POV: HELENA IVYRA.

    Os últimos dias de férias passaram voando, tão rápido quanto Senna em Mônaco. Após ter retornado para casa, apenas descansei nos últimos dias, enquanto lia aquele livro que recuperei na biblioteca, embora não fosse particularmente empolgante, consegui me manter em sua companhia durante os dias seguintes. 

    O tipo de leitura que não marca, mas que conforta. Era esse tipo de companhia silenciosa que eu precisava. Algo simples, que não exigisse muito de mim. Algo que apenas preenchesse os espaços em branco dos dias longos e preguiçosos.

    Então, chegou o primeiro dia do meu último ano escolar.

    Naquela manhã, acordei com o despertador tocando baixinho às 06h30. 

    O som suave foi o suficiente para me tirar do sono leve. Era o primeiro dia, e o corpo parecia saber disso antes mesmo de a mente despertar completamente. 

    A rotina clássica voltava a ser ativada, e minha memória muscular parecia já relembrar a antiga tradição, como uma engrenagem enferrujada sendo botada para uso novamente. 

    Me levantei devagar, com o cuidado quase cerimonial de não fazer barulho, afinal minha mãe ainda dormia, e a última coisa que eu queria era acordá-la. A casa inteira estava envolta naquele silêncio típico das manhãs, cortado apenas pelo som distante da chuva fina batendo no telhado.

    O clima era algo curioso, para um fevereiro qualquer, o dia era levemente frio devido a chuva era com certeza estranho mas nenhuma novidade. Morar no sul do país, em um vale perto da costa significava encontros constantes com ondas de frio repentinas e chuvas nos momentos mais incomuns do ano.

    E naquela manhã não foi diferente. Aquele vento gelado entrando pelas frestas da janela, somado à umidade da madrugada, criava um clima quase outonal. 

    Nada típico para o mês, porém, fazia sentido. Às vezes o clima gosta de brincar com nossas expectativas. Enrolei-me no moletom que deixei pendurado na cadeira na noite anterior e fui direto para a cozinha.

    A rotina da manhã era a mesma de sempre, mas naquela ocasião cada passo parecia mais consciente. Liguei a chaleira e comecei a preparar o café. 

    A água levou alguns minutos para aquecer, tempo que usei para organizar mentalmente os passos seguintes: mochila, uniforme, revisar os materiais… tudo já estava separado desde a noite anterior. Mesmo assim, o hábito de checar tudo mais uma vez era incontrolável.

    Enquanto o café coava lentamente, aproveitei para abrir a janela da cozinha. O céu estava fechado, encoberto por nuvens pesadas e espessas que prometiam mais chuva para o resto do dia. 

    A rua começava a mostrar os sinais clássicos de agitação, com aquela névoa sutil flutuando sobre o asfalto, típica das manhãs mais frias.

    Tomei meu café em silêncio, sentindo o calor da bebida contrastar com o frio nos meus dedos.

    Logo fui para o quarto, vesti o uniforme, aquele conjunto já conhecido, a característica camisa azul clara com o logo uma tocha no lado direito, sob o peito, que trazia uma quase igual ao usar uma camiseta de time.

    Terminei de me vestir, passei para dar uma olhada no espelho rapidamente, dei um toque rápido de maquiagem, base simples, contorno e corretivo leves, nada que fosse chamativo demais, nem simples demais. 

    Aproveitei, peguei a mochila, conferi os cadernos e estojo mais uma vez, e saí, fechando a porta com o mesmo cuidado de antes para não acordar minha mãe.

    Mesmo sendo uma rua simples, lateral, quase despercebida no meio do centro da cidade, a minha tinha seu charme próprio.

    As calçadas, ainda molhadas pela chuva da madrugada, formavam pequenos espelhos que refletiam o céu da manhã e as pessoas que começavam a andar rapidamente com os coletes das fábricas se direcionando ao trabalho.

    As fachadas das casas, em sua maioria antigas, com muros baixos e grades enferrujadas, pareciam observar silenciosamente a rotina de quem passava.

    O ponto de ônibus ficava a poucos passos dali, quase na esquina. Era uma das poucas vantagens de morar onde eu moro, acessibilidade.

    À medida que me aproximava do ponto, comecei a ver mais movimentação.

    Pessoas agrupadas, algumas com mochilas, outras apenas observando o fluxo da rua. Muitos rostos me eram estranhos, o que não era uma surpresa. 

    Todos os anos surgiam novos alunos. Afinal, nossa cidade só tinha uma escola de ensino médio.

    O que levava todos ao mesmo lugar, eventualmente. Era comum ver gente diferente a cada início de ano, e 2020 não seria exceção.

    Me encostei em um dos muros que ficara ao lado, puxei o moletom mais para perto do corpo e fiquei observando o comportamento das pessoas à minha volta. 

    Alguns conversavam animadamente, rindo alto e compartilhando histórias das férias. Outros falavam de futebol, ouvi menções aos estaduais, vindo de um grupo mais afastado, onde dois meninos debatiam acaloradamente sobre algum time. 

    Mais ao lado, um grupo de meninas comentava sobre festas que tinham rolado no fim de semana.

    – Caralho… ainda é a primeira semana de aula, galera adiantada – murmurei para mim mesma, franzindo o cenho em uma mistura de incredulidade e leve diversão.

    No entanto, o que me chamou a atenção de verdade foi algo mais sutil: a quantidade reduzida de pessoas no celular. A maioria das pessoas interagia-se uma com a outra, conversando, brincando e zoando entre si. Havia apenas cinco ou seis pessoas mergulhadas nos telefones.

    “Bom, é apenas o primeiro dia, né? Veremos como será daqui alguns dias…”

    O tempo passou devagar, como sempre acontece quando estamos esperando. 

    Mas não demorou muito para o barulho característico do motor do ônibus se aproximar. 

    Lá vinha ele: o amarelo desgastado de sempre. Janelas riscadas, pintura desbotada, marcas do tempo estampadas em cada canto da lataria. Era praticamente um personagem fixo na vida escolar brasileira.

    As portas se abriram com aquele rangido agudo, como se protestasse por mais um dia de serviço. 

    Em poucos minutos, o ônibus encheu. A cena era sempre a mesma: mochilas apertadas entre corpos, pessoas tentando achar lugar no fundo, outras preferindo ficar em pé, talvez por costume, talvez por estratégia. Afinal, o ônibus precisava atravessar dois bairros inteiros para chegar à escola. Era o suficiente para justificar a lotação matinal.

    “Típico sistema brasileiro de educação” 

    Segurei firme no apoio enquanto o ônibus dava o primeiro tranco de movimento.

    O trajeto, como sempre, era longo. 

    A cidade já despertava aos poucos. Comércios abrindo suas portas, carros enchendo as ruas, pedestres apressados cruzando faixas de pedestre com sacolas e guarda-chuvas. 

    Era uma rotina quase coreografada. As buzinas tocavam como um metrônomo irritado, marcando o ritmo acelerado da manhã.

    Fiquei observando tudo pela janela. As gotas de chuva escorriam pelo vidro em trilhas tortas, distorcendo as imagens do lado de fora. 

    Pensei no trânsito. Na ironia de uma cidade pequena só ter engarrafamentos em dois momentos do dia: de manhã, quando todos vão para o trabalho, e no fim da tarde, quando as fábricas liberam os funcionários. 

    Era engraçado pensar que nossa cidade, tão pequena, conseguia imitar o caos das grandes metrópoles, só que apenas em horários bem específicos.

    Enquanto o ônibus avançava, fui me lembrando do trajeto. Era quase automático. 

    Eu sabia exatamente quando vinha cada lombada, cada curva, cada ponto em que o motorista freava com força demais. A escola ficava na zona sul, e eu morava na zona norte.

    Finalmente, quando descemos a última rua íngreme antes da escola, o prédio apareceu diante de mim.

    A fachada era comprida, várias janelas se estendiam por um longo corredor, com uma tintura azul formando o letreiro: Escola Média de João Batista.

    Com dois andares e aquele detalhe que sempre me fez rir: a rampa lateral em zigue-zague. Única coisa que dava acesso ao segundo andar, o engenheiro deveria estar maluco na hora que foi fazer aquilo.

    “Hmpf… Nunca serão físicos, hehe…”

    Mesmo assim, era tão característica da escola que se tornou parte da identidade do lugar.

    O pátio central se abria logo depois do portão. 

