse. Mas segui em frente. O sol mal nascia e já se escondia lá, no fundo, enxuto e distante, somente uma mancha alaranjada espiando o mundo.

    Abri a cortina com cuidado, deixando o ar fresco da manhã invadir o quarto e empurrar para longe o cheiro abafado da noite.

    — É estranho pensar no quanto aquela bola de fogo gigante é importante pra gente… e, mesmo assim, ela continua lá, impassível. Um dos principais pilares da vivência da nossa espé… Uááá… — bocejei enquanto levava a mão à boca.

    “Melhor eu ir usar o outro pilar fundamental da nossa raça. Provavelmente o mais importante: o café!”

    Tentava aparentar estar mais animada do que realmente estava.

    Saí do quarto em silêncio. As paredes do corredor ainda guardavam o frio da madrugada, e meus pés faziam um leve som seco sobre o piso de cerâmica.

    Cheguei à cozinha que era pequena, modesta e com aquele eterno cheiro de café velho e temperos guardados demais. A luz fluorescente sobre a pia piscou uma vez antes de se firmar.

    No canto do balcão, repousava a fiel chaleira elétrica, cercada por uma fileira de canecas e migalhas de pão esquecidas do café anterior.

    Coloquei água para esquentar. O clique da chaleira cortou o silêncio da casa como uma flecha. Botei duas colheres de café na minha xícara verde, a de sempre, com a alça um pouco trincada.

    De relance, meus olhos caíram no calendário colado na porta da geladeira, de papel já amarelado nas bordas, preso por dois ímãs: um do Bob Esponja e outro do vestibular do ano passado.

    E lá estava ele. O trabalhador mais constante da existência: o tempo.

    Nunca parava. Nunca descansava. Porém sempre, sempre avançava em diante.

    Mesmo que sozinho, corria em seu próprio fluxo, naturalmente…

    Foi aí que percebi: já era 14 de dezembro.

    O último dia de aula do meu segundo ano da escola média.

    — O tão sonhado terceirão tá chegando, né… — sussurrei, quase sem ar.

    Na mesma hora, um arrepio correu pela minha espinha.

    — Droga… eu tô virando adulta. Ferrou, ferrou, ferrou!

    — Pera… se bem que, na real, nem é tão ruim assim, né? Eu acho que não… Afinal, ser adulto é tipo portar o Mjölnir do Thor: é um baita poder, te dá umas habilidades muito fodas e um certo respeito… o problema é que precisa ser digno de usar. Ou, sei lá… fora da casinh…

    Chuu-chuu.

    O som da chaleira me puxou de volta da crise existencial matinal.

    Girei o pescoço na direção do ruído. A água borbulhava com força, soltando vapor que embaçava os azulejos atrás do fogão. Dei alguns passos apressados, desliguei a chaleira e esperei as bolhas cessarem. Em seguida, servi uma xícara daquele café simples: duas colheres, sem açúcar.

    Aqui em casa, café preto e forte é tradição.

    — Ops… droga! — disse, ao derrubar um pouco de café sobre o pano de prato que estava em cima do balcão.

    — Ah, é algo quase microscópico, ninguém vai perceber! Né? — falei para mim mesma.

    Com a xícara em mãos, voltei em silêncio até o quarto. O corredor parecia mais frio que antes, mas talvez fosse só a realidade me dando um choque térmico.

    Assim que entrei, juntei os dedos da mão direita no formato de uma pinça.

    — Tesselação Axiomática — sussurrei, formando uma linha de conexão entre os dedos.

    O quarto, ainda à meia-luz, foi tomado por um brilho discreto. Minha Marca Literária, cravada no pulso direito, brilhou em azul-claro, quase como se sorrisse. O ar ao redor dos meus dedos vibrava levemente, distorcendo a luz por um breve instante.

    — Usar esse encantamento ainda é difícil… aplicar princípios geométricos é muito mais fácil lendo do que enquanto canalizo — concluí, sentindo a tensão delicada nos dedos.

    Conectei todos entre si, fechei o punho com cuidado e apontei o indicador para frente. No ar, desenhei um hexágono com um traço firme.

    Quando o fluxo de QPs cessou, a figura brilhou… e lá estava ela: uma pequena plataforma suspensa, flutuando no meio do quarto, como uma ilha no meio de um oceano.

    Coloquei a xícara no centro do hexágono, com a solenidade de um alquimista oferecendo seu tributo.

    — Bem que dizem… Euclides descobriu um dos conceitos mais versáteis da história — murmurei, observando o brilho sutil da forma flutuante. — Penso se dá pra usar isso em combate…

    Suspirei.

    — Tsk… lembro que ainda preciso praticar melhor a criação dos axiomas de segundo nível — recordei, olhando para as anotações jogadas sobre a mesa no meu canto de estudos.

    Ali, em meio ao caos controlado dos livros empilhados, papéis amassados e anotações com fórmulas rabiscadas, crescia meu mundo. Como estudante do segundo ano, precisava me preparar para os testes de admissão universitária que aconteceriam no ano seguinte. Os famosos e temidos vestibulares!

