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    POV:


    Sempre vi no tempo algo de poético. Ele parecia ter uma velocidade… confusa. Às vezes, parecia caminhar devagar, como se quisesse que a gente sentisse o momento com mais intensidade.

    Outras vezes, acelerava como se estivesse fugindo da gente, e tudo o que sobrava era um vazio de saudade. Era como se alternasse entre o passo da tartaruga e o da lebre.

    E, nos últimos dois meses, o tempo correu a passos de Flash.

    “Mas desde quando já estamos em fevereiro?”

    Franzi a testa ao olhar o calendário. Era dia primeiro; pisquei, e janeiro sumiu.

    — Einstein, seu desgraçado… tás tolo, tás… — resmunguei com raiva, enquanto amaldiçoava aquele gênio de cabelo bagunçado num sussurro de puro ódio.

    O tempo era relativo. Claro, todo mundo sabia disso.

    Obrigada, Einstein. Mas ninguém me avisou que ele aceleraria justamente quando mais queríamos que andasse devagar.

    Minhas tão amadas férias escorriam pelos meus dedos como as areias de uma ampulheta invertida, constante, impiedosa e cada vez mais rápida.

    Sempre que tive férias, elas pareciam apressadas, queriam, porque queriam, terminar o mais rápido possível.

    Definitivamente, não era o melhor jeito de começar o dia. Nem a melhor motivação.

    Os últimos dois meses tinham passado tão depressa quanto o último dia de aula. Depois do fatídico incidente com a frigideira… o tempo simplesmente voou.

    Talvez isso tivesse alguma relação com a frigideirada. Apenas um palpite, é claro.

    Afinal, mal lembrava como tinha chegado na escola naquele dia. Lembrava somente de flashes:

    Tivemos a clássica festa de final de ano, aquelas aulas basicamente inúteis do último dia.

    Encontrei algumas amigas, troquei palavras rápidas sobre se estaríamos juntas no terceirão, se nos veríamos nas férias… algo que, até agora, não aconteceu. Meu eu introvertido agradece, e vive feliz!

    — Vish… já estamos em fevereiro e eu mal saio de casa. Acho que estou ficando antissocial demais… Tsk, preciso tomar cuidado para não virar um daqueles protagonistas edgy de anime…

    Finalizei minha rotina matinal: café, arrumação do quarto, leitura das anotações sobre os Axiomas de Euclides.

    Sim, essa era eu.

    Desde o fim do ano letivo, eu dividia meu tempo entre estudar geometria de Euclides e pesquisar os vestibulares que poderia fazer. O mais interessante de todos, de longe, era o ENEL, o Exame Nacional de Ensino Literário.

    Lembrei daquele trecho do panfleto que os professores tinham entregado no último dia de aula. Era uma das clássicas propagandas dos vestibulares, do tipo que explicava a linha do tempo desde a inscrição até a data da prova final.

    ENEL é o principal torneio de admissão universitária do país. Organizado anualmente no final de novembro, possui três etapas: seletivas escolares, estaduais e nacionais.

    Esse era o primeiro parágrafo do panfleto, que trazia algumas dicas e informações extras sobre o que estudar e como se preparar.

    E, é claro, fazia propaganda da grande oportunidade que estudar em uma das instituições nacionais representava.

    Quando se falava sobre faculdade, não importava o assunto: sempre se chegava às universidades federais, criticadas por muitos, amadas por outros.

    Independentemente disso, sempre foram as instituições mais respeitadas na formação de magos e acadêmicos.

    Muitas dessas instituições abrigam Dominadores Autores, magos de alto padrão e, em alguns casos, até raros Dominadores Primários.

    Estudar em qualquer uma das instituições era uma oportunidade de ouro para os jovens da classe média.

    O problema é que, pra chegar lá, você teria que se mudar para uma grande cidade, geralmente, uma capital.

    O que tornava tudo um desafio não apenas intelectual, mas também financeiro.

    Se você conseguisse uma vaga… ainda precisaria do dinheiro para ir.

    Injusto? Em parte. Mas essas preocupações podiam ficar para depois.

    Eu precisava continuar concentrada nos estudos pro ENEL.

    Talvez, com um pouco de sorte, eu conseguisse uma vaga na fase final, que acontecia no Museu de História Nacional, no Rio de Janeiro.

    — Tsk… é um trabalhão dos grandes — murmurei, refletindo sobre o que me esperava. — São mais de vinte combates até lá. Se eu conseguisse uma boa colocação nas estaduais, já seria o suficiente pra garantir uma vaga na federal.

    Era uma aposta a longo prazo. O torneio não se baseava apenas em conhecimento.

    Havia um fator de sorte envolvido: quem seriam seus oponentes, o tipo de teste sorteado, o estilo de leitura exigido…

    Talvez eu devesse parar de tentar controlar tudo.

    — Mas né… quem disse que parar de controlar é simples? — disse, conforme teminava o meu café. — Vou fazer mais uma xícara.

    Enquanto ia até a cozinha, vi a televisão da sala, apoiada sobre o rack à frente do sofá de três lugares, o marrom-escuro que minha mãe comprou no ano passado, se não me engano.

    Por falar nela, não a vi em lugar nenhum. O que até fazia sentido: ela adorava ir às casas das vizinhas para conversar, tomar chimarrão ou fazer bolo e coisas assim.

    O detalhe é que, ela esqueceu a TV ligada como sempre. Por isso, dei uma olhada de relance e percebi que o jornal regional estava no ar. A âncora falava com certa urgência.

    Era uma manchete com uma tarja vermelha, onde se lia:

    “É OFICIAL: governo sanciona Lei do Valor Fixo: livros poderão ter aumento de até 60% nos próximos meses.”

    — Quê…? — murmurei, largando a xícara na mesa, incrédula.

    Saí da cozinha rapidamente e me sentei no sofá para tentar entender o que estava acontecendo.

    Aproveitei e peguei o controle para aumentar o volume. Assim que o fiz, a voz da repórter preencheu a sala. falava num tom neutro e lia direto do teleprompter:

    — O projeto, aprovado na madrugada desta quarta-feira e redigido pelo deputado federal Matheus Eduardo da Silva, propõe o reajuste nos valores dos livros físicos e digitais. A medida vem sob a justificativa de ‘preservação do patrimônio textual’ e ‘incentivo à produção editorial nacional de qualidade’. A nova política entra em vigor imediatamente.

    “Preservação do patrimônio textual e incentivo à produção editorial nacional de qualidade?”

    Aquela frase ficou martelando na minha cabeça por alguns segundos.

    Como era possível preservar um patrimônio textual se isso tornaria o acesso à leitura mais difícil?

    Isso não fazia justamente o oposto do que se pretendia?

    Incentivo à produção nacional? Como se incentivaria autores se, com os preços nas alturas, ninguém mais tivesse condições de comprar livros?

    Enquanto refletia sobre os possíveis impactos dessa lei, vi a imagem na televisão mudar.

    A repórter agora se voltava à convidada ao vivo:

    — Procurada por nossa equipe, está ao vivo conosco a professora e historiadora Dra. Evangeline Bittencourt, da IENSC — anunciou em tom formal. — Dra. Evangeline, bom dia! Quais são os precedentes dessa decisão? E que impactos a senhora acredita que motivam essa medida?

    A mulher do outro lado da tela era magra, com o cabelo totalmente cinza preso em um coque. Usava óculos e falava com uma calma medida.

    Tinha uma daquelas vozes que poderiam narrar um documentário histórico e, ainda assim, soar íntima. Sua postura era rígida, mas passava um certo glamour e uma chiqueza acadêmica.

    O ambiente ao seu redor parecia um escritório, ou talvez uma biblioteca, repleta de livros e documentos antigos.

    Parecia que elas estavam na IENSC, a universidade federal de Florianópolis.

    Antes que eu pudesse perceber mais detalhes ou adivinhar melhor onde estavam, a senhora Evangeline respondeu à repórter:

    — Bom dia, senhorita. Em toda a minha carreira acadêmica, lembro-me de poucas decisões com um impacto tão direto sobre o acesso à cultura quanto este. Quanto às motivações? É difícil afirmar com certeza. — Ela mudou a postura relaxada para uma mais concentrada, cruzando os braços, como se pensasse no que dizer em seguida.

    — O texto da lei alega que o intuito é proteger o mercado nacional, e que fixar preços seria a chave para garantir estabilidade e valorizar a produção editorial de qualidade. A ideia é criar uma uniformização que, teoricamente, evitaria a concorrência predatória e asseguraria a sobrevivência das editoras locais.

    Ela fez uma breve pausa, ajustou os óculos e então prosseguiu:

    — No entanto, esse raciocínio desconsidera a realidade do mercado brasileiro. Temos altíssimas taxas tributárias, baixos índices de leitura e, principalmente, escritores que mal conseguem viver do que produzem. O acesso já é desigual, e encarecer os livros vai apenas afastar ainda mais os leitores, em especial os mais jovens e de classes populares.

    A repórter assentiu rapidamente, olhou para a câmera e fez outra pergunta:

    — E quanto aos antecedentes históricos? O que a senhora poderia nos dizer sobre isso?”

    — Esse é outro ponto importante. Os precedentes históricos. Leis como essa, apesar de parecerem inéditas, não são. A primeira vez que vi algo parecido foi em meus estudos sobre a década de 1940, com a chamada ‘Lei Anti-Livro’, implementada no Império Alamano, se me lembro bem.

    Após ajeitar o cabelo atrás da orelha, a doutora concluiu:

    — Sinceramente, me parece uma tentativa disfarçada de controle ideológico, travestida de proteção cultural. E, honestamente… às vezes o tempo parece rápido demais. Ver essas coisas se repetirem é estranho.


    Arquivo Confidencial: V-1206-V
    Classificação: Sigilo Alto – Acesso restrito às patentes: Leitor Fanático e Leitor Novato.
    Instituição Responsável: SLI – Sociedade dos Leitores Livres.
    Data da Transcrição: X/XX
    Relator: IVYRA, H. Codinome: Clover.
    Assunto: Relatório de Contenção – Tempo de Contaminação.

    TEMPO ANTES DO INÍCIO DO SURTO: 1 MÊS E 5 DIAS.


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