    Era amplo, com fileiras de bancos alinhados. Ali serviam o lanche, e era onde também aconteciam as reuniões antes das aulas. No meio do pátio, um pequeno palco usado em eventos, apresentações, festas… e, claro, naquele primeiro dia.

    Os corredores se dividiam como veias: o primeiro, com as salas administrativas, coordenação, direção, sala de reuniões. O segundo, com as salas do terceiro e segundo ano, corredores laterais para biblioteca, laboratórios de ciências e informática, além da sala de artes. 

    Mais ao fundo, o corredor dos primeiros anos, como se quisessem manter os calouros afastados., e no segundo andar, mais salas dos segundos anos e outro laboratório de informática.

    Uma escola pública que, por fora, impressionava.

    Tinha um pátio extenso, com várias pequenas de esportes ou para treinos de combate mágico, com plataformas centralizadas para prática de feitiços.

    O problema era o que ocorria por dentro.

    A estrutura era boa, sim. Melhor que muita escola privada por aí.

    Infelizmente, a qualidade não se estendia a todas as áreas. 

    Os professores eram, em sua maioria, gentis e esforçados. Mas havia exceções. Sempre há.

    E os alunos? Esses são complicados. 

    Passei pelo portão com passos firmes.

    Mas ainda sentindo aquele frio leve no estômago. O tipo de frio que avisa que algo está para começar.

    Assim que entrei, me direcionei imediatamente à direita para o clássico mural que continha os horários das aulas, nessa ocasião, continha as turmas e seus alunos. 

    Dando uma olhada rápida, encontrei o trecho que continha os terceiros anos. 

    Comecei a procurar com atenção qual seria a turma que me encaixaram, até que percebi estar na turma de número um.

    “Que conveniente…”

    Já sabendo onde iria estudar, apenas me virei para ir para a sala… Porém, um rosto familiar me cumprimenta logo

    – Bom dia, amiga! Faz um tempão, hein? – disse Renata, com sem tom brincalhão logo cedo.

    – São nem 08h, e você já está animada assim? – respondi, lembrando como era lidar com ela. 

    – Claro, primeiro dia de aula, precisamos estar animadas, né? – comentou ela, conforme passou por mim, e procurou nas folhas coladas na parede, qual seria a sua turma. 

    Dei uma olhada no ambiente, e percebi que a escola teve algumas pequenas mudanças durante as férias.

    Os canteiros tiveram plantas novas adicionadas, uma parte da tinta foi refeita na característica cor verde-escuro com faixa em branco. Havia percebido mais detalhes, contudo… 

    Ouço a voz de Renata me chamando.

    – Ué… Helena dá uma olhada nisso aqui, você me inscreveu nisso com você, por acaso? 

    Voltando ao mural novamente, vejo que ela estava olhando para uma folha de papel mais ao canto, perto do final, onde nenhum outro aluno estava prestando atenção. 

    A folha, com um estranho traço com alguns desenhos de… girassol? 

    – Inscreveu? Como assim? – perguntei-a, estranhando a pergunta sendo que não faço esse tipo de coisa. 

    – Olha aqui ó, uma nova turma diferente abriu… E aparentemente, estamos nela – respondeu-me Renata, apontando para o mural. 

    Assim que me aproximo, vejo a folha com uma lista que contém vários nomes, mas entre eles estão os nossos. 

    Passando o olho pela página, abaixo encontro uma outra folha com os mesmos girassóis ao redor. E essa contém apenas um título: Turma Especial – Projeto Girassol – 2020. 

    “Como assim ‘turma especial’?”

    Lendo o trecho seguinte, era apenas uma abobrinha que tentava falar tudo e ao mesmo tempo não dizia nada de útil. 

    “O que será que os gênios da coordenação haviam pensado de novo para esse ano…”

    Ponderei por alguns momentos, sem entender o motivo. 

    Renata, percebendo que eu não estava entendendo, me chamou.

    – Não é melhor irmos para a sala?

    – É uma boa ideia… – respondi, virando-me em sua direção. – Aparentemente, teremos um longo ano pela frente, né… 

    – É o terceirão, Helena! É óbvio que não teríamos paz no último ano…

    “Era muito difícil ter um ano normal?” 

    Foi a pergunta que ficou na mente naquele momento.

    Vamos ver se, ao menos, encontro uma resposta para essa pergunta… 


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