POV: HELENA IVYRA.

    Aquela bendita lista me deixou com uma pulga atrás da orelha durante a manhã, porém, decidi ignorá-la por hora.

    Foquei em curtir aquele primeiro dia, você sabe, o primeiro é sempre algo divertido, especialmente quando é o começo do seu último ano do ensino médio. 

    Assim que chegamos na sala do terceiro ano, que seria a primeira à esquerda do corredor do meio, bem próximo aos bancos onde o lanche é servido normalmente. Logo que entrei no corredor que era aberto para o pátio que separa ambos os corredores.

    Vi vários canteiros que ficam centralizados na brita como as ilhas no meio de um oceano. Nesses canteiros havia de tudo, pequenas flores, árvores novas que haviam sido plantadas durante as férias. Algumas pequenas plantas da horta da escola. 

    E no centro, havia o objeto mais incomum entre todos. Um canteiro, separado por uma cerca verde que em seu centro havia uma árvore bem rara e honestamente, linda.

    Uma pequena árvore de Pau-Brasil. Algo que nossos antepassados literalmente morreram por.

    Enquanto as colonizações ocorreram, esse material foi caçado e hoje está praticamente extinto.

    Mesmo assim, não impedia de a minha escola ter um ali, no pátio como qualquer outra árvore…

    Quando eu descobri aquilo, sempre achei que fosse mentira, até que a nossa professora de história, a clássica e memorável senhora Maria, nos fez fazer um trabalho para entender mais sobre a história daquela árvore, e é claro… Fez um monólogo, nos contando sobre como aquela árvore havia chegado ali. 

    “Típico dela…”

    Assim que cheguei na sala, deixei minha mochila na cadeira onde geralmente gostava de ficar, ao lado da mesa do professor na parede oposta à da porta, ao lado da janela. Sempre preferi ficar na frente da classe, me ajudava a me concentrar, e também, é claro. Era melhor para ver o quadro e tals.

    Olhando ao redor, percebo como as salas haviam sido levemente reformadas, as paredes continham cores novas de verde e branco.

    Espalhado, havia várias cadeiras de metal de cor verde, inclinadas e com problemas na tinta e de ferrugem, algumas cadeiras com rabiscos e desenhos zueiros como assinaturas de alunos anteriores ou ofensas ao time rival, coisas assim… 

    Apesar dessa visão característica da escola, havia algumas novidades também.

    Assim como um novo tipo de projetor, o que parece algo simples. Mas, é de fato bem útil.

    Consegui olhar brevemente em alguns dos rostos da turma, que em sua maioria, eram rostos dos anos anteriores, mas havia novas caras como se espera. 

    O tempo passou rapidamente, e logo que percebi, já estava indo em direção às mesas para ouvir o pronunciamento rotineiro de começo de ano. Onde o caricato e gentil diretor Carlos anunciava as mudanças na escola e os pontos importantes para os novatos, assim como regras, avisos padrões, o de sempre. 

    Agora, vinha a questão: Será que ele explicaria aquela lista?

    Saberia a resposta em breve, enquanto andava para os bancos, percebo de canto de olho que as quadras de combate mágico estão de cara nova também.

    Nas escolas públicas, era incomum encontrar quadras específicas para o treinamento de combate, geralmente, elas eram restritas as privadas ou eram adaptadas em cima de uma quadra de futebol,

    O ponto interessante é que na minha escola, não havia apenas uma, mas sim duas! O que era realmente uma raridade e tanto, se não me engano, era apenas uma das quatorzes no estado inteiro que tinha isso. 

    Então, ver que aquele benefício recebe uma atenção, era algo que me deixava levemente animada!

    “Principalmente, pra treinar!

    Logo, todos os alunos se agrupam ao redor do pátio olhando para o centro, no palco. E lá veio, o simples diretor Carlos, na faixa dos seus cinquenta e poucos anos, cabelo marrom-escuro, e sua marca característica, sua bengala que lembrava muito o Doctor House no estilo de andar. 

    Chegando no palco, subiu com certa dificuldade. Ajeitou o microfone e começou o monólogo explicando algumas mudanças de grade curricular, comentando levemente as regras, discurso tranquilo, até quando ele virou os professores e deu um sinal com a cabeça, para confirmar algo.

    Que inclusive, onde ele olhava, havia rostos familiares, como a professora Maria, professor Francisco, entre vários outros que lembro do ano anterior.

    O diretor Carlos hesitante, começa a explicar que devido a uma nova política pública, a escola terá uma mudança importante, ao criar uma turma… Especial?

    Renata me lançou um olhar curioso, que retribuí com um franzir de sobrancelhas. Aquilo parecia… diferente.

    — A Turma Girassol será composta por alunos neuro divergentes, que terão acompanhamento especial, aulas adaptadas, e apoio de um tutor especializado — continuou o diretor, orgulhoso mas hesitante em tom. 

    Na hora, confesso, meus olhos brilharam. 

    Por um momento genuíno, pensei que estavam olhando por nós. Finalmente, um reconhecimento real sobre os alunos que possuíam dificuldades extras durante a aula. Um respiro em meio à sobrecarga que a escola nos impunha sem cerimônia.

    Renata se inclinou para mim e sussurrou:

    — Parece bom, não é?

    — Pode ser uma chance de verdade. – assenti.

    Mas o encanto durou pouco.

    Logo após o anúncio, um burburinho se espalhou pela plateia. 

    Risadinhas abafadas, cochichos venenosos. 

    Uma garota da primeira fileira murmurou algo que não consegui ouvir. Mas foi o bastante para que o mal-estar começasse a tomar forma. E então, alguém, em voz alta o suficiente para romper a bolha de silêncio respeitoso, zombou:

    — Ah, claro… Os unicórnios agora têm aula VIP!

    O riso se espalhou como pólvora.

    “Unicórnios?”

    A palavra me trouxe uma memória complicada, que parecia boa por fora, mas que deixava um gosto ruim por dentro. Como um cavalo-de-tróia. 

    Assim que a risada cessou. O diretor Carlos continuou a explicar como funcionaria a suposta turma. Seria uma turma extra para estudos avançados e que teria como intuito complementar os estudos e auxiliar no desenvolvimento de alunos com TDAH, autismo e altas habilidades.

    A proposta parecia boa no papel, mas por que havia algo incomum nessa abordagem?

    “Talvez… porque essa escola nunca teve esse perfil de se importar com esse tipo de aluno”

    Interrompendo meu pensamento, o diretor Carlos continuou.

    – A Turma Girassol é uma nova iniciativa que a escola preparou em parceria com a câmara de vereadores da cidade! Em específico com o vereador Francisco da Silva. 

    Bingo! Agora, algo se encaixou melhor, justamente no ano de eleição. Ou seja, era problema, apenas uma divulgação barata estampada com inclusão. 

    – A turma terá uma matéria especializada de combate mágico feita por um professor especialista nessa área, formado de uma acadêmia federal de altíssimo nível. Um professor do ITA. – disse o diretor Carlos, enquanto aparentava rever as informações em um papel. 

    – Isso é de comer? – disse alguém perdido dentre os alunos. Todos estouraram em risadas mais uma vez. 

    “Sempre tem que ter um palhaço na brincadeira…”

    O diretor Carlos se virou rapidamente para o lado, e pegou uma lista que lhe foi alcançada por um professor que se aproximou. E continuou, ignorando o comentário.

    – Aqueles alunos que estavam na lista na entrada, serão chamados aqui para instrução.

    O diretor listou uma longa lista de nomes, nos quais eu e Renata fomos incluídas. Avançamos para perto do palco onde nos vimos com várias outras pelo menos dúzia de alunos. Ficamos lá parados, enquanto o diretor lia mais uma parte do que seria o projeto.

    Que nada mais era do que uma iniciativa escolar com o intuito de promover diversidade e respeito com as pessoas com deficiência, e blá, blá, blá. 

    Discurso comum de diretor. Porém, o discurso tornou-se diferente, quando uma aluna da ponta que estava mais próxima ao palco aproximou-se do degrau do palco.

    – Eu não vou participar dessa coisa ai, tás louco… tás? – disse a garota com o clássico maneirismo da região.

    Conforme ela disse isso, um burburinho se espalhou por vários dos alunos em ambos os grupos. 

    Os que participariam da turma e os demais que ainda estavam na multidão.

    Carlos percebendo isso com uma expressão de preocupação, apenas olhou para os professores rapidamente, não discerni para quem ele estava olhando, mas ele apenas acenou a cabeça. E respondeu a garota:

    – Na verdade… Aos alunos que foram chamados aqui, quem não quiser participar, pode voltar aos lugares normalmente

    Assim que o diretor terminou a fala, vários resmungos começaram aqui e ali, desta forma foi apenas questão de tempo para os alunos tomarem sua decisão. 

    Vários começaram a voltar para a multidão dos alunos, seja por pressão, medo de ser zuado ou por não crer que seja o adequado. Mas… Eu fiquei ali, parada, pensando se voltaria ou não…

    A proposta era provavelmente uma desculpa em tempos de eleição, mas ter aulas com um professor do ITA, especialmente agora que vários alunos saíram, seria algo útil demais… Mas, valeria a dor de cabeça?

    Sinceramente, eu não fazia ideia.

    Eu hesitei. Virei-me discretamente para Renata e, num tom baixo, perguntei:

    – Você topa continuar na aula?

    Ela arqueou uma sobrancelha, pensativa, antes de responder:

    – Eu acho a proposta ruim. – comentou com sinceridade. – Mas ter a experiência de um professor daqueles pode valer a pena… principalmente pra você, que quer fazer Física.

    Assenti, um tanto aliviada, e murmurei:

    – Obrigada por topar essa maluquice comigo.

    Daquele jeito, acabamos ficando sozinhas. 

    Era estranho ver todo mundo indo embora enquanto nós duas permanecíamos ali, paradas, diante daquela multidão que se dispersava como uma onda recuando.

    Assim que todos saíram, percebi o tamanho da encrenca: eu e Renata seríamos as únicas naquela nova turma. Já imaginei a dor de cabeça que aquilo me traria.

    O diretor Carlos, ao perceber a situação, encerrou logo o pronunciamento e tratou de mandar os estudantes de volta às salas, apressando o início das aulas.

    Naquele momento, achei que minha dor de cabeça tinha acabado.

    Mal sabia eu. Na segunda aula, a situação piorou. 

    Vários alunos começaram a questionar os professores sobre o “tratamento especial” dos alunos da Turma Girassol.

    A maioria finge curiosidade, mas o tom era carregado de ironia.

    — Elas vão ter menos deveres? — perguntou um garoto de voz alta e segura, mas olhos maliciosos.

    — Elas vão fazer prova separada? — disse outra, com um sorriso quase divertido nos lábios.

    A sala inteira pareceu girar. 

    Eu e Renata permanecemos fixas na ideia de manter na aula. Mesmo com as provocações que vieram posteriormente durante a aula. 

    Na hora do intervalo, quando eu voltei para aula, deixaram um papel na minha mesa que dizia apenas: “Girassóis murcham rápido.”

    Ri. Um riso seco, sem humor. Já havia passado por coisas piores. 

    Mas a crueldade adolescente era criativa. Disso eu não podia duvidar.

    Após a segunda aula, fomos chamadas à diretoria. Um convite formal, mas o tipo que carrega aquele peso invisível de burocracia disfarçada de cordialidade. Fomos recebidas pela coordenadora Flávia,

    — Aqui estão seus cartões de estudante — disse, entregando-nos duas carteirinhas brancas, com um girassol estampado no canto inferior.

    Fiquei olhando para o cartão por alguns segundos. 

    Era branco, com girassóis ao arredores. Era enfeitado até demais. 

    Renata mordeu o lábio. — É… bonitinho.

    — É — respondi, mas meu tom não acompanhava a palavra. Algo ali estava errado. Não com a proposta em si. Mas com o modo como ela estava sendo implementada. E, principalmente, com a maneira como todos estavam reagindo.

    A reclamação dos outros alunos não soava como uma crítica justa, como um desconforto sincero. Parecia uma richa. 

    Uma disputa ou incômodo com o simples fato de que alguém, eu, Renata, outros, estivesse recebendo atenção por algo que eles não compreendiam.

    Caminhamos de volta pelos corredores. 

    O som dos nossos passos pela cerâmica característica..

    Senti os olhares. E então ouvi, vindo de algum ponto atrás de mim:

    — Olha lá… Os unicórnios estão passando.

    O riso seguiu a fala, como uma trilha irônica rotineira.

    Minha mão apertou com força o cartão.

    “Espero que o dito professor capacitado realmente valha a pena…”

    Sim. Eu precisava que ele valesse.

    Enquanto caminhava, a lembrança voltou, vívida como um filme projetado atrás das pálpebras. 

    Lembrei porque aquela palavra causava um frio tão estranho na espinha.

    Lembrar de como foi conseguir meu diagnóstico não foi fácil. Era como puxar uma linha de arame farpado para fora da pele.

    Minha mãe, dona Eduarda, no início, não acreditava que eu de fato tinha autismo ou que poderia ter.

    Não era por mal. Parte dela era teimosa. Outra parte, ignorante. 

    Mas a soma das duas coisas me sufocava.

    Ela dizia coisas como:

    — Helena, você só é distraída. Adolescente é tudo assim.

    Ou então:

    — Todo mundo hoje em dia quer um diagnóstico para justificar preguiça.

    E eu… Eu acreditava, por um tempo. Duvidava de mim, no entanto, por muito tempo senti que algo dentro de mim, nunca esteve correto, sempre fui diferente da minha própria maneira.

    Aprendi mais rápido, sempre fui elogiada pela minha maturidade na minha idade, algumas vezes até ouvi a maldita palavra gênio usada com meu nome ao lado.

    O que era um absurdo, sinceramente. Mas o ponto nunca se encaixava totalmente.

    Tentei vários psicólogos… Quando eu digo vários, é porque realmente foram vários.

    Particulares. Públicos. Em diferentes estágios da minha vida. Todos foram capacitados. 

    Todos com diplomas pendurados em paredes bonitas. Mas nenhum via aquilo que eu parecia ver sozinha.

    Eles confundiam tudo. Falavam em ansiedade. TDAH. Hormônios. Idade. 

    “Você é só sensível demais.”

    “Isso é coisa de fase.”

    “Meninas são diferentes mesmo.”

    Na quantidade de vezes que nem me lembro mais, depois de muita insistência, e com ajuda da coordenadora da escola, que talvez tenha sido o primeiro adulto a me ouvir de verdade, consegui uma recomendação para uma psicóloga especializada em jovens neurodivergentes.

    Lembro da consulta como se fosse ontem.

    A sala cheirava a chá de camomila e livros antigos. A psicóloga, uma mulher de cabelos curtos e olhos atentos, me olhou por longos minutos antes de dizer:

    — Não me surpreende que você tenha tido dificuldades para conseguir o diagnóstico. Você é jovem, mulher… É praticamente o unicórnio do diagnóstico. 

    Ela pegou um livro na mão, e me entregou, mostrando-o que era um livro escrito por ela sobre autismo em mulheres.

    – A maioria dos profissionais ainda têm dificuldade em reconhecer o autismo em garotas. – disse ela, conforme anotava algo no caderno. – Os sintomas se apresentam de forma diferente, podem se confundir com outras questões. É por isso que os índices de diagnóstico entre meninas são muito menores.

    Fiquei em silêncio naquele momento. E agora aquela palavra fazia mais sentido ainda… 

    Unicórnio.

    A mesma palavra que hoje escorria dos lábios de colegas maldosos. Antes, símbolo de invisibilidade. Agora, usado como insulto.

    E pensar que lutei tanto para finalmente ser vista…

    O corredor parecia mais frio quando retornei à sala. Como se o ar tivesse se tornado denso. 

    Denso com julgamento. Denso com riso abafado. Denso com um tipo de rejeição que não se diz em voz alta, mas se sente no estômago.

    Renata caminhava ao meu lado. Seus ombros estavam tensos.

    — Eles não sabem. — disse, baixinho. — Não entendem o que é isso.

    — Eles não querem saber, é diferente. – respondi. 

    Na era com o conhecimento na palma da mão, existia diferença entre não conhecer e não querer conhecer. 

    Olhei para ela com o canto de olho. Vejo um olhar que dizia: “Estamos juntas nisso.”

    Sorri, de leve.

    A vida escolar não era fácil para quem via o mundo de forma diferente. No entanto, pelo menos, não estava sozinha. E eu… Eu não ia desistir.

    Se me chamarem de unicórnio, que seja.


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