Nada demais acontecia em Durandar, a Cidade do Meio, como era conhecida na região. Localizada às margens do rio Yorates, se via na fronteira entre o reino de Yuror e a República Livre de Catche. 

    Era uma cidade independente, sendo respeitada por ambas as nações. Por ela passavam as mercadorias que seriam vendidas por todo o mundo, até para o Continente Sombrio, isolado no polo sul do planeta.

    Durandar se orgulhava da forte segurança exercida pelos Aventureiros, uma classe de trabalhadores que atuam em diversas áreas, de guardas à mercenários (de mocinhos à bandidos). Os mais respeitados, no entanto, eram os que protegiam a alfândega.

    Diziam que só um louco ousaria roubar uma mercadoria que passe por Durandar, e isso era tanto uma benção, quanto uma maldição.

    Por ter uma segurança tão poderosa, os habitantes da Cidade do Meio não se preocupavam em fechar as janelas. Muitos dormiam de portas abertas durante a noite.

    Se alguém deixasse a carteira cair na rua, não precisava se preocupar em registrar um boletim, pois qualquer um levaria os pertences perdidos ao estabelecimento da guarda mais próximo.

    Coisas desse gênero eram garantidas por lei, e a lei em Durandar era coisa séria. Ou seja, deveria ser o lugar perfeito…

    Para pessoas normais, é claro.

    Com tanta gente poderosa patrulhando pelas ruas, leis rígidas e uma justiça de olhos abertos, nada demais acontecia em Durandar — e era exatamente esse o problema.

    Nada pode ser tão perfeito assim.

    — Nada… — murmurou o menino.

    Ele sentia algo queimar em seu peito. Sentia de verdade, como se fosse uma pederneira lutando para queimar alguma coisa. Porém, não podia contar para ninguém.

    Não só por não saber descrever objetivamente o que sentia, mas pelo que os outros poderiam entender. Talvez fosse um pressentimento…

    A sensação de que podia acontecer…

    Ou talvez… oh, não! Talvez… talvez fosse magia!

    “Não pode ser…”

    Claro que não podia. Seria morto, se fosse. O motivo? Bem, começou vinte anos antes dele sonhar em existir, mas isso não nos interessa. Não agora.

    De qualquer maneira,  sentir magia queria dizer, em outras palavras, que ele poderia ser preso. Apenas os Licenciados poderiam usar magia. E os licenciados, caso você não saiba, eram as pessoas que concluíram os estudos nas Academias de Magia, após exames psicológicos e testes de ética comportamental…

    — Só assim, depois de jurar, em nome de Lésse, que jamais a usará para o mal, uma pessoa estará apta a usar magia. 

    — Droga…

    — Sei que isso é muito expositivo, mas você precisa saber…

    — Sim, sim, eu sei. Você sempre fala isso…

    — “Somente quando a Marca se apaga, a pessoa torna-se uma maga.” — disseram ao mesmo tempo.

    — Menino esperto! — disse a moça, afagando os cabelos desgrenhados do menino.

    “A marca, é…?”

    Ninguém com a marca podia usar magia. “Podia” não… não conseguia usar magia. Essa era a grande questão. Se você a possui, nada no mundo fará com que manifeste o menor dos poderes. Sua marca pode brilhar, no entanto… 

    E apenas gente com talento consegue.

    — O que não é o meu caso… — lamentou-se o menino, cabisbaixo.

    — Ora, vamos! — A moça, amarrando o avental, passou pelo balcão e foi lhe dar tapinhas nas costas. — Você só tem doze anos. É normal que você não consiga fazer a marca brilhar!

    — É, mas… 

    — Ah… ah, é mesmo.

    Ele era um elfo.

    — Sim, sim, isso… isso é realmente lamen… estranho! Estranho, só isso — falou ela, nervosa.

    Era realmente difícil de entender.

    “Esse menino…”, murmurava a moça, dentro de sua mente. “O primeiro elfo a pisar fora de Niu-haim em trinta anos. Sem pais, irmãos, parentes distantes por perto…”

    Nunca souberam de onde veio, nem se de fato nascera em Niu-haim, a terra dos elfos. 

    “E zero aptidão mágica…”

    Quem diria, né? O único elfo que Durandar conhecia, para sua decepção (ou alívio?), era um bom-pra-nada. Um zero à esquerda total. Quando voltou a si, estava sozinha. “Oh, deusa!”, desesperou-se. “Ele deve ter ido embora…”

    …Ido para casa. Lá, ao menos uma pessoa acreditava no potencial que ele possuía — ou deveria possuir, em todo caso.

    Lá estava Nayan… 

    — — — 

    O homem que adotou o menino elfo.

    O caminho para as montanhas, onde morava Nayan, era realmente perigoso. No meio da Floresta Proibida, nem mesmo a segurança de Durandar ousava em dizer que sobreviveria por dois dias. Ficariam em choque, se soubessem que a floresta… 

    — Hahah! Saudades?

    …Bem, era o parquinho do garoto.

    — Guilin, Guilin! — dizia a menina-lobo, feliz. — Olha o que eu fiz! — E ergueu as mãozinhas.

    Era uma esculturinha de madeira.

    — Parece um cavalo, não parece? — perguntou ela, os olhinhos brilhando.

    — Bem…

    E ele gelou.

    — Parece, não? Parece sim, não é… Guilin? — Não era uma pergunta. A voz que vinha da menina era imperativa.

    Não havia como negar.

    — É um cavalinho… sim, sim, é um cavalinho. Muito bem, Nasha! — elogiou Guilin, suavemente coagido. Fez cafuné nos fartos cabelos da menina-loba.

    Ela ficou ainda mais alegre.

    — Brigada! Mas você parece cansado, Guilin. Você está bem?

    — Não muito… mas vou ficar, não se preocupe. 

    — Hum… e será que é por isso que você tem sumido, Guilin? E você andou esquecendo a Naska, não é? 

    — Hã? Não, eu nunca me esqueci… — murmurou ele, estranhando.

    Nasha, entre risinhos doces, puxou a manga do garoto, dizendo:

    — Ela queria te ver, Guilin!

    Um rubor subiu do pescoço ao rosto do garoto.

    — Eu… eu fiz alguma coisa?

    — Não sei, me diga você! Ela vivia suspirando, Guilin! — continuou ela, que parecia se divertir às custas da irmã. — “Ah, será que ele não vem?”, “será que me esqueceu?”… eu, hein! Mas eu aposto que, se a visse, ela ia ficar fazendo pose!

    — Ah, ela é assim, é? Não achei que sentisse tanto a minha falta… 

    A garotinha ria com gosto.

    — Mas e você? Gosta dela?

    — De-de-de quem?! — exclamou Guilin, ficando ainda mais nervoso ao notar que gritou.

    — Hahaha, parece bem óbvio… 

    Acalmando a respiração, o elfo olhou para as copas das árvores e percebeu que anoitecia muito rápido.

    — Bom, Nasha… diga à Naska que a verei quando puder. Diga oi ao seu pai também… 

    — Até mais, Guilin! — e o abraçou.

    No entanto, assim que se afastou, percebeu que aquele jeito choroso voltou ao olhar dele. Queria saber o que era, mas não tinha coragem de perguntar… 

    “Queria fazer alguma coisa por ele…”, segredou Nasha em pensamento.

    — — — 

    Conforme ia anoitecendo, a luz do sol ia dando vez aos vagalumes, bichinhos que faziam o possível para iluminar o caminho do garoto. Todos os monstros e animais gostavam dele, cada um com seu motivo.

    Ele colecionava feitos em seus poucos anos de vida. Salvou um urso de uma armadilha de caçador, curou as feridas de Nura (quando ainda não se conheciam), quando este enfrentou uma alcateia rival sozinho… 

    Ainda assim, ele parecia…

    — Triste. Que foi, roubaram teu almoço?

    Era Nayan.

    — Não… — respondeu o menino.

    Sentado ao pé da escadinha que levava à entrada da cabana, Nayan esculpia uma lâmina em um bloquinho de madeira. Ele era bom nisso.

    — E o teste da aptidão mágica?

    — Péssimo… 

    O homem suspirou, pesaroso.

    — Quer falar sobre isso?

    — Não.

    — Tudo bem. Consegue fazer a janta?

    — Consigo… — E subiu os degraus, entrando na casa.

    “Sabia que isso ia acontecer…”, pensou Nayan.

    Ainda que soubesse que magia podia ser perigosa, dado que foi ela quem carbonizou metade do seu corpo, Nayan sabia que isso era importante para Guilin. O menino era um elfo, afinal de contas.

    — É como um pássaro que não consegue voar, ou um cachorro que não pode correr. