POV: HELENA IVYRA.

    Uma forte dor latejante na cabeça me fez despertar aos poucos, enquanto minha visão embaçada começava a se esclarecer. 

    Ainda assim, tive certa dificuldade em entender onde estava ou o que acontecia ao meu redor.

    Foi uma voz calma que me resgatou daquele estado confuso.

    — Ei, pequena, acorde! — disse alguém com suavidade, despertando-me por completo naquele instante.

    Abri os olhos devagar e percebi que meu rosto estava um pouco babado. Pelo que tudo indicava… eu havia adormecido sobre a mesa da biblioteca, com a cabeça repousada nos braços de alguém.

    — Querida, você está bem? — repetiu a voz.

    Virei o olhar na direção de quem falava e, então, reconheci imediatamente: era Rose. A voz era dela o tempo todo.

    — Estou sim, tia Rose… minha cabeça dói bastante — murmurei, levando a mão até a lateral dolorida da cabeça.

    — É normal isso acontecer, pequena. Você estava dormindo fora de horário de novo. São 14h, e você aqui, dormindo… Continua com os problemas de insônia? Se sim, deveria pedir para sua mãe te levar ao médico — disse ela, com aquele tom de preocupação habitual.

    — Você sabe como é a mãe… Ela sempre diz que a culpa é minha, por não conseguir ficar quieta e tal… — resmunguei, ainda esfregando a cabeça dolorida.

    — Hmpf… Ai ai… sua mãe é bem cabeça-dura, hein… — suspirou Rose, exausta. — De qualquer forma, olha o horário. É melhor você ir para casa antes que o sol fique muito quente.

    — Ahhh, eu queria ficar mais um pouco… queria ler mais um pouco — insisti, tentando conseguir um tempinho a mais fora de casa.

    — Ler? Você passou o tempo todo dormindo, pequena… — disse ela, com um leve sorriso.

    — Ahhh, prometo que vou ficar acordada dessa vez. Uááá… — bocejei, meio sem força.

    — Aham… sei — respondeu ela, cética. — Vai logo pra casa…

    Enquanto falava, ela já arrumava minhas coisas sobre a mesa, colocando tudo dentro da minha mochila.

    — Mas, tia Ro…

    — Sem mais, pequena. Vai logo. É melhor pra você, assim pode colocar esse sono atrasado em dia — interrompeu ela, me guiando até a saída.

    — Ahhh, pelo menos me deixa levar alguma coisa pra ler?? — pedi, tentando arrancar ao menos uma concessão.

    — Hmpf… — suspirou ela, claramente tentando reunir paciência. — Certo. Vamos fazer um acordo, então. Se eu te recomendar um livro, você promete ler inteirinho?

    — Com certeza! Eu adoro os livros que você lê pra mim! — respondi, animada com a ideia.

    — Bom… vamos ver… — disse ela, levando a mão ao queixo e observando o ambiente com atenção, à procura de algo apropriado.

    — Ahá! Já sei! — exclamou de repente, dando alguns passos até uma estante de nicho, próxima à mesa da recepção. — Esse aqui! Acho que vai ser uma leitura que você vai gostar. Promete que vai ler tudo, Helena?

    — Com certeza, tia Rose! — disse, empolgada, ansiosa para ver qual livro era.

    Peguei o livro em mãos. Era simples, com uma capa que mostrava várias crianças correndo numa praia. O título era curioso, enigmático para mim, mas, ao mesmo tempo, cativante.

    Dizem que não é certo julgar um livro pela capa, mas naquele momento. Eu sabia que, antes mesmo de abrir, iria adorá-lo.

    Afinal, era uma recomendação da Tia Rose.

    — Faço questão de você ler esse livro. É o meu favorito! O nome é Capitães de Areia, do Jorge Amado. Uma história linda! — disse Rose, com uma felicidade genuína no olhar.

    Mas, antes que eu pudesse responder, minha visão escureceu de repente.

    A dor voltou cruel e martelante, e destruiu aquela lembrança como uma maré quebrando um castelo de areia.

    A visão ficou confusa, embaçada, exaurida. 

    Provavelmente, tudo ainda era reflexo do choque que eu havia sofrido na cabeça…

    Tudo ao meu redor se tornou instável. Eu apenas captava flashes breves da consciência, imagens que passavam diante de mim como lembranças soltas.

    Vi minha mãe por um instante. A senhora Eduarda, com seus longos cabelos loiro-escuros, já salpicados por alguns fios brancos teimosos, quase como lembretes de que o tempo, embora não tivesse arrancado seu bom humor nem sua identidade forte, havia feito questão de apagar a cor de seus cabelos.

    “E espero que seja a única coisa que apague dela por muitos anos ainda… Preciso que ela me veja como física um dia…”

    Mesmo assim, ela estava ali. Ficou ao meu lado durante os breves momentos que consegui reter da memória.

    Devido ao intenso trauma mágico e físico, mal me lembrava do instante em que H me atingiu.

    Só restava a lembrança do peso esmagador em meu corpo, como se todos os meus músculos tivessem desistido. A mesma sensação de fadiga total que senti durante a drenagem dos meus QPs.

    Aquele estranho cheiro de enxofre e monóxido de carbono do incêndio ainda parecia grudado em mim e no ambiente.

    Fazia meu estômago revirar e meus sentidos se confundirem. Parte de mim se perguntava se ainda estava naquela biblioteca em chamas.

    Lembranças dispersas vinham à tona… memórias de quando a Rose tinha me recomendado o livro favorito dela… E que depois, passou a ser o meu.

    Esse tipo de memória me deixava levemente feliz por ter vindo para essa cidade. Conhecer pessoas como Rose sempre me fez feliz. Ela era uma tia de consideração que me apoiou muito quando cheguei.

    Minhas emoções ficavam levemente confusas devido ao encantamento das Correntes da Liberdade Marginal, mas graças ao contraponto da Tesselação com o controle, eu conseguia até lidar bem com o conflito desses dois. Mas, dessa vez, eu havia exagerado um pouco. 

    Meu cansaço estava dificultando.

    Principalmente, na época do ensino fundamental. Lembrava de ter um pouco de dificuldade com o bendito português e aquelas malditas regras de paroxítona, oxítona e onde botar o ferrenho assento.

    Ela foi uma das primeiras pessoas a me ensinar o quão legal era estudar e como aprender sempre podia me animar.

    “Espero que ela esteja bem…”

    Depois de um longo e exaustivo caso de dor de cabeça, minha visão finalmente voltou ao normal, e consegui distinguir onde eu estava.

    Estava em uma maca simples com detalhes em branco e verde-lima claro.

    Ao meu lado, alguns aparatos médicos, um armário cinza bem simples com duas portas com detalhes em preto.

    Na parede oposta da cama, uma pequena janela superior permitia a entrada da aragem fresca da noite. E, é claro, a sombra do luar que já aparentava estar no seu apogeu.

    Reconhecia aquele lugar pela vista. Era o Hospital Monsenhor de João Batista. O hospital público da cidade. Estive ali em várias ocasiões em que fiquei doente.

    Lembrei-me de ter ouvido alguns passos pesados vindos da porta que ficava perto de duas cadeiras, posicionadas ao lado de um suporte de braço para exame de sangue.

    Vi um homem abrir a porta, com uma camiseta social verde e um simples cardigan marrom. Eu o reconhecia: era Noah, o policial que estava na biblioteca.

    — Ah, você acordou. Perdão, não era meu intuito te acordar — disse Noah, com seu tom bem ameno, tentando não falar muito alto, aparentemente.

    — S-sem problemas, você não me acordou — respondi, com certa dificuldade de me mover, devido à fadiga.

    — Tente não se esforçar demais — disse Noah, enquanto se sentava na cadeira que ficava do outro lado da sala. – O médico me autorizou vir aqui, contando que eu não fizesse você se esforçar demais. 

    Assim que sentou, ajeitou sua postura, cruzou as pernas e continuou:

    — Você demonstrou uma habilidade e tanto lá, hein? Pretende se tornar policial ou algo parecido? — perguntou Noah, com um tom descontraído, como se estivesse puxando conversa.

    — Obrigado, mas pior que não penso nisso não. Pretendo me tornar acadêmica — respondi prontamente.

    — Ainda bem… Tendo em mente que você tem 17 e consegue fazer aquilo… Misericórdia… — exclamou Noah, com o rosto com certo tom de indignação. — Jovens de hoje são assustadores. Se você fosse se tornar policial, me substituiria em uma semana, e não quero me aposentar tão cedo… Então, acho que te devo uma por isso — completou ele, com divertimento.

    — Acho que estamos quites. Você salvou minha pele lá também — brinquei, devolvendo a gracinha.

    — Pois é, lutas muito bem. Já praticou algo? — perguntou Noah, enquanto trocava a perna em que se apoiava.

    — Um pouco de muay thai, algumas aulas de esgrima e práticas de combate individual na escola — respondi, tentando recordar algo mais.

    — Um pouco? O outro cara deu no pé por medo. E sinceramente, não o culpo, também sairia correndo — disse Noah, com um tom irônico.

    — Tinha que ter visto o que eu faria com ele num dia bom, en… — Cof-cof. Cof-cof.

    Comecei a tossir fortemente, ao ponto de que minha garganta seca enfraqueceu momentaneamente.

    Vi Noah pegar uma garrafa d’água, que percebi agora que ele trouxera consigo, e se aproximar da maca para me alcançar.

    — Calma, tome um pouco dessa água… O CO₂ do fogo deve ter te afetado um pouco — disse ele, com expressão de preocupação.

    Peguei a garrafa rapidamente e tomei um pouco menos da metade de uma vez. Percebi o quão seca estava minha garganta e o quanto de fumaça eu havia inalado.

    — Sua mãe ficou bem preocupada com você. Ela passou o dia inteiro aqui — comentou Noah, enquanto assumia uma posição escorado na parede.

    — Como assim o dia inteiro? Quanto tempo fiquei desacordada? — perguntei, incrédula, sem saber a passagem do tempo.

    — Um pouco mais de um dia. Você deu sinais de fala hoje pela manhã. Agora é noite do dia seguinte da biblioteca — respondeu prontamente Noah.

    — Ah, entendi — concluí, sem saber o que mais adicionar.

    Um momento de silêncio se estabeleceu de forma natural… Um tanto de coisas precisavam ser ditas, milhares eram as perguntas que eu tinha. Mas o problema das palavras é que elas escolhem o tempo em que virão, e não você que escolhe quando usá-las.

    Percebendo o silêncio, vi Noah suspirar fortemente. Ele andou novamente até as cadeiras e puxou uma delas com o braço esquerdo para mais próximo da maca.

    — Bom, hora da conversa complicada — disse, enquanto se sentava normalmente, voltando à posição de pernas cruzadas e braços cruzados com uma mão no queixo, como se estivesse organizando os pensamentos.

    — Tudo certo, vamos lá! Antes que eu esqueça, perdão pela falta de modos, não me apresentei normalmente — disse com uma certa reverência. E, sem esperar por resposta, continuou: — Me chamo Noah Williams, um Agente da Polícia Federal e Especialista Técnico da ABIN.

    Ele ajeitou novamente a postura e, com semblante sério, disse:

    — Aquele homem que você lutou contra na biblioteca é um fugitivo internacional. Ele é o suspeito não identificado número 8. Ou como o chamamos: Suspeito H. Até então, sua nacionalidade é desconhecida, mas acreditamos que seja americano ou norueguês.

    Olhei firmemente para ele enquanto relatava quem era o suspeito. Suspeito H, fugitivo internacional?

    “Essa bagaça está parecendo um filme do James Bond. Porra, Helena, parabéns. Olha onde você foi se meter, brigou com um supervilão do filme do 007… Aaaah.”

    Vendo que fiquei silenciosa abruptamente:

    — Se está pensando que pode estar em perigo, não se preocupe. Nossas fontes confirmaram esta manhã que o paradeiro de H já foi identificado bem longe daqui — disse Noah, com o intuito de me tranquilizar. Que funcionou um pouco, pelo menos.

    Pois, sem perceber, vi que minhas mãos estavam tremendo rapidamente enquanto ele falava. Ouvir aquilo serviu para me acalmar um pouco…

    Eu o encarei em silêncio, esperando que ele continuasse.

    — Ele estava à procura de algo, um documento — continuou Noah, mas logo desviou o olhar. — Falaremos disso depois. Antes, preciso te contar algo… e não é algo fácil.

    Meu coração apertou. A forma como ele hesitou deixou milhares de espaços abertos para interpretações ruins que eu poderia pensar.

    Mas nenhuma delas foi tão horrível quanto o que ele disse.

    — Rose foi vista pela última vez sendo brutalmente arremessada contra uma parede por H.

    Fechei os olhos, tentando conter a dor que começava a crescer dentro de mim. Mas ele ainda não tinha terminado.

    — A biblioteca… — disse ele, com voz pesada. — Foi vista em chamas. A estrutura inteira desmoronou. Ela foi completamente destruída.

    A biblioteca. O último lugar onde os leitores podiam viajar para outros mundos e realidades em paz.

    Havia caído.

    Era semelhante à queda de Constantinopla. Senti que talvez não fosse a última.

    — As garotas que você conseguiu levar até a escada — disse ele, tentando me consolar. — Estão estáveis, por enquanto. Porém, não temos certeza sobre a recuperação final delas. Os encantamentos de H foram fortes… precisamos observar.

    Então ele respirou fundo, como se cada palavra a seguir exigisse um esforço imenso.

    Esperou por um momento. Que me fez pensar em diversos cenários do que poderia ter acontecido.

    Coisas ruins. Coisas que poderiam mudar o tom daquele diálogo para algo positivo. Algo que me alegrasse. Contudo, Noah manteve sua expressão fria e semblante gélido.

    E botou a cereja em cima do bolo daquela situação horrível.

    — Helena… Sinto muito. Infelizmente, Rose não sobreviveu. Ela morreu de traumatismo craniano.

    O mundo parou por um momento. E tudo dentro de mim se calou.


    ✧ Nota do Autor ✧

    Olá, meu caros leitores!
    Susangja aqui! ✌️

    Esse capítulo em específico é muito importante para mim por vários motivos. Então, queria passar para deixar algumas palavras de agradecimento!

    Primeiro, pela incrível de marca que atingimos no primeiro mês de publicação de GMB, hoje (28/06) chegamos às duas mil visualizações na obra! Tudo isso, apenas no primeiro mês de publicação!

    Sinceramente, nunca achei que chegaria em tal marca tão rápido, ainda mais no exato do último capítulo do primeiro mês de publicação. Esse é o capítulo 17 da obra!

    Justamente o que encerra o primeiro arco da obra. E que possui um impacto bem grande para a personagem principal.

    Por isso, queria deixar essa pequena nota. Agradecendo para quem tirou um tempinho para ler a obra e deixar o feedback com os likes e comentários.
    Para vocês, pode ser pouco, mas significa bastante para um autor iniciante como eu.

    Outra marca legal que estamos atingindo, é a de atualmente estarmos na décima posição das obras nacionais em views do mês de Junho!

    Que por ventura, é o mês que eu faço aniversário. =D Então, obrigado por esses incríveis presentes!

    Quero retribuir, com esse capítulo um pouco maior do que o normal com 2.000 palavras (em comemoração aos 2k de views!), e com uma novidade que comentarei melhor na semana que vêm.

    Dito isso, novamente agradeço! Espero que gostem do capítulo. Vejo-os no próximo!

    Espero que continuem acompanhando as aventuras de Helena pelo mundo de GMB. E desejo todos uma boa leitura!

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