Índice de Capítulo



    POV: NOAH WILLIAMS.

    As peças já haviam se juntado há dias… ou até semanas.

    Depois de um pequeno garimpo com a ajuda do Miguel, era evidente que vários alunos da escola tinham sumido nos últimos meses.

    Não eram casos isolados, eram padrões que se alinhavam como traços num mapa antigo. 

    Quanto mais eu olhava, mais evidente ficava: H não estava improvisando. 

    Ele estava organizando algo sério naquela cidade, e, apesar de já termos indícios de que ele partiu para São Paulo. 

    Aparentemente, alguns dos comparsas dele ainda estavam aqui, na cidade, mantendo a panela no fogo.

    Aquele dia parecia mais uma repetição do usual do que qualquer outra coisa… O hotel seguia a rotina de sempre: café fraco, um banho rápido, a vigilância mental rotineira que eu fingia não ter. 

    Só que, por hora… o clima parecia rebelde e quis fugir do roteiro dessa vez, pois chovia fortemente na região, algo incomum para abril.

    Não era a garoa fina e quente daquele verão, que mais parecia umidade; era uma chuva fora de tom, pesada e fria, que, por um momento, me lembrou as chuvas de Ottawa;

    “Ah, se parar para pensar, até que faz sentido a chuva fora de época, é uma mentira para combinar com o dia, que irônico…” 

    O contraste com o calor costumeiro me deixou com uma sensação de alerta idiota no estômago, afinal ele podia ser bem extremo de vez em quando, pelo que falam os hóspedes do hotel.  

    Terminei de vestir a jaqueta, peguei meu café e deixei a mesa por um momento. Precisava conferir o meu comunicador, que estava carregando ao lado da cama…

    Peguei-o enquanto me sentei na cama.  

    A tela acendeu rapidamente, e havia uma mensagem enviada há alguns minutos que dizia:

    “—27.273612404529477, -48.85089874283865, me encontre nessas coordenadas em menos de uma hora. — Sunflower.” 

    Havia uma objetividade nas observações dos agentes que sempre me chamou a atenção. Todos os capitães tinham os mesmos costumes.

    “Deve ser coisa da diretoria…”

    Olhei o mapa rapidamente, e as coordenadas bateram na hora com um agrupamento de fábricas abandonadas na outra extremidade da cidade.

    As últimas informações conhecidas apontavam um laudo sobre um incêndio que ocorreu há quinze anos, o lugar ficou interditado desde então, devido às estruturas que ficaram comprometidas.

    Pensei em todas as variáveis: o esconderijo ideal pela distância e isolamento; perigoso por causa da integridade estrutural; pista concreta por causa do histórico de incêndio e do costume de aproveitar velhos galpões para operações clandestinas. 

    Ou seja… Precisava me concentrar na investigação.

    Não por heroísmo, por dever de ofício mesmo, e por aquela velha necessidade minha de entender o padrão antes que se tornasse tragédia.

    Acelerei o passo, arrumei uma pequena mala com equipamentos forenses e alguns aparatos que podiam ser úteis. 

    Larguei todos os papéis em cima da mesa, peguei minha jaqueta e desci para o térreo. Tinha que chegar no ponto rápido. 

    A recepção estava vazia; oportunamente, peguei um guarda-chuva oferecido pelo hotel e parti em direção à avenida principal que me levaria ao lugar marcado.

    Nas ruas, a chuva transformou-as em espelhos sujos. 

    Observei os arredores conforme passava; cada poça escondia um pedaço de asfalto frouxo. 

    Havia coisas que a cidade mostrava sem querer: marcas de pneus, detritos queimados, calçadas quebradas e pichações espalhadas por várias construções. 

    Todas aquelas marcas contavam uma história… Infelizmente, ela teria que ficar para outro dia. Pois eu estava com outra coisa em mente.

    A distância não era gigantesca; seguindo na geral da cidade, não demorou mais do que trinta minutos para chegar ao local marcado.

    Entrando por uma rua lateral, vi uma longa sequência de prédios logo ao lado de um campo aberto que descia até o leito do rio próximo. 

    Se seguisse na direção daquele campo até o final, provavelmente chegaríamos à segunda ponte principal da cidade. 

    Eu me mantive alerta para não chamar muita atenção, mas a chuva que martelava constantemente o chão colaborou um pouco. Afinal, todos tinham mais o que prestar atenção naquele dilúvio que caía…

    “Bom… Agora é esperar.”

    POV: MIGUEL CASTRO.

    Definitivamente, não esperava aquela chuva…

    Abri a janela do quarto em que eu estava hospedado nas últimas semanas. Optei por me hospedar em um hotel mais no centro da cidade por causa da proximidade com a escola e com os principais órgãos da cidade. 

    Algo que facilitou muito minha vida para receber os relatórios e documentos dos últimos acontecimentos na capital. 

    Ironicamente… Parece que a chuva decidiu cair justamente quando dávamos passos-chave na investigação. 

    Sai da janela e me aproximei da cama, onde aproveitei para pegar uma das malas que deixei embaixo da cama. 

    A mala tinha uma cor vinho e possuía arranhões em vários cantos, assim como a ausência de uma das rodinhas. 

    Dentro dela, encontrei justamente o que precisava para hoje. Dois coldres com armas modificadas pela SLI. 

    Com certeza, não era do feitio de uma missão de investigação carregar armas que podiam chamar a atenção. 

    Mas, depois das últimas investigações do Noah… Fazia-se necessário. 

    Havia trabalho demais esperando para que eu me deixasse ceder a preocupações sobre furtividade.

    Eu tinha uma pequena pilha de documentos para analisar e, junto, estava meu laptop, onde havia deixado aberto o resumo feito pelo Rosa sobre a investigação na capital. 

    E, pelo visto, as coisas tiveram resultados problemáticos por lá.

    Os papéis empilhados, úmidos nas bordas pela condensação, e o laptop ainda aberto, tela azulada contrastando com o resto do quarto. 

    O cursor piscava sobre o relatório, o resumo sobre a investigação da capital.

    Aproximei-me. O som da chuva preenchia o ambiente, abafando o tilintar dos botões que eu apertava. 

    Havia ali, anexado ao relatório, um arquivo de vídeo. “Câmera 4B — zona de construção (perímetro leste).”

    Cliquei.

    A imagem era granulada, em preto e branco. A câmera parecia velha, talvez de segurança industrial. Mostrava um terreno irregular, restos de construção, betoneiras tombadas, pilhas de tijolos úmidos, sacos rasgados de cimento e, espalhados entre eles, seringas e ferramentas enferrujadas.

    A luz do sensor se alternava, oscilando entre claro e escuro, como se a gravação estivesse respirando. Os giros automáticos faziam com que a câmera travasse por um minuto antes de continuar. 

    Algo interferia no mecanismo, como se o ar ali fosse mais denso.

    O som de fundo era quase inexistente, mas juraria ouvir uma frequência baixa, parecida com um murmúrio, talvez o vento, talvez o sistema corrompido. Então, ele apareceu.

    Um homem, de terno cinza e gravata preta, caminhava lentamente pelo terreno. 

    De ombros caídos, cabeça baixa e passos arrastados. Ele parecia perdido, mas havia algo em seu movimento… ritmado demais para ser confusão, contido demais para ser desespero. 

    A chuva caía sobre ele em silêncio absoluto, nenhum respingo, nenhum ruído. Ele não reagia, mal se movia.

    Só a imagem mudava, de forma artificial… 

    Com uma leve mudança de ângulo, foi possível reconhecer o rosto.

    O deputado Matheus. O mesmo foi encontrado morto três horas depois, no mesmo local.

    A gravação seguiu por alguns segundos após ele desaparecer na lateral do quadro. A câmera girou novamente, travou… e, quando voltou à posição inicial, todas as luzes da imagem haviam se apagado. 

    Só restava a sombra do canteiro e o chiado branco da fita.

    Nada mais havia sido encontrado ali, além dessa gravação e de uma carta.

    Peguei o papel amarelado que Rosa havia escaneado e o li mais uma vez, em voz baixa, acompanhando o som distante do trovão que pareceu responder:

    “Que comece uma nova era… Boa sorte, maldita SLI. Atenciosamente, Orwell.”

    Fechei a tampa devagar.

    Quando juntei tudo, o padrão apareceu como se alguém acendesse um holofote: ataques e incidentes similares em vários estados, sinais que não eram meras coincidências.

    Isso não era só intimidação; era mensagem direta, era clara a declaração.

    A GS pretendia agir, e talvez eles já estivessem coordenando algo maior desde muito tempo…

    Ignorei o arrepio e comecei a arrumar as coisas. 

    Enviei a mensagem para o Noah com as coordenadas, um ponto próximo ao aglomerado de fábricas abandonadas, porque precisava de alguém que conhecesse sensores, leituras e tivesse mão leve para tecnologia de campo. 

    Desci do hotel e parti imediatamente para o carro.

    Peguei as duas armas, coloquei-as no porta-malas junto a outros itens. 

    Eu sabia que armas eram exceção no nosso trabalho aqui no Brasil; eram para agentes de combate, para ocasiões em que magia e razão não bastavam. 

    Mesmo assim, no estado atual das coisas, eu preferia estar pronto para qualquer imprevisto.

    Dirigi com o rádio ligado, revendo mentalmente o que sabia: evidências de que a produção de TT estava sendo testada em pequena escala em locais como aquele, marionetes políticas já estavam sendo jogadas fora do tabuleiro.

    Tudo indicava que Chatness agiria… Mas no quê? Ou melhor, como?

    Ele sabia que, assim que o elixir chegasse ao mercado, os resultados criariam problemas e a imagem global de fachada da Guarda-Sol seria jogada fora… Era isso que ele queria?

    Não tinha como saber naquele momento.

    Só espero que nossos agentes estejam prontos para segurar a barra…

    Checando rapidamente o comunicador, percebo que várias mensagens foram enviadas no grupo da escola…

    Como estavam mutadas, conferia apenas eventualmente. Mas, aparentemente, algo estranho estava acontecendo…

    Havia trezentas mensagens não lidas do grupo… 

    Passei rapidamente o olho por cima e percebi o motivo do alvoroço.

    Um homem com um machado havia entrado em uma creche em uma cidade das redondezas, atacou as crianças e acabou deixando quatro delas mortas…

    “Desgraçado… Espero que Deus proteja e conforte as famílias.”

    Botei o comunicador de lado, para não ficar perturbado com essas informações. 

    Cheguei no local marcado, estacionei a uma certa distância, tranquei o carro e peguei as armas junto com os equipamentos extras. 

    Quando caminhei em direção ao ponto combinado, vi Noah. 

    Ele estava onde eu esperava: calmo na superfície, olhos avaliando, postura de quem não se deixaria emboscar. 

    Estendi o braço na direção dele com um dos coldres em mãos. 

    Ele a pegou com a hesitação do novato que já tinha que se adaptar a duras responsabilidades, embora Noah fosse mais do que um novato, era um agente de suporte, acostumado a ficar atrás da linha de fogo. 

    — Recentemente você tem ido a missões que envolvem perigos diretos aos cidadãos e a você próprio, por isso, te darei isso hoje, entendido?

    Noah olhou surpreso, segurou a arma com um aperto que misturava gratidão e estranhamento. 

    Quando ele puxou o coldre para entendê-la melhor, eu segurei firme.

    Não faria aquele sermão piegas de responsabilidade. Aquelas palavras sempre soavam vazias nas horas certas e duras nas erradas. 

    Em vez disso, disse algo que ele já conhecia, pelo menos na forma: 

    — Lembra do dilema das linhas?

    — Sim, senhor — respondeu Noah. — Quando pegamos uma arma, estamos botando uma borracha em mãos…

    Sorri, notando a analogia, e acrescentei: — E, quando as usamos, podemos apagar lápis que escrevem histórias que nem foram escritas direito, facilmente…

    — Então, nosso dever é garantir que as borrachas sejam usadas em histórias que realmente merecem ter fim. — ele falou, como se repetisse uma lição que tinha ouvido antes.

    — Exatamente… Você ainda lembra do lema do Rosa, né? — eu perguntei, quase desafiando a memória dele.

    Ele arqueou uma sobrancelha e tentou uma piada nervosa: — Você sabe que, se eu esquecer, ele ia me matar… — enquanto prendia o coldre na cintura.

    — Justo… 

    Ajeitei o pente e tirei a trava de segurança da minha automática. O gesto era mecânico e ritual ao mesmo tempo. 

    — Pronto para usar o Demônio Moretti, se necessário? — disse Noah.

    — Garoto, todo dia eu acordo esperando não ter que usá-lo — respondi, botei o coldre para dentro do casaco.

    Havia uma calma estranha antes da ação, aquele silêncio que precede um respirar fundo. Ajustamos o que havia para ajustar: coldres, bolsas, gravadores de campo. E então partimos. 

    A fábrica nos esperava, ou melhor, o que restava dela: paredes salpicadas de fuligem, janelas sem vidros e uma calçada que cedia sob passos mais pesados. 

    A chuva continuou, como se lavasse o mundo, enquanto passávamos pela calçada para o portão que dava entrada à fábrica. 

    Aproveitei para canalizar energia em meus encantamentos e já os deixarem preparados.

    — Diamante de Minas, seja meus olhos! — disse, em voz baixa, conforme meus olhos começaram a brilhar em azul turquesa com a camada extra que se formou em meus olhos. 

    Com aquilo, conseguiria ter uma noção melhor de qualquer movimentação energética na fábrica.

    — Alguma movimentação? — perguntou Noah, usando seu encantamento mental.

    Estendendo meus sentidos pela fábrica inteira, como uma longa onda se esticando por todo o ambiente, várias perturbações, afinal o lugar era enorme. Mas…

    “Aparentemente na…”

    Interrompendo a calmaria da onda, duas pedras energéticas a quebraram, o que indicou que havia duas movimentações de QP no lugar…

    — Temos companhia.


    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota