Capítulo 5 - O Dilema Do Autor.
POV: HELENA IVYRA.
“Todas as histórias são reflexos do seu respectivo escritor. É como se, através das palavras, estruturas, personagens, temas e plots de uma obra, o autor colocasse seu coração, seu cérebro e sua alma através daquelas ideias.”
A voz da professora Maria, que era a responsável por lecionar a matéria de história da literatura, ecoava em minha mente como uma daquelas memórias que se recusam a desaparecer.
Lembrava bem de uma aula específica, onde conversávamos sobre um conceito apresentado por alguns filósofos do século I d.L. (depois do Livro). O tão comentado Dilema do Autor.
– Como é o enunciado mesmo…? – indaguei internamente, enquanto olhava para os dois lados da rua. Melhor garantir, né?
Não queria terminar como em final de clichê de Isekai, daqueles de ser atropelado por um caminhão genérico.
— Tsk… Foco! Acho que é algo como: Diga-me o que escreves, que eu te direi quem és, né?
“Pera, está errado, não é isso…”
— “Se penso, logo escrevo” – chutei, conforme acelerava o passo. — Droga… esse é Descartes. Que baita confusão!
Logo, cheguei na avenida principal perto da praça central. Tentei me manter no lado com mais sombra da rua.
“Tsk… a dinâmica de lembrar tudo quanto é necessário era um poder de protagonistas que eu achava bem conveniente… pena que só funcionava na ficção”
Algo que sempre me deixou atônita, era o quanto as aulas da professora Maria eram marcantes. Ela conseguia deixar uma forte impressão com seus ensinamentos.
Um de seus pontos favoritos, eram os comentários de como a história sempre foi escrita por apenas um lado, geralmente, o lado do vencedor.
— O interessante é que a ficção quebra esse diagrama — exclamava a professora Maria, com seu característico trejeito de bater no quadro com o canetão.
Eu lembrava perfeitamente quando ela falava sobre os três fins da literatura: Registro, Conhecimento e Ficcional.
Por muito tempo, o principal fim da literatura era o registro de acontecimentos, através de documentos, cartas, papyrus, ou o que estivesse disponível. Em seguida, vinha o conhecimento, forma primordial e essencial no desenvolvimento da espécie humana. A capacidade de passar adiante aquilo que era aprendido.
Porém, estávamos falando de humanos. E sempre que havia algo bom… havia algo ruim junto.
A finalidade de registro sempre foi unilateral. Os conquistadores escreviam sobre os conquistados. E estes, com muita sorte, em uma época favorável, sequer eram alfabetizados.
Porém, com o surgimento do livro no século zero, surgiu a terceira finalidade: a aplicação ficcional.
A imaginação, o lírico, o sentimento… enfim, uma nova voz era dada. Algo que trazia ao mundo frívolo das palavras uma chuva de refrescância nunca antes vista.
Sempre se sabia que o conhecimento e os livros estavam internamente ligados. Mas algo diferente acontecia no século XVI a.L.
Era quando surgiram os chamados Pré-Embrionários. Um ponto de inflexão importantíssimo na história.
Não se sabia como eles conseguiam, mas sabia-se que eram os primeiros a conectar encantamentos à energia mágica. Hoje chamada de QP. Na época, essa energia era conhecida como os archs.
Através dos livros, esses pioneiros conseguiram algo sem precedentes: uniram conhecimento e encantamento de uma forma nunca antes vista.
— Basicamente, eram os primeiros Dominadores Autores da história — afirmei, conforme relembrava a milésima vez que vimos esse conceito nas aulas do professor Francisco, o típico fanboy dos moradores da Grécia. — Ah, mas não o culpava, eles eram bem legais…
Sim, eu era meio estranha.
Ao continuar, a lógica era simples, porém profunda:
“Quanto mais pessoas acreditavam em suas escritas, mais fortes eram os encantamentos de seus livros”
Esse fenômeno era conhecido como Princípio da Crença Literária. Uma conexão direta entre conhecimento e fé. Nas épocas clássicas, os Dominadores Autores eram figuras poderosas.
Verdadeiros moldadores da realidade, eles mudavam o curso da história.
Mas hoje… a quantidade de autores diminuía.
Mesmo com mais leitores, havia pouca profundidade no conhecimento desses leitores em relação à história.
— Afinal, quando se reproduz uma ideia… ou se reaplica algo já criado por outro DA, a conexão do usuário com os QPs daquele encantamento se enfraquece.
Esse era o Princípio das Ideias Reprodutivas. Um conceito fundamental.
Quanto mais se utilizava uma ideia ou arquétipo, mais difundido e menos impactante ele se tornava. Isso afetava diretamente os níveis de dominação: quanto mais superficial era o conhecimento, menor era a força lírica do encantamento.
Era em resposta a isso que, após a popularização da literatura no século I d.L., surgia no século III d.L. uma política de proteção intelectual: o Copyright.
Criado no Reino dos Anglos, através do Estatuto da Rainha Ana, o sistema era batizado de Proteção de Domínio Intelectual. A proclamação feita neste estatuto basicamente era a primeira forma concreta de proteger a unicidade de uma obra.
Seu objetivo era claro: impedir que, ao menos diretamente, as reproduções de ideias ocorressem. Limitar o uso excessivo dos mesmos elementos entre diferentes DAs.
Com o tempo, a política se difundia. E, finalmente, foi aceita mundialmente após a Convenção de Berna, no século IV d.L.
Essa ideia de copyright surgiu como um sistema de defesa intelectual. Mas hoje em dia… são muitas vezes usadas como desculpa para restringir a produção literária.
“Assim, era interessante pensar: tínhamos limites no que podíamos copiar ou repetir de ideias… mas e quanto à criação?”
Tentei me lembrar se já tive essa dúvida antes.
“Se os autores podiam escrever livros como quisessem… por que nunca se escrevia um livro superpoderoso, capaz de dominar encantamentos absurdamente poderosos?”
— Na real, era essa a dúvida que sustentava o enunciado do Dilema do Autor. Oh, baita memória boa, até conveniente de certa forma… — ponderei por um momento, já que organizava a minha linha de raciocínio, até que…
Voltei meu foco ao caminho e percebi que já chegava à Praça Central das Luzes em breve. Só faltava andar mais um pouco e virar essa esquina, e bingo!
E, ali estava ela, imensa e iluminada. A praça era ampla, com uma fonte majestosa no centro. Ao lado, um palco circular, exposto e belo, suas pilastras brancas e teto abobadado num escuro levemente esquecido pelo tempo.
E, como o nome da praça prometia, havia luzes por todos os lados. Postes luminosos de diferentes formatos e tamanhos se espalhavam ao redor, que criava uma atmosfera acolhedora e quase mágica.
Tantas luzes pareciam um mosaico cuidadosamente projetado para enviar uma mensagem aos alienígenas. Um negócio completamente louco.
Independentemente da intenção, ali, do outro lado da praça, avistei um prédio de dois andares.
Sua paleta de cores era simples: azul, branco e vermelho. Claramente uma alusão à bandeira do município.
A infraestrutura do prédio era modesta. Um bloco quadrado, sem muitos ornamentos. Uma porta de vidro dupla na entrada.
Algumas pequenas árvores decorativas à frente, e um canteiro com suculentas elegantes completavam o cenário.
Aquele prédio era o último da sua linhagem. Parecia servir como a última resistência dos livros em um mundo de negócios por todos os lados, e uma arquitetura fria e estranha.
Uma espécie menos glamourosa ou heroica do que a cidade cercada de Falcon Scott… Mas, tinha seu charme, vai.
Ali estava ela: a Biblioteca Provincial de João Batista.
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