Capítulo 32 - Revisando o Básico (I).
POV: RENATA SILVEIRA
Aqueles primeiros dias de aula foram simples e rotineiros. Não haviam tarefas ainda, e tudo não passava de uma grande revisão dos últimos conteúdos e alguns breves comentários sobre o que teríamos de material base para as futuras provas.
Eventualmente, a primeira semana passou rapidamente, e então a segunda teria algo que seria útil para não organizarmos as ideias.
Uma das aulas do Professor Francisco, um dos assuntos mais repetidos de toda a escola…
“Se duvidar, mais repetido até do que o maldito verbo to be… Escola pública é complicado”
Estava para começar a primeira aula das revisões de dominação.
O professor era conhecido não apenas por ensinar, mas por transformar cada explicação em uma verdadeira conferência, sempre recheada de comparações históricas e exemplos que faziam com que, mesmo o conteúdo mais árido, se tornasse vivo.
Naquele dia, ele pretendia revisar os aspectos da energia mágica, o chamado QP.
– O QP – começou o Professor Francisco, com a firmeza de quem carregava décadas de estudo – é a abreviação para “Quantidade de Papiros”. É uma medida antiga, concebida originalmente para contabilizar a energia mágica de um usuário, uma espécie de acervo pessoal que pode ser consumido ao longo da vida.
Enquanto ele falava, eu pensava em como aquela definição parecia simples, mas, ao mesmo tempo, carregava uma profundidade assustadora. A energia mágica era algo extremamente importante, e sua definição era estranhamente simples.
– Essa energia – prosseguiu ele, passeando lentamente diante do quadro – é estimada a partir da quantidade de páginas ou livros lidos por um indivíduo. À primeira vista, é um cálculo simples, mas quando aprofundado na sua natureza biomecânica, revela-se infinitamente mais complexo.
Era impossível não refletir. Quantos livros eu havia lido? Quantas marcas literárias eu já perdi a chance de ter?
Eu tentava fazer contas mentais, mas logo desisti. A sensação era de que aquilo se acumulava de forma caótica, os números nunca eram fáceis de contabilizar.
– Existem duas formas de se medir os QPs – explicou Francisco. – A ativa e a passiva.
Ele ergueu dois dedos, marcando bem a diferença.
– A ativa representa os QPs temporários, aqueles que o usuário carrega em si no momento. Estão vinculados à memória de curto e médio prazo, funcionando como um reflexo imediato das leituras recentes.
Pensei em minhas últimas leituras. Algumas obras ainda me eram vívidas, suas palavras, conceitos e ideias eram ainda claros na mente… Minha memória junto ao reservatório onírico, sempre me deram uma base quantidade desses QPs.
– Já a passiva – continuou ele. – é algo muito mais profundo. Relaciona-se à memória de longo prazo, contabilizando todas as leituras realizadas desde o início da vida de uma pessoa. Medir essa quantidade é difícil, quase sempre impreciso, porque o armazenamento ocorre em áreas do cérebro quase inacessíveis à consciência.
A sala permanecia em silêncio absoluto. Eu sentia que todos compartilhavam da mesma dúvida: quantos QPs passivos carregávamos em nós sem saber?
– O centro dessa energia é o cérebro humano – esclareceu ele. – Mais especificamente, o sistema endócrino. Esse sistema, além de controlar hormônios e sentimentos, também regula e armazena os QPs permanentes.
Era estranho pensar que algo tão físico e biológico sustentava algo tão etéreo como a magia.
– Durante séculos, acreditou-se na existência de um subconsciente, entendido como uma instância secundária da mente, formada por experiências e memórias reprimidas. Pensava-se que influenciava indiretamente nossas decisões. Mas… – o professor fez uma pausa, olhando a sala inteira – hoje sabemos que esse subconsciente é, na verdade, o núcleo energético que possibilita a materialização de pensamentos, sentimentos e reflexões em encantamentos.
Senti um arrepio.
“Então cada livro lido é uma semente… E cada semente pode germinar em poder mágico.”
– Quando lemos – explicou ele, retomando a caminhada diante da lousa – estamos diretamente alimentando o nosso subconsciente. Esse núcleo energético se carrega com QPs, formados entre as sinapses cerebrais, que liberam descargas elétricas intensas. Essas descargas interagem com o campo de Higgs.
A menção ao Bóson de Higgs fez alguns colegas se mexerem nas cadeiras, desconfortáveis. Todo estudante do ensino médio tinha medo desses nomes diferentes dos cientistas.
Eu mesma sentia um nó na cabeça, tentando conciliar física quântica com magia, ainda bem que a Helena sempre me ajudava nessas áreas mais abstratas.
– Através do campo de Higgs – prosseguiu ele, riscando no quadro símbolos que misturavam partículas subatômicas e circuitos mágicos – uma parte da energia elétrica é convertida em QP. É um processo de transformação. Um verdadeiro cabo de guerra entre energias. Mas, invariavelmente, a energia mágica triunfa e se fixa no cérebro.
Ele então fez uma pausa. Seu silêncio ecoou mais alto do que qualquer palavra.
– É isso que alimenta o subconsciente e garante que possamos lançar encantamentos sem sofrer colapsos.
Eu quase prendi a respiração. Aquela explicação sempre me fascinava, entender o nível de complexidade de algo assim era o que fazia essas sempre interessantes…
Era incrível saber que cada linha lida se convertia em poder, mas também perturbador imaginar o quanto isso acontecia sem que tivéssemos controle.
– É importante destacar – retomou Francisco, mais uma vez com o tom professoral – que, durante esse embate energético, alguns fótons são liberados. Isso explica a sensação de calor e as dores de cabeça após a aquisição de uma marca literária.
Ele ergueu o giz e desenhou no quadro a forma de uma chama.
– É também o motivo pelo qual vemos a luz característica que acompanha a invocação. Azul, em geral, para os secundários. Roxa, para os dominadores primários.
Um leve sorriso percorreu o rosto de alguns colegas. Eu mesma não consegui evitar a lembrança da primeira vez em que invocara minha marca. Aquele brilho me parecia agora algo muito mais íntimo, como se carregasse a prova física de cada leitura feita.
Francisco, satisfeito com a atenção da turma, ampliou a explicação:
– A partir do momento em que compreendemos esse processo, nossa civilização avançou. Tesla, por exemplo, refinou sua engenharia da corrente alternada justamente graças à nova compreensão das interações entre energia elétrica e mágica.
Ele apoiou-se sobre a mesa, inclinando o corpo para frente.
– Esse conhecimento não nos permitiu apenas entender melhor a tecnologia. Ele expandiu as fronteiras da magia. Levou-nos a usos que antes eram inimagináveis.
Eu me peguei pensando no quanto tínhamos isso por garantido. A eletricidade que iluminava a sala, a magia que circulava pelos corredores da academia… tudo aquilo estava ligado, tudo tinha uma raiz comum.
Então o professor respirou fundo e mudou o rumo da fala:
– Mas agora, precisamos discutir o acesso aos encantamentos.
A turma se inclinou para frente, atenta.
– Os primeiros registros remontam aos gregos. Mas foi apenas no século zero, o chamado século do livro, que tivemos o verdadeiro salto. Para nós, no calendário gregoriano, isso corresponde ao século XV.
Enquanto ele falava, minha mente visualizava o cenário descrito: monges copiando manuscritos, prensas em pleno funcionamento, livros circulando como nunca antes.
A partir daí, o poder mágico havia se disseminado junto com a alfabetização, criando uma conexão indissociável entre leitura e encantamentos.
– Na era moderna – prosseguiu Francisco –, temos um cenário literário e mágico diversificado. Cada país desenvolveu seus próprios estilos narrativos e, consequentemente, suas escolas mágicas.
Ele então listou alguns exemplos:
– Os britânicos possuem uma forte tradição na poesia e na economia, o que explica o surgimento de dominadores autorais nessas áreas, como Shakespeare e Adam Smith. Já os japoneses tornaram-se dominadores autorais no campo dos mangás, cujos poderes derivam de centenas de obras.
Assim que ouvi esses exemplos, meu cérebro pareceu automaticamente completar com um exemplo do meu conhecimento.
“Coreanos e chineses… possuem poderes de noveis e manhwas geralmente”
Entretanto, o professor não parava. Sua voz, sempre firme, preenchia a sala.
– Os encantamentos mais substanciais exigem dedicação. Quanto mais complexo o livro, maior a dificuldade em dominá-lo. Mas, ao mesmo tempo, maiores também são as recompensas.
Nesse momento, um aluno interrompeu a explicação, levantando a mão, mas falando em seguida sem esperar o sinal do professor:
– Mas e os livros lixos? Aqueles escritos pelos zé ninguém, sabe, tais?
O tom carregado de desprezo literário fez alguns colegas se virarem para ele, incomodados. Enquanto, outros riram levemente.
O silêncio pairou por um instante, até que Francisco ergueu os olhos para encará-lo.
– Você tem papel e caneta – disse ele, lentamente, cada palavra carregada de ironia contida. – Além de tecnologia e informação milhares de vezes mais avançadas do que Shakespeare.
O aluno arregalou os olhos, surpreso com a comparação.
– Por que não escreveste tragédias tão icônicas quanto as dele?
A pergunta pairou no ar como uma sentença. O estudante hesitou, abriu a boca, mas não conseguiu responder.
O professor então concluiu, a voz baixa, mas penetrante:
– Devemos julgar tudo aquilo que escreves como lixo apenas por essa simples comparação?
A sala inteira permaneceu em silêncio. Alguns desviaram o olhar, outros assentiram discretamente, como se a lição tivesse atingido a todos, e não apenas ao aluno imprudente.
– Fui o que eu pensei… – ironizou o professor. – respondendo a sua pergunta, pense no seguinte: Se um livro não possui impacto para alguém, é porque provavelmente, ele não foi feito para você. E sim para outras pessoas.
Eu mesma me peguei refletindo com aquelas palavras.
Quantas vezes havia julgado uma obra antes mesmo de compreendê-la?
Quantas vezes não dera valor a um texto que, para outra pessoa, poderia ser fonte de poder e encantamento?
A pergunta ecoava em minha mente, firme, como se tivesse sido dirigida a mim.
O professor, satisfeito com o impacto de suas palavras, voltou-se para o quadro e retomou sua escrita, mas a atmosfera da sala permanecia densa.
– Levem esta frase para a vida… – dizia o professor, anotando no quadro uma citação.
Com os livros bons, você aprende o que fazer, com os livros ruins, você aprende o que não fazer. Mas, algo que é sempre verdade, todos os livros te ensinam algo.
– Essa é uma citação de autoria desconhecida, que nos elabora muito bem o porquê da sua afirmação, está equivocada… É simples, valor de uma leitura ou de um livro, é baseada numa questão de perspectiva.
Ouvindo a conclusão do professor sobre o assunto, me fez perceber que aquela não era apenas uma aula sobre energia mágica e QPs, e sim sobre algo mais importante ainda…
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