Capítulo 3 - A calmaria antes da tempestade.
POV: HELENA IVYRA.
Não era a primeira vez que a literatura brasileira enfrentava problemas com a lei. Aquela sensação arrastava-se no tempo, como se um ciclo se repetisse, um duelo antigo, marcado por batalhas invisíveis, entre duas forças inevitavelmente opostas.
Parecia que ambos eram antigos rivais, presenças quase míticas, como se a própria literatura e a lei fossem personagens de um velho faroeste, eternamente em conflito.
A literatura brasileira era tratada como um lendário fora-da-lei, uma espécie de bandido elegante e astuto, que cavalgava pelas planícies do velho oeste cultural, deixando para trás um rastro de educação e ensino, um legado silencioso, mas poderoso.
Enquanto isso, a lei, como um xerife incansável, acompanhava seus passos ferozmente, e a cada movimento tentava capturá-la. A relação deles assemelhava-se à inimizade imortalizada entre os Montéquio e Capuleto, onde o ódio parecia selado no destino, até a morte. Não havia trégua, não havia entendimento, apenas um embate que corroía lentamente as possibilidades.
A mais recente investida daquela disputa tinha nome: Lei da Fixação de Preços. Não era novidade, mas era mais um capítulo dos ataques contínuos que fragilizavam ainda mais a já combalida propriedade literária no Brasil.
A lei atingia o preço dos livros com mãos de ferro, e o impacto não poderia ser mais direto: livros caros tornavam-se inacessíveis para a maior parte da população.
Ler, para o brasileiro comum, já era um hábito raro, uma espécie de luxo cultural distante da rotina cotidiana. Agora, com aquela imposição legal, tornava-se não apenas incomum, mas praticamente inalcançável para muitos.
Era impossível não sentir o peso de um país que ainda vivia à sombra de sua antiga glória literária.
Há séculos, poderosos dominadores autores, mestres da palavra e do pensamento, e incríveis leitores, ávidos por desvendar mundos, existiram.
Mas, com a progressão natural do tempo e as sucessivas perdas, aquela cultura literária, que antes era um pilar da identidade nacional, ruíra quase por completo. Sofrera golpes contínuos, invisíveis e cruéis, até que o que restava hoje nada mais era do que um eco distante daquela era gloriosa, algo semelhante à uma pedra rupestre, um vestígio fossilizado de um século há muito tempo perdido na memória do país.
“Ler é a mais básica habilidade do ser humano. Lembro-me que alguns afirmam ser aquilo que nos diferencia das demais espécies. Graças a isso, conseguimos passar conhecimento adiante. Entre historiadores e cientistas, discute-se o dilema: linguagem ou o computador, qual seria a maior invenção humana desde a descoberta do fogo? Muitos afirmam avidamente ser o computador, porque permite o avanço tecnológico e a nova Belle Époque que vivemos.”
Aquelas palavras finais da entrevista da Dra. Bittencourt não saíram da minha mente conforme finalizei os afazeres domésticos daquela manhã.
Havia algo estranho naquela fala, um sentido oculto, um tom que eu não conseguia decifrar de imediato. Depois da notícia, preparei outra xícara de café e, após isso, tentei retornar aos estudos, mas não consegui.
Minha mente simplesmente não colaborava.
Algo naquela história me deixava com uma pulga atrás da orelha…
Já estava acostumada com o meu cérebro procrastinando, fruto dos incontáveis episódios de acordar no meio da noite, sem motivo aparente, e da insônia que se tornava companhia constante.
Mas aquela inquietude era diferente. Não era apenas o cansaço acumulado, nem a sonolência tardia. Era como se alguém fizesse sussurros no meu inconsciente, palavras não ditas, sinais confusos que meu consciente ainda não sabia decifrar.
O que era aquilo? Qual era o intuito por trás daquela sensação incômoda? Ainda desconhecia.
Decidi, por ora, ignorar aquela estranha sensação e voltei aos livros.
Suspirei profundamente, peguei meu caderno e resolvi organizar minhas ideias, talvez arrumar a bagunça interna fosse um passo para clarear minha mente.
— Quer saber… Vamos por partes — murmurei para mim mesma, espalhando as anotações sobre a mesa, de modo que cada tópico ficasse visível e separado.
— Certo, aqui estão todos os postulados dos axiomas de segundo nível, suas premissas, ali as provas, e por último os teoremas principais — falei em voz baixa, quase como se revisasse para alguém invisível.
Concluir os axiomas de segundo nível fora um alívio. Agora, podia começar a estudar os axiomas de terceiro nível, que exigiam ainda mais paciência e uma certa precisão quase artesanal, na forma de conectar ideias, traçar relações lógic…
“Ahh, que droga!”
Suspirei conforme me enconstava na cadeira para pensar um pouco.
Mesmo tentando me concentrar, não consegui por algum motivo.
A fala da Dra. Bittencourt parecia ecoar no fundo da minha cabeça, provocando uma desconcentração quase cirúrgica.
Era como se aquela mulher tivesse deixado algo faltando, algo não dito de propósito.
A frustração me invadiu: pensei em algo simples, como dar nome a uma dúvida, e não consegui encontrar as palavras certas para isso.
— Esquece isso de uma vez, Helena! — reclamei comigo mesma, sentindo um aperto no peito.
Faltavam apenas duas semanas para o início das aulas.
Precisava estar preparada para começar o ano com segurança, principalmente porque teria muitas responsabilidades. A turma nova, os eventos da formatura, os vestibulares que se aproximavam… tudo isso pesava na minha cabeça.
Queria focar em captar bem a base dos conceitos, para não me perder depois.
E, ainda assim, ali estava eu, travada diante de uma distração que não vinha de fora, mas de dentro.
Não por ignorância ou preguiça. Mas por ruído interno.
Havia algo curioso nisso: o quanto a mente inquieta podia atrapalhar até o raciocínio mais simples.
Não importava o ambiente, fosse uma xícara de café na mão, o silêncio absoluto ou o tempo livre, se não havia paz dentro da cabeça, nenhum sistema lógico florescia.
Era como construir uma biblioteca no meio de um terremoto. Era a receita para o desastre!
— Que saco… — murmurei, sentindo o peso do desânimo.
De repente, tive um estalo mental.
“PERA!”
Biblioteca no meio de um terremoto…?
— É isso, sua tonta! — exclamei, como se finalmente tivesse um lampejo de entendimento, um momento “Eureka!”. Talvez, em seu tempo, Einstein tivesse vivido algo parecido ao desenvolver a Relatividade, uma ideia que brota do caos e do ruído.
Se eu não conseguia estudar num ambiente por causa do ruído, então…
Por que não tentar levar minha mente para um ambiente que transformasse aquele ruído em concentração?
Um lugar que fosse o antídoto para aquela turbulência interna. Uma biblioteca!
Verifiquei no relógio: ainda eram 12h06.
Peguei minhas anotações, organizei tudo na pasta, coloquei meus cadernos na bolsa e saí de casa, decidida.
Trinta minutos depois, lá estava eu, saindo de casa e indo em direção à Biblioteca Provincial de João Batista.
Talvez fosse a hora de encontrar um novo lugar para estudar!
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