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    POV: RENATA SILVEIRA

    Era uma manhã comum de fevereiro. E lá estava eu, tomando meu café devagar, sentada na cama, com um livro nas mãos. 

    A capa mostrava um homem parado na beira de um precipício, conversando com um morador de rua. Bem incomum… mas intrigante.

    Virava as páginas calmamente, aproveitando aquele silêncio aconchegante do meu quarto. Estava levemente entusiasmada com a leitura.

    A narrativa era inconsistente, mesmo assim me interessava bastante pela proposta ou melhor pelo tópico selecionado. Sonhos.

    Todas as frases apesar de serem simples, possuíam ideias que me identificava com, e que achava conectar-se bem com o todo do livro. E que há palavras que parecem ser usadas especialmente para leitores do meu estilo.

    Gosto de histórias assim, que se encaixam nas frestas da alma.

    A temática dos sonhos sempre foi uma das que mais me fascinou. As minhas obras favoritas abordam isso e sempre interpretei o significado dos sonhos como um mistério a ser respondido.

    “E eu era o Sherlock Holmes responsável pelo caso!”

    Cada sonho era um caso misterioso que eu era inserida e que teria para responder. Como uma boa criança enxerida sempre mergulhei nesses mistérios para tentar resolvê-los. Claramente, tive poucos sucessos, mas valeram a aventura! Afinal, sonhos são jeitos de entender o que somos e o que podemos nos tornar.

    Tudo ocorre como distorções da realidade. Moldáveis, voláteis.

    Podem ser bons ou ruins. Para mim, são reflexos da natureza humana em sua forma mais crua.

    Um quadro em branco: tanto pode servir para técnicas ultra realistas de desenho quanto para uma criança empolgada com gizes coloridos. 

    São fragmentos do inconsciente, como ecos de histórias que não foram contadas por completo. Cada símbolo, cada detalhe aparentemente aleatório… pode carregar um sentido importante.

    Assim como os livros, os sonhos dizem muito sobre a gente. São espelhos quebrados da nossa identidade. 

    E talvez seja por isso que eu goste tanto de estudar as camadas escondidas de uma narrativa, de uma vida, de um pensamento. Em muitos momentos, me sinto dividida entre a realidade e essa outra dimensão onde tudo é mais livre, mais estranho, mas também mais honesto.

    “Parando para pensar, eu sou até um pouco cismada demais com esse tema… Por que será?”

    Talvez por medo de encarar o mundo real em sua rigidez? 

    Talvez por esperança de encontrar respostas que a vida acordada insiste em esconder? 

    Ou talvez, no fundo, porque esse universo onírico me permite ser quem eu quiser ou, pelo menos, explorar versões de mim que jamais ousariam existir fora de mim mesma.

    Toc-toc. toc-toc.

    — Mãeee? O que foi? — perguntei, sem sair da cama.

    A porta abre levemente e vejo minha mãe com uma expressão assustada que me incomoda, mas que antes pudesse dizer algo, ela complementa…

    — Renata, é sobre a Helena! Ela sofreu um acidente, ela está no hospital!

    Aquela frase me paralisou por um instante.

    Um gelo subiu pela minha espinha. O nome dela ecoou na minha mente. 

    Helena. Minha melhor amiga e confidente.

    O que céus aconteceu com ela? Ela está bem?

    Diversas perguntas brotaram na minha mente naquele momento, mas tive que me contê-las por hora. 

    – Sabe o que aconteceu? – perguntei, já me levantando para me arrumar para sair.

    – Não exatamente, a Eduarda me ligou agora há pouco para contar, aparentemente teve uma explosão de gás perto de onde ele estava e ela acabou se machucando, ela está internada no hospital aparentemente. – respondeu ela, com o tom usual de preocupação. 

    – Eu posso ir visitar ela agora, mãe?– pedi, conforme arrumava a bolsa rapidamente.

    – Claro que pode filha, é exatamente por isso que vim te chamar, passa lá para fazer uma companhia para ela e diz pra Helena que tudo vai ficar bem. – confortou-me ela. 

    Helena e eu, já compartilhavamos vários anos de amizade, tanto que nossas mães já eram amigas há bastante tempo também, então se uma ficasse doente, a mãe da outra já se preocupava também.

    Era um sentimento muito legal poder contar com esse apoio.

    Assim que terminei de arrumar a bolsa, me vesti o mais rápido que consegui.

    Saí de casa como um foguete, sem pensar em mais nada.

    Minha cabeça estava vazia, exceto por imagens desconexas do que poderia ter acontecido. 

    Explosão de gás? Onde será que ela estava?

    Ela se machucou sério?

    “Não, pera… Se ela já pode receber visitas, não deve ter sido nada sério né?”

    Lembranças de risadas no intervalo das aulas no ano passado, das longas conversas madrugada adentro, das discussões acaloradas sobre livros e teorias da conspiração quebraram meu momento de perguntas apreensivas.

    O clima estava diferente de dias atrás. 

    A cidade agora tinha um ar ameno, nublado, com uma chuva leve que deixava tudo mais cinzento. 

    E o meu coração pesava. Não era só o medo do que poderia ter acontecido com ela. 

    Era a sensação de que a coincidência, que por sinal era horrível, dela ter sofrido esse acidente, bem antes do começo das aulas, provavelmente estaria martelando na cabeça dele neste momento.

    Passei pelas poucas ruas que separam minha casa do centro da cidade, onde ficava o hospital. Ao chegar lá, fui rapidamente à recepção, com o peito apertado.

    — Com licença… eu queria saber sobre uma paciente. O nome dela é Helena Ivyra. Posso visitá-la?

    A recepcionista me olhou com um espanto que não disfarçou. 

    Seus olhos demonstraram surpresa antes que ela se afastasse.

    – Espere um momento. – disse ela, direcionando-se para os corredores internos.

    Aquilo me deixou ainda mais inquieta. 

    Que tipo de acidente teria sido? E por que ela reagiu daquele jeito ao ouvir o nome da Helena?

    Enquanto esperava, observei o lugar. 

    Era um hospital relativamente grande, com várias salas divididas por etapas de atendimento. A recepção tinha um balcão branco com detalhes em vermelho. O ambiente era ocupado por grupos de assentos organizados como num pequeno corredor. 

    O vai e vem constante de funcionários e pacientes criava aquela rotina típica de hospital: agitada, porém controlada. Um bebê chorava ao fundo. 

    Uma mulher discutia com um enfermeiro sobre horários de visita. E, no meio de tudo isso, eu estava lá, apenas esperando para ouvir algo de minha amiga.

    Alguns minutos depois, a recepcionista retornou.

    — Venha comigo. — disse ela, com um sorriso leve diferente da surpresa de antes. — Foi bom você ter vindo. A Helena… ela tem estado bem triste desde ontem. Chorou várias vezes. 

    Agradeci com um aceno e segui ela pelo corredor. 

    Virei à direita, depois à esquerda, e parei diante de uma porta branca de um quarto simples para pacientes internados.

    Meu coração batia forte. A recepcionista me deixou sozinha. Bati levemente.

    Não ouvi resposta.

    Abri devagar e entrei.

    Lá estava ela: deitada na maca, o rosto pálido e seus cabelos castanhos-escuros bagunçados, a expressão sombria. Parecia tão frágil… tão diferente daquela Helena vibrante que eu conhecia.

    Me cortou o coração vê-lá daquele jeito.

    — Bom dia, amiga… Tudo bem? — perguntei, fechando a porta atrás de mim.

    Ela virou o rosto, contrariada.

    — Não era hora de visita — murmurou.

    — Parte do nosso acordo, lembra? Eu te protejo quando posso. Você me protegeu quando podia.

    — Renata, isso foi há uns oito anos! Como você consegue lembrar dessas coisas?

    — Disse a metida que sabe de cor todas as escolas literárias — rebati com um sorriso debochado.

    Ela se ajeitou melhor na cama e sentou com as costas na cabeceira, e deu um forte suspiro. 

    — Hmpf… Droga… sempre esqueço que você já está acostumada com as minhas reclamações. – comentou ela. – Pera… Você vem me visitar no hospital sem nenhum chocolate, nem nada? Que bela amiga, hein… 

    — Ahh, a Helena que eu conheço já está de volta ao normal, novinha em folha… – disse, com um sorriso levemente debochado.

    Ela respirou fundo antes de continuar.. Sua voz saía hesitante, quase um sussurro.

    – Imagino que quer saber o que aconteceu, né? – disse Helena, com uma voz baixa, quase muda.

    Cheguei para mais perto da maca, peguei uma cadeira que estava no canto e a coloquei ao lado dela.

    – Se você se sentir confortável, gostaria de saber sim. A mãe disse que foi uma explosão de gás, é verdade? – perguntei, recordando do comentário. 

    – Quê? Explosão de gás? Aquele maldito, mentiu até na causa! – resmungou Helena, irritada com alguém.

    – Quem é o maldito, amiga? – perguntei, tentando entender o que tinha acontecido.

    — Eu fui até a biblioteca pra estudar um pouco. Mas na entrada… aconteceu uma coisa estranha com um homem. – disse ela, com um tom de cansaço evidente. – E depois encontrei um livro esquisito, que estava escondido num aparato mágico. Ele me deu uma marca literária… sumiu logo em seguida. Foi muito bizarro.

    — Espera… como assim um livro escondido? — perguntei, arregalando os olhos.

    — Dois caras começaram a brigar dentro da biblioteca. Tipo gato e rato. Mas aí um deles parecia um policial… ou um tipo de agente secreto. Ele tava lutando contra um fugitivo internacional que se chamava H. – continuou, sem perceber a pergunta.

    — Eita, caralho… isso daria um bom filme, hein? — brinquei, tentando interromper a reclamação dela com um pouco mais de vivacidade.

    Ele me lançou um olhar torto, carregado de impaciência.

    — Piadas a essa hora? — indagou.

    — Hehe… é só pra te animar, você sabe disso. — respondi, encolhendo os ombros.

    — Tem sorte que estou meio mal por causa da Rose… — murmurou.

    — O que aconteceu? — perguntei, agora sério.

    — Ela morreu… — disse, com a voz embargada.

    Senti um aperto no peito. Rose era uma figura muito importante na vida da Helena. Uma amiga antiga, mais velha, quase como uma mentora. Sempre que falava dela, seus olhos brilhavam com um tipo de admiração que eu raramente via.

    — Sinto muito… Helena. Sei o quanto ela era importante pra você.

    Ela desviou o olhar, os olhos marejados. E então, com a voz pesada, começou a desabafar.

    Falou da raiva, da perda, da confusão. De como tudo aconteceu rápido demais. Como as coisas aconteceram, e como ela não pode fazer nada para mudar algo.

    O silêncio dominava o ambiente, quebrado apenas pela respiração pesada de Helena.

     Ela havia acabado de desabafar, e suas palavras ainda pairavam no ar, carregadas de angústia. Olhei para ela por um momento, recolhendo meus próprios pensamentos antes de falar. 

    Sabia que precisava escolher bem as palavras, não para consolá-la com ilusões, mas para ancorá-la na realidade.

    Aproximei-me um pouco, falando com um tom firme, mas cheio de compreensão:

    — Helena, você precisa entender que não é porque controlamos alguns encantamentos que somos capazes de controlar a realidade. Ou melhor… não somos capazes de comandar as coisas como queremos..

    Ela suspirou, desviando o olhar, enquanto se arrumava na maca devagar, como se cada movimento carregasse o peso do que sentia.

    — Eu sei disso… — murmurou. — Preciso aprender a parar de querer controlar as coisas.

    Havia sinceridade em sua voz, e também um traço de cansaço, o tipo que nasce da luta constante contra si mesma.

    — Sim… você é meio cabeça-dura com essas coisas. — comentei, tentando suavizar o momento com um sorriso leve. — Por isso é sempre bom eu estar com você. Assim posso te dar os puxões de orelha quando precisar.

    Ela esboçou um sorriso discreto. Aquelas pequenas rachaduras na sua tristeza me deram coragem. Dei mais um passo e a abracei, sentindo sua tensão aos poucos se dissolver entre meus braços.

    Fiquei ali por um momento, apenas segurando-a. Então, num tom mais baixo, mas cheio de verdade, acrescentei:

    — E sobre o que ocorreu na biblioteca… não sei o que aconteceu, mas quero que saiba que acredito em você.

    Ela não respondeu de imediato, mas o modo como apoiou a cabeça em meu ombro foi mais eloquente que qualquer palavra.


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