    E, para isso, comecei a explorar livros diferentes. Entre todos, os mais importantes que estudei naquele ano foram os de Euclides, especialmente Os Elementos. Um livro extremamente versátil, amplamente usado por literários da matemática e da física.

    Sempre tive interesse nessas áreas. Afinal, usar conceitos numéricos para entender como a magia funcionava era algo bem incomum, especialmente onde eu vivia.

    Foi por isso que decidi testar se o treino com esses livros podia gerar algum encantamento útil para as aulas de combate mágico que me aguardavam no terceirão.

    Esperava estar pronta a tempo.

    O tão sonhado último ano se aproximava, e junto com ele, a formatura, os dilemas sobre carreira, trabalho, futuro…

    E, claro, os vestibulares.

    A palavra mais odiada por todos os meus colegas. Mas, por algum motivo, nunca compartilhei esse sentimento de ódio ou medo que eles tinham. Principalmente porque sempre achei a ideia dos testes meio besta. Afinal…

    Se a educação supostamente era pública, logo, deveria ser acessível a todas as pessoas, não? Então, por que diabos existiam provas? Ou melhor, torneios para ver quem era o mais sabichão entre os leitores?

    “Talvez, para saber quem é o melhor…”

    Estava tentando achar um contraponto à minha ideia.

    — Tsk, mas, qual é o propósito de ranquear os melhores e piores? Dividir quem é útil daqueles que não são? — ponderei. — Muitas perguntas, poucas respostas. Típico! Típico! — conclui.

    Enquanto organizava a minha cama, dobrava os cobertores aqui e ali e reposicionava tudo direitinho.

    Após concluir a organização, voltei a ponderar novamente sobre o dilema, mas sem resultado aparente.

    Quer dizer, preferia deixar esses problemas para a Helena de 2020, afinal, seria ela que teria que lidar com isso. Ha ha, não eu!

    Pera, tecnicamente sou eu, mas… deu pra entender, né?

    “Melhor deixar isso quieto… Tem outra coisa mais importante para ponderar. Mesmo eu não achando a ideia dos testes uma boa coisa, não podia negar que precisava levá-los a sério. Eram algo crucial, precisava me preparar bem”

    Olhei ao redor e verificando o que precisava ser organizado.

    “Bom, já sei o que pretendo seguir de carreira. O primeiro passo já está dado. Agora, preciso me preparar para os testes específicos. Como vou seguir na área das exatas, posso me dar ao luxo de focar mais nas matérias práticas, de aplicação de fundamentos literários e visão matemática. O problema vai ser o teste físico de combate…”

    Peguei minhas anotações da noite anterior, e as dispus na minha frente para ver o que já feito e como prosseguiria.

    — Quem diria que, pra ser física, eu precisaria vencer um campeonato de lutas, estilo aqueles Shonens clássicos… Até parece que o Criador estava sem criatividade quando decidiu criar essa parte da humanidade. Tá louco… — refleti, questionando se o Criador tinha algum tipo de sentido irônico com os personagens que escrevia.

    Quando comecei a ouvir alguns barulhos na cozinha…

    Tumb. Tumb. Tumb. Tumb.

    Eram os passos característicos da minha mãe acordando. Ai ai, clássica mãe brasileira. Era bem comu…

    — HELENA!! — ouvi um grito que me fez pular da cadeira e quase cair no chão.

    Levantei e corri para a cozinha.

    — O que foi, mãe? — perguntei, vendo-a perto do balcão. — Aconteceu algo?

    — Helena Ivyra Conceição, por que meu pano de prato está manchado de café? HEIN?! — disse a senhora Eduarda Conceição, incrédula e altamente estressada com o ocorrido às 06h10 da manhã desta quarta-feira de dezembro…

    — Mães… o maior enigma do universo — retruquei, em minha mente, é claro. Não era tão louca assim ao ponto de dizer em voz alta.

    — Eu derrubei um pouco de café antes, sem querer… Mas, além disso, você parece radiante hoje, mãe!! Cortou o cabelo?? — disse, com um sorriso amplo, tentando evitar outra panelada, como aconteceu em casos anteriores.

    — Vai tomar café, criatura. Antes que eu te dê outro “despertar mágico” com a frigideira — respondeu minha mãe, enquanto pegava o pano e ia em direção à lavanderia.

    Fiquei olhando, mas não desisti.

    — Tô falando sério! Senti um estilo diferente! Como se o universo tivesse mais brilho no seu cabelo hoje!

    Ouvi ela bufar, sem virar o rosto.

    — O que você vai sentir é o chinelo do multiverso batendo no teu juízo, isso sim.

    — Mãe! Isso pode ser o início de uma saga lendária. Imagina: A Menina da Panela Encantada!

    — Menina, se tu não comer esse pão agora, tua saga vai ser no hospital.

    E foi assim que eu entendi que todo grande herói começava seu dia com um bom café forte — e, às vezes, uma panelada.


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