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    POV: HELENA IVYRA.

    Depois da conversa com a Renata, os dias seguintes passaram num borrão. Era curioso perceber como o tempo podia moldar-se à presença de alguém. 

    Eu jamais imaginei que uma constância silenciosa pudesse ser tão reconfortante, quase terapêutica. Ela veio todos os dias, um deles com flores frescas, outro com biscoitos meio queimados que ela insistia em dizer que estavam “propositalmente queimados demais”. Era o toque gourmet dela. 

    Eu sorria. E sorrir tinha voltado a ser possível. Um gesto simples, mas que agora brotava como se algo dentro de mim estivesse descongelando. Aos poucos, respirar também tinha deixado de ser um esforço. O ar voltava aos pulmões sem doer.

    O tempo parecia dançar com menos pressa quando ela estava por perto. Cada minuto deixava de ser um fardo, cada hora um pouco mais leve, como se o peso da existência tivesse sido diluído em sua presença. 

    E pela primeira vez desde tudo, desde a biblioteca, desde a dor que me fraturou por dentro, desde o caos que manchou cada pensamento, eu me permiti simplesmente… descansar. Não como quem desiste, mas como quem recolhe forças. Como quem reconhece a necessidade do intervalo entre uma batalha e outra.

    “Nossa, o que que deu comigo para eu estar tão poética ultimamente…” 

    Durante as manhãs, eu me pegava olhando o teto, sem pensar em nada. O vazio, antes opressor, agora era quase acolhedor. À tarde, conversávamos sobre tudo, menos magia, bibliotecas ou destruição. 

    Falávamos sobre comida, sobre roupas estranhas que víamos em revistas, sobre receitas que nenhuma de nós jamais tentaria, sobre um futuro distante onde tudo doía um pouco menos. À noite, às vezes, eu me pegava pensando o que tinha acontecido com aquele encantamento estranho.

    Como ainda não estava me sentindo totalmente recuperada, nem sequer tentei usar meus encantamentos, mas assim que possível, pretendia testá-los para entender melhor o que havia acontecido.

    Além do mais… Tenho algo para investigar.


    Alguns dias depois, num domingo de céu absurdamente azul, com nuvens que pareciam desenhadas à mão, acordei sentindo meus músculos doerem com menos intensidade.

     Meu corpo ainda era um campo de batalha pós-conflito, cansado, um pouco enferrujado, mas a rigidez estava cedendo, e a mobilidade voltava aos poucos. Como se minha alma estivesse finalmente negociando os termos do retorno com minha carne.

    — Hoje é o dia — disse Renata ao entrar no quarto com a energia de sempre, aquela que parecia desafiar o peso do mundo. Ela trazia uma mochila leve, mas cheia de significados: meu casaco favorito, as chaves de casa, e um daqueles sucos verdes que ela jurava que faziam milagres e que eu fingia gostar só pra vê-la sorrir.

    — Que dia? — perguntei, ainda meio sonolenta, a voz embargada pela transição entre o sonho e a realidade.

    — O dia de voltar pra casa.

    Senti uma sensação maravilhosa ao perceber que finalmente poderia voltar à rotina. Hospitais são lugares incríveis quando estamos em apuros, porém ficar num por muito tempo, é tão doloroso quanto estar preso.

    Mesmo com esse sentimento bom, decidi que havia uma última coisa a fazer.

    — Quero passar na biblioteca antes — anunciei, enquanto já me espreguiçava para levantar.

    Renata me olhou por um instante. Seu olhar suavizou, cheio de compreensão. Ela sabia. Claro que sabia. Ela sempre soube ler nas entrelinhas. 

    — Achei que diria isso. Eu trouxe água, e vamos devagar. Você ainda não está pronta pra correr maratona.

    Olhei para ela com um sorriso debochado e respondi:

    – Você que pensa, já poderia correr a São Silvestre amanhã 

    – Aham sei… – respondeu ela, revirando os olhos.

    Terminei de me arrumar, em um momento a minha mãe passou no hospital, resolvemos todos os detalhes do médico, e peguei as receitas de alguns medicamentos que teria que tomar para dor nos próximos dias.

    Depois dali, eu e Renata nos separamos da mãe, que foi para casa. Enquanto nós, nos direcionamos para o centro, para a biblioteca.

    O caminho até lá foi pontuado por um silêncio denso, mas não pesado.

    Era um silêncio que protegia. Que respeitava. Que dizia “estou aqui” sem palavras.

    Eu precisava desse espaço. Cada passo puxava pensamentos demais, cada esquina trazia de volta lembranças que estavam adormecidas.

    A cidade seguia seu curso, indiferente às minhas memórias, mas cada sombra, cada vitrine conhecida, cada ruído familiar, ocorria como teria sido dias antes.

    Quando nos aproximamos da Praça da Luz, senti meu coração afundar com um peso que me puxava por dentro. A biblioteca… ou o que restava dela.

    Era estranho. Há poucos dias, aquele lugar era um gigante adormecido. Um monstro feito de concreto antigo, madeira rangente e corredores saturados de tempo e história. Agora, era só escombro. 

    Uma cicatriz aberta no meio da cidade, exposta, crua, sem bandagem ou pudor.

    — Estão dizendo que foi uma explosão de gás — comentou Renata, sem olhar diretamente para mim, como se temesse encontrar o reflexo da minha dor no meu rosto. — Que um duto antigo estourou. E no acidente, o incêndio se instaurou na biblioteca. 

    — Mentira — sussurrei, mais para mim mesma do que para ela.

    — Eu sei.

    A cidade precisava de uma explicação simples. Algo que coubesse nos jornais, que soasse como um infortúnio comum. 

    Um erro técnico que por infortúnio aconteceu. Mas, havia mais por trás. 

    Ficamos ali, paradas. O vento balançava a poeira no ar, e havia algo mais ali do que o cheiro de fuligem e terra. Era um tipo de silêncio que gritava. Um luto sem velório, uma despedida sem palavras. 

    A ausência daquele prédio pesava mais do que qualquer presença. A falta das janelas, do telhado, das colunas… era como se tudo naquela paisagem tivesse virado alienígena naquele momento. 

    Avançamos devagar em direção aos escombros. 

    Cada passo afundava levemente na poeira fina que cobria o chão. O cheiro de enxofre ainda era forte, queimava as narinas e deixava um gosto metálico na boca.

    Partes de concreto quebrado estavam espalhadas por todos os lados, como ossos de um gigante que tombou em silêncio. 

    “Talvez o Sunny tenha se sentido assim na Tumba de Ariel, negócio assustador…” 

    Havia restos de madeira carbonizada, páginas parcialmente queimadas, letras esfareladas entre a poeira. Era como pisar sobre memórias, e de certo modo, era exatamente isso.

    Havia algo de sagrado naquele lugar em ruínas. Aquilo não era só destruição, era a representação física de um fim. Um fim com peso. Um fim com intenção.

    A última ruína.

    Tudo ali fora deliberadamente aniquilado. Cada parede, cada prateleira, cada documento. Aquela destruição teve método, objetivo. H queria algo. 

    E alguém colocou aquele arquivo ali com propósito. Ainda não sabia quem, nem exatamente o porquê, mas saberia. Eu descobriria.

    — Me deixa ir sozinha daqui pra frente — pedi a Renata, apoiando levemente a mão em seu braço.

    — Tem certeza? — Ela franziu a testa, preocupada. Contudo, não insistiu.

    — Tenho. Preciso disso.

    Ela assentiu, respeitando meu pedido. Apoiei-me na beirada de uma parede quebrada e comecei a andar. Cada passo era uma negociação entre a dor do corpo e a vontade da alma. 

    Meus pés deslizavam entre fragmentos, escorregando levemente sobre o pó fino. Mesmo assim, eu continuava.

    Vi coisas que reconhecia. 

    Um canto onde costumava haver uma estante com literatura brasileira, agora, só um monte de papel queimado e pedaços de madeira enegrecidos. 

    Um pedaço de viga que já fora parte da seção de ficção estrangeira. O corrimão lateral, agora torto e carbonizado, que nunca fora consertado porque todos já sabiam desviar do seu defeito. 

    Pequenas falhas que se tornaram identidade.

    A biblioteca nunca foi perfeita. Mas era um lugar que eu amava..

    Era mais do que um prédio. Era um refúgio. 

    Um lugar onde cresci, onde sonhei, onde me escondi do mundo real, e, em muitas formas, onde me descobri. Cada canto daquele espaço guardava um pedaço meu. Um pedaço da Helena que fui, da que tentei ser, e até da que um dia poderia voltar a ser.

    E agora… agora tudo aquilo era cinza.

    A última fortaleza da minha infância havia caído.

    Continuei andando, ignorando a fisgada constante nas pernas. Meus olhos varriam os escombros como quem procura fantasmas, e encontrei um. Fantasma? Não, um livro que trazia a sensação fantasmagórica.

    No canto esquerdo do que um dia fora a sala de leitura, entre vigas queimadas e pedras quebradas, vi um brilho fosco. Uma cor que destoava do resto. Agachei com esforço, afastando as pedras com as mãos cobertas de poeira, até conseguir puxar.

    Era ele. “Pena e o Arch.”

    A capa estava suja, chamuscada nas bordas, porém intacta. Meu coração apertou. Quase chorei ao vê-lo.

    Esse livro era o último que eu estava lendo antes do acontecimento, acho que é uma boa forma de ter algo que me lembrasse desse acontecimento.

    Guardei o livro contra o peito. Aquela era a última coisa inteira que havia restado. Da biblioteca. E, de certo modo, da Rose também. 

    Eu o manteria. Como memória. Como promessa.

    — Você achou alguma coisa? — perguntou Renata, se aproximando devagar.

    — Achei um livro, acho que é uma boa recordação de se guardar.

    Havia mais por descobrir. Eu sabia. Alguém arquitetou aquela destruição. 

    Havia um motivo. Havia respostas ali, enterradas sob os escombros e a mentira conveniente das autoridades. No entanto, não hoje.

    Hoje, eu precisava voltar para casa. Voltar para mim mesma.

    As aulas começariam em breve. A rotina, os compromissos, os novos começos. Não era hora de abrir feridas. Era hora de curá-las.

    E no fundo, eu sabia: era isso que Rose desejaria.


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