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    POV: NOAH WILLIAMS.

    “Garota, fica fora disso…”

    Essas palavras grudaram na minha cabeça por alguns instantes, eram palavras que eu disse, mas não achava correto.

    Dizer algo assim para uma pessoa que acabara de perder alguém importante era crueldade.

    Assim que fechei a porta atrás de mim, me peguei olhando para a parede por um momento, sem pensar em nada, como se estivesse esperando que algo ou alguém me tirasse daquele ciclo de pensamentos.

    O que de fato aconteceu… Alguém me tirou daqueles pensamentos.

    Encostado na parede ao lado da entrada, com os braços cruzados e um olhar com um tom de seriedade, estava Miguel Castro, ou como é conhecido oficialmente, Agente Sunflower. Seu cabelo era uma mistura incomum de preto com fios grisalhos bem distribuídos, denunciando os sinais da idade e da experiência acumulada.

    A barba espessa, igualmente mesclada de branco e preto, completava o visual de um veterano já acostumado com a dificuldade do trabalho de agente.

    Sua postura continuava firme, mesmo nos momentos mais descontraídos. Ele não era só meu superior na SLI, era um lembrete constante de que esse trabalho cobrava mais do que a gente conseguia entregar.

    — Você sabia que teria que falar aquilo em algum momento, não é, Noah? — ele disse com aquele tom neutro e ao mesmo tempo acusador que só ele dominava.

    — Vamos logo. Preciso relatar o que ocorreu na biblioteca — respondi, tentando manter a firmeza enquanto já me dirigia à saída.

    — Noah, sempre levando as coisas bem a sério… — murmurou atrás de mim.


    Assim que saímos do hospital, encontramos o carro já nos esperando na entrada. 

    Miguel sentou-se no banco de trás do carona, enquanto eu fui atrás do banco do motorista. Que por sinal, era discreto como sempre, nos levou em direção ao hotel onde estávamos hospedados, um prédio simples, mas funcional, localizado na entrada norte da cidade. 

    A localização era estratégica: dali, tínhamos acesso direto à rodovia principal, facilitando qualquer movimentação emergencial.

    Dessa vez, me permiti observar com mais atenção a cidade ao redor. 

    Era um lugar tranquilo, pacato até demais. As pessoas seguiam com suas rotinas, alheias ao que poderia estar se desenrolando bem diante dos olhos delas. 

    Um sentimento familiar de frustração crescia no meu peito. 

    Quantas vezes eu já havia visto esse cenário se repetir? 

    Quantas vezes a inocência coletiva foi esmagada por um conflito que sequer sabiam que existia?

    Desde que me juntei à SLI para ajuda na caça à Guarda-Sol, as chamadas “casualidades civis” haviam se tornado uma sombra constante em nosso caminho. Nunca foi só uma ou duas vezes.

    Foram várias. E cada uma delas deixava um gosto mais amargo que a anterior.

    Eu entrei nessa esperando salvar vidas. Acreditava que seria possível impedir os planos insanos daqueles fanáticos antes que atingissem os inocentes. 

    Mas, nos últimos encontros… Fracassamos. 

    H, o responsável por boa parte do caos, sempre escapava. E agora… aquela garota. Eu tinha certeza de que ela jamais olharia para um livro da mesma forma por minha culpa. 

    Como poderia culpá-la?

    Enquanto o carro seguia em frente, reparei nos olhares distraídos das pessoas andando pela rua. Trabalhadores, estudantes, mães com sacolas de supermercado. Gente comum. E ainda assim, todos eles vulneráveis. 

    Os livros, já tão raros, estavam se tornando ainda mais inacessíveis graças a incidentes como o de hoje. Um pequeno erro nosso,  e mais uma janela se fechava para essas pessoas.

    Afinal, os livros poderiam mudar e muito a vida de uma pessoa. Especialmente essas.

    Tal pensamento me lembrou da missão em que o outro grupo de agentes da SLI terá sido enviado. Com a dúvida em mente, me virei para o Miguel, e expressei meus pensamentos. 

    — Como anda a investigação do deputado Matheus? — perguntei, tentando afastar o peso da culpa por um momento.

    Miguel ativou seu smartwatch e começou a deslizar os dedos sobre a tela, com a mesma precisão meticulosa de sempre.

    — Por enquanto, encontraram poucas provas que o liguem diretamente à Guarda-Sol. Mas há fortes indícios de que ele está usando essa aliança como fachada para encobrir corrupção no gabinete dele. Estamos tentando usar isso como pretexto para intensificar a investigação.

    — Ótimo. Acha que conseguiremos reverter a lei a tempo? — questionei, pensando na legislação absurda que foi aprovada.

    Se nada fosse feito, aquela absurda legislação poderia tornar-se uma bola de neve bem problemática no futuro.

    — Temos que focar em encontrar H novamente. Algumas leituras indicam que, ao sair da biblioteca, algo o afetou profundamente, o que deixou rastros de energia pela cidade. Nós estamos tentando rastrear. – continuou Miguel.

    — Creio que foi o encantamento da garota — comentei, lembrando o que ela havia relatado sobre o estranho fenômeno que vivenciou.

    — Que encantamento poderoso, então… — murmurou Miguel, levantando uma sobrancelha. — Conseguiu desestabilizar até o controle energético dele. Ela deve ter um encantamento poderosíssimo para ter feito isso. Sabe dizer qual encantamento era?

    — Esse é o problema. Ela disse que, ao entrar em contato com o arquivo, adquiriu um encantamento temporário. Ele desapareceu logo após a ativação coincidentemente. – comentei, olhando para a janela de forma distraída. 

    — Temporário? — repetiu Miguel, enquanto começou a me encarar com seriedade. — Você, por acaso, sentiu aumento nos seus QPs durante o combate?

    Hesitei por um segundo antes de responder, enquanto recordava dos acontecimentos e da sensação de alívio que tive durante aquele momento. 

    — Sim… Espera. Você sabe o que aconteceu? – perguntei, voltando-me totalmente para ele. 

    Vi sua postura mudar de leviana para tensa do nada. Ele soltou um palavrão baixinho e endireitou-se no banco.

    — A garota está encrencada.

    Miguel pegou o casaco e começou a se movimentar antes mesmo de me dar mais detalhes.

    — Mudança de planos. Você volta para o hotel — ele anunciou, puxando o telefone e sinalizando para o motorista parar o carro.

    — Onde você vai? — indaguei, confuso com a súbita virada dos acontecimentos.

    Ele apertou alguns dígitos e ativou o número que reconheci pelo barulho ser a linha de comunicação emergencial da SLI. 

    — Alô, agente Sunflower aqui. Código G encontrado. Repito: código G foi encontrado. Necessito de reforços quando possível.

    Terminou rapidamente o anúncio, e voltou a me encarar.

    — Preciso contatar o chefe imediatamente. Você vai para o hotel e escreve um relatório completo do que ocorreu na biblioteca. Eu vou investigar o que puder sobre a garota. Ela se tornou um alvo. Se H descobrir que o encantamento do arquivo esteve com ela, não vai deixar barato.

    — Mas ela disse que o perdeu! — retruquei, tentando entender a gravidade da situação.

    — Noah, aquele encantamento… é um dos primeiros que se tem registros conhecidos pela humanidade. Ele existe desde antes da invenção dos próprios livros. As regras de hoje não se aplicam totalmente a ele. 

    Fiquei em silêncio naquele momento, tonteado por aquelas palavras.

    A informação me atingiu como um soco. Aquilo explicava o que aconteceu com H, o colapso energético, o comportamento errático.

    Tudo começava a fazer sentido. E tudo isso girava em torno dela, da garota que eu tentei afastar, como se não fosse parte daquilo.

    Era justamente o oposto, ela acabara de se tornar uma parte importantíssima dentro de tudo isso. 

    Uma pontada de culpa me atravessou. Eu a tinha acusado de mentir. Agora entendia que o que ela viveu era real. E muito, muito perigoso.

    Assenti com a cabeça, contendo a avalanche de pensamentos, e me despedi de Miguel antes de sair do carro.

    Estava na hora de escrever o relatório da minha missão.


    POV: MIGUEL CASTRO.

    Assim que deixei o carro, meu telefone vibrou no bolso. Atendi sem hesitar.

    — Agente Sunflower falando.

    Enquanto me afastava da avenida principal, o QG questionava sobre a situação. E o chamado que eu acabara de ter feito. 

    Relatei tudo o que sabia até o momento. Mencionei o incidente na biblioteca, o encantamento temporário, a reação anormal de H que as leituras indicaram sobre suas assinaturas.

    Perguntaram sobre o agente Clover, ou seja, Noah. Informei que ele estava se direcionando ao hotel enquanto conversávamos para redigir o relatório e enviar uma cópia para o sistema assim que possível.

    O QG então informou que enviaria reforços assim que tivesse disponibilidade.

    Por enquanto, Noah continuaria responsável por rastrear H. Minha função seria outra: manter a vigilância sobre a garota.

    Observá-la, estudá-la… protegê-la, se necessário.

    — Ela chegou a ter contato com você? — perguntaram.

    — Não, apenas conheceu o Agente Clover. — respondi.

    — Certo. Vamos fazer uma pesquisa rápida e te enviar o próximo passo em breve.

    Desliguei o telefone e continuei andando pelas ruas da cidade, agora me dirigindo ao departamento de polícia.

    Precisava de informações locais. Qualquer detalhe que ajudasse a traçar o próximo movimento da Guarda-Sol ou entender o que H queria nessa cidade.

    E de brinde, quaisquer informações sobre a garota seriam úteis.

    Após algumas quadras, cheguei à entrada da sede da polícia civil. 

    Era um prédio modesto, com apenas dois andares, localizado perto de uma das praças da cidade, com vários carros estacionados ao redor.

    Quando cheguei perto da entrada, ouço uma vibração em meu bolso.

    É meu telefone. Pego-o, e percebo uma nova mensagem de comunicação.

    Era o meu próximo passo da missão.

    Arquivo Confidencial: M-1402-XXI

    Classificação: Sigilo Alto– Acesso restrito às patentes: Agente Sênior – Major.

    Instituição Responsável: SLI – Sociedade dos Leitores Livres.

    Nova Designação: Infiltração e estudo.

    Objetivo: atuar como professor da escola pública local na disciplina de alunos especiais e neurodivergentes. Monitorar de perto a aluna Helena e a natureza do encantamento G. 

    Missão secundária: investigar os impactos da nova droga em circulação entre os jovens.

    Li a mensagem duas vezes.

    — Espera aí… Eu vou ter que virar o quê?


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