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    POV: HELENA IVYRA.

    Desci a rua em direção ao centro, no meu ritmo acelerado de sempre. Era comum as pessoas dizerem: Helena, você anda rápido demais!

    Sinceramente, nunca soube se era verdade ou se as pessoas eram lentas demais, mesmo assim, seguia no meu ritmo de lebre. Desde pequena fui uma pessoa de ritmo apressado.

    — Não sei se é um ritmo de quem está com pressa ou de alguém que só quer espairecer a cabeça…

    O tempo estava estranho, nem tão ensolarado, nem tão chuvoso. Aquele cinza sem emoção, mas confortável o suficiente para ninguém botar defeito.

    João Batista já se encontrava naquele começo de tarde típico: motoristas apressados, atendentes que organizavam as vitrines, o correio que entregava coisas por toda a parte.

    A rotina padrão, os clássicos ônibus amarelos, que levavam às pessoas através da cidade, e o característico alto movimento de Fiorinos, que saiam das fábricas e partiam para os ateliers. Esses dois eram provavelmente os veículos mais comuns de ver em dias movimentados assim.

    Cada um com sua ocupação, sua meta, sua urgência. Uns com vontade, outros por obrigação. Depois de morar ali praticamente a minha vida toda, aquele cenário já tinha virado uma constante. A clássica rotina batistense!

    João Batista era uma cidade tranquila. Apesar da tentativa de ser uma metrópole, era apenas uma cidade pequena em crescimento. Um pouco mais que uma vila, um pouco menos que um polo.

    Suas ruas eram preenchidas por uma economia movida pelo comércio calçadista, com suas várias fábricas de sapatos que, por muito tempo, sustentaram não só a cidade, mas também o orgulho de muita gente. E claro, a forte descendência das terras pecuárias do sul europeu que marcaram tanto a cultura dali.

    — Sempre movimentada, mas sempre acolhedora — refleti, enquanto observava a cidade que, embora eu não tivesse nascido, vivi tempo o suficiente para ser praticamente nativa de consideração.

    A cidade tinha cara de irmã caçula. Sempre tentava alcançar as irmãs mais velhas, como Brusque e Blumenau. Se comparava com elas, mas também brigava para não ser apenas sombra.

    Aquela região era feita de pessoas acostumadas a longas rotinas de trabalho, mas que carregavam no peito, paixão pelas tradições gaúchas e catarinenses.

    Uma cidade catarinense com alma gaúcha, ou vice-versa. Às vezes, nem dava mais pra distinguir.

    Conforme passei pela primeira esquina, reparei na velha confusão visual da cidade. Prédios novos apareciam aqui e ali, com aquele estilo simples, porém direto, quase impaciente.

    Pareciam espinhos apontados para o céu, como se o solo estivesse em plena adolescência, com acne arquitetônica. Algo naqueles prédios me fazia pensar. Eles eram quase templos modernos, construídos para a adoração dos novos deuses.

    Mesmo assim, ao redor havia as pequenas casas antigas, esquecidas como ruínas perdidas. Algumas com muros baixinhos, janelas abertas, varandas que pareciam ser educadas e convidava as pessoas a entrar, como Dona Florinda fazia com o Professor Linguiça, digo. Girafales.

    “He, he”

    Esse meu humor duvidoso, é complicado.

    Aquelas casas pareciam ser de verdade, pareciam ser lares. E não aquelas fortalezas de filme de espionagem, cercadas por câmeras e sensores. Como se fossem feitas para repelir gente.

    “Se bem, que essa vibe parecia mais de acordo com a Dona Florinda, que queria se espalhar da “gentalha” que ela dizia não fazer parte.”

    Era como se os arquitetos modernos tivessem se inspirado em jaulas anti-tubarão. Mas os tubarões, ironicamente, andavam em duas pernas. E eram da mesma espécie. Mundo estranho, não?

    E se tinha algo que a cidade tinha demais, eram pequenos negócios. Cada metro quadrado tinha uma farmácia, um salão de beleza, uma concessionária. E esse último, então?

    Era quase ofensivo. Tinha mais carros do que pessoas naquela cidade!

    “Ainda bem que Transformers não é real, porque senão estamos ferrados da silva.”

    Lembrei da certa ironia de ver o monte de carro enfileirado.

    Se fosse campo de guerra de robô, a cidade já estaria em ruínas há anos. Dava até pra montar um sindicato de ciborgues automotivos.

    A cidade possuía várias ruas e vielas, e apenas algumas poucas avenidas principais, essas geralmente atravessavam o rio que separa a cidade em duas partes. Havia duas pontes que eram sempre usadas para transitar dentro da cidade, e justamente por uma delas que eu estava indo em breve para chegar no meu destino final.

    Mesmo com aquela enxurrada de comércios, havia um tipo que era quase uma lenda urbana. Um tipo raro, quase um Pokémon Shiny. As bibliotecas.

    Lembrei de uma frase que ouvia na escola:

    “A cada três farmácias abertas, fecha uma biblioteca.”

    Talvez fosse apenas a professora querendo nos impressionar. Mas parecia verdade.

    Só havia uma biblioteca que funcionava na cidade inteira. As outras, ou viraram depósitos, ou estacionamentos, ou simplesmente viraram pó no estalo do Thanos.

    Uma delas ficava no meu caminho naquele dia.

    Após passar pela segunda ponte, aquela que cortava a cidade por dentro. Depois, virei a próxima esquina. E lá estava ela. Ta dã!

    Um prédio de dois andares, com a fachada descascada, e um silêncio pesado. Aquele típico de velório…

    O que fazia sentido, afinal, era uma biblioteca. Ou pelo menos… Tinha sido uma. Agora, era só um eco do que fora. Diziam que tinha fechado por instabilidade financeira. Mas eu sabia que a real causa era outra. Falta de gente.

    Era um túmulo. Um cemitério de palavras que ninguém mais queria ler.

    A cidade tinha tudo. Tinha remédios, tinha carros, tinha estética. Ali se alimentava a barriga, o ego, o status. De quebra, também a ansiedade.

    Mas enriquecer a alma com histórias, com leitura, com imaginação? Isso parecia coisa do passado. Como se fosse perigoso demais ou até abstrato demais… sei lá, era estranho. 

    Palavras eram as coisas que mais usávamos na vida, e mesmo assim, parecia que as pessoas tinham medo do seu uso. Medo do que elas podiam fazer. Do que podiam libertar. Do que podiam questionar.

    Lembrava-me de algumas aulas de história, em que o professor falava das antigas polis da Grécia. Onde as praças eram bibliotecas ao ar livre. Como se ensinava, aprendia, conversava, debatia. Onde ler era parte do cotidiano.

    Hoje, parecia que o hábito era outro: se drogar, endividar, empanturrar. Esse era o novo ideal. O novo líder.

    Naquela época, o líder era o filósofo. Hoje, é a tendência.

    — Se parar para pensar… toda cidade tem seus líderes diferentes. Alguns eram líderes frios, como Napoli Sortiana. Outros, revolucionários, como o famoso Lena. E havia os monstros da história, Golf e José Açoriano. Que escreveram suas histórias com sangue ao invés de palavras.

    Todos os autores de uma história. Algumas belas. Outras monstruosas.

    E algo que todos tinham em comum… É que dominavam a autoria de um estilo pessoal.

    Sempre diziam que devíamos estudar a história para evitar que ela se repetisse…

    Mas… E se o perigo real nunca tivesse sido a história, mas sim… quem a escrevia?

    Nesse cenário, em quem deveríamos acreditar, na história ou quem a conta?


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