Índice de Capítulo




    POV: RENATA SILVEIRA

    Os primeiros dias de aula sempre tinham aquele ar de repetição inevitável. Era como se o ciclo se iniciasse, ano após ano, apenas com algumas variações sutis. 

    Eu começava sempre enferrujada, ainda com o corpo preso no ritmo lento das férias, e aos poucos, conforme as semanas passavam, recuperava o fôlego. Basicamente, ia desenferrujando. 

    A rotina se instalava com uma rapidez quase cruel, e lá estávamos nós de novo, lidando com os mesmos corredores lotados, os mesmos sons metálicos das cadeiras e a mesma mistura de ansiedade e expectativa que todo início trazia. 

    E de brinde, aquele alto volume de conversas entre todo mundo. 

    Claro, havia diferenças…

    Como os rostos conhecidos que desapareciam, os novos colegas que surgiam, professores trocavam de sala e de escola. 

    Essas mudanças de cenário faziam parte do pacote. E, além disso, tínhamos as mudanças mais sutis: a idade que avançava, as responsabilidades que pesavam mais, e aquela sensação incômoda de que estávamos sendo empurrados, inevitavelmente, para a vida adulta.

    Naquele ano, em especial, o peso era outro. 

    Não era apenas mais um início de ano. Estávamos no último. O terceirão. 

    As conversas sobre a formatura já começavam a se infiltrar nos intervalos, com a preocupação de juntar dinheiro para pagar tudo. Havia também as aulas extras, uma preparação cuidadosa para termos chances reais nas classificatórias escolares do ENEL. 

    Era como se tudo, até o ritmo das aulas, dissesse silenciosamente que esse ano seria diferente. Repetitivo, sim, mas carregado de uma promessa: a de que algo importante se aproximava.

    Ainda assim, se havia algo útil na rotina, eram as revisões. Elas funcionavam como um porto seguro, lembrando-nos de que, apesar das mudanças, algumas coisas permanecem sólidas.

    Naquele dia, o Professor Francisco entrou na sala com a sua postura firme e a expressão de quem carregava algumas horas de cansaço já… Ele ajeitou os óculos no rosto, pigarreou e, após olhar cada um de nós, começou:

    – Hoje vamos revisar algo essencial: os aspectos de interpretação. Quero que entendam como cada perspectiva influencia a forma como um encantamento se manifesta – disse ele, a voz grave preenchendo o ambiente.

    Peguei minha caneta, pronta para acompanhar. O professor prosseguiu, gesticulando com calma:

    – Cada pessoa atribui suas próprias experiências sobre o encantamento. Nosso subconsciente é alimentado pela energia mágica que nasce das sinapses do cérebro, e estas, por sua vez, são influenciadas pelas informações dos livros que lemos – comentou ele, repetindo o que havíamos visto na aula passada.

    Pegou o canetão da lousa digital, e começou a anotar algo, enquanto falava: 

    – Porém, há um detalhe curioso nisso: cada núcleo de ideias dentro de um ser humano tem diferentes graus e quantidades de conceitos, não apenas pelas leituras, mas pelos diversos estilos de comunicação que absorvemos.

    Fui rabiscando palavras soltas no caderno, tentando capturar a essência do que ele dizia. Ele concluiu a anotação dos quatro tipos de aspectos de interpretação. 

    – Isso significa que, mesmo que várias pessoas leiam o mesmo livro, seus encantamentos podem se manifestar de maneiras completamente diferentes, mesmo dentro do mesmo Aspecto de Interpretação. – observou, fazendo um diagrama que mostrava dois bonecos dentro de um círculo. 

    – Dois indivíduos podem derivar encantamentos do mesmo texto, mas a natureza e o uso dessas habilidades nunca serão idênticos. São sempre únicos.

    A explicação me deixou inquieta. Ergui a mão, sem pensar muito, e perguntei:

    – Professor… se cada interpretação é única e intransferível, por que existem os aspectos de interpretação? Se eles não padronizam a natureza dos encantamentos, então qual a utilidade deles?

    Minha voz saiu curiosa, mas firme. Era uma dúvida simples, só que interessante.

    Ele sorriu levemente, como se já esperasse aquela pergunta, mas não respondeu de imediato.

    Apenas lançou um olhar contemplativo, antes de prosseguir com a aula.

    – Boa pergunta… Vamos responder ela daqui a pouco.



    POV: HELENA IVYRA

    A pergunta da Renata ecoou dentro de mim. 

    Eu também já havia refletido sobre isso. 

    Se cada encantamento era único, moldado pela subjetividade e pelas experiências íntimas de cada leitor, qual era o propósito real de classificar? 

    Era como tentar enfiar o oceano inteiro dentro de garrafas rotuladas. 

    Inútil.

    ‘É como as quirks de Boku no Hero, todas são individuais demais, então como poderiam ser encaixadas em grupos gerais?’

    Já me sentia mais à vontade na rotina do terceirão, e as revisões do Professor Francisco eram um deleite para mim.

    Ele tinha uma habilidade incomum de pegar conceitos que poderiam soar maçantes e transformá-los em verdadeiras histórias, carregadas de exemplos práticos e nuances quase literárias.

    As cadeiras verdes da sala, rangendo de tempos em tempos com seus chiados metálicos, formavam um semicírculo diante da lousa digital. 

    Sempre me chamava a atenção aquele contraste estranho: a tecnologia fria da tela contra o cenário gasto e marcado por anos de uso. O ar estava morno, e o cheiro de comida já vinha do refeitório. 

    O Professor Francisco se endireitou, ajeitou os óculos redondos e, com seus olhos sábios percorrendo a turma, respondeu à dúvida que pairava no ar:

    – Os aspectos de interpretação não existem para padronizar, Renata – disse, alternando o olhar entre ela e a turma. – Eles servem como grandes grupos de pensamento. São categorias que simplificam a compreensão da manifestação mágica. Assim conseguimos estudar, organizar e até ensinar com mais clareza.

    Ele se virou para a lousa, que ganhou vida com quatro palavras escritas em destaque anteriormente: Literal (Físico), Análogo (Espiritual), Conotativo (Senciente) e Denotativo (Absoluto).

    – Cada aspecto influencia uma parte distinta do ser humano – explicou. – O Literal no corpo físico, o Análogo na energia mágica, o Conotativo nas emoções e sensações, e o Denotativo na própria essência do conhecimento e da experiência. São linhas de referência. Elas não se limitam, mas ajudam a situar.

    Senti um arrepio percorrer minha pele ao ouvir suas palavras. A simplicidade da explicação escondia uma profundidade enorme. 

    Eu me lembrava da minha própria essência: meus espectros, o Gato e o Professor, jamais poderiam ser reduzidos a simples invocações. 

    Eram fragmentos da minha leitura, reflexos de como eu absorvia a obra. E, no entanto, faziam sentido dentro do Aspecto Análogo.

    Francisco então concluiu, com sua voz carregada de autoridade:

    – A singularidade de cada encantamento permanece inviolável. Mas os aspectos são como bússolas. Eles nos dizem para onde olhar, sem nunca ditar exatamente o que vamos encontrar.

    Houve um silêncio pesado na sala. Apenas o som dos cadernos sendo preenchidos com pressa interrompia aquele momento. 

    Eu me deixei perder nos pensamentos, fascinada pela ideia de que cada leitura era um reflexo de quem éramos, e que nossas almas moldavam a magia tanto quanto os livros.

    Naquele instante, percebi que as palavras do professor não eram apenas teoria. Eram um lembrete de que a magia literária era, acima de tudo, um espelho de nós mesmos.

    A aula terminou e saí da sala com a mente fervilhando. Fui para o recreio pensativa.

    Eu sentia que estava um passo mais perto não apenas de entender os encantamentos, mas de compreender a nós mesmos.

    “É como aquele velho ditado: Diga-me o que tu lê, e eu direi quem tu és…”


    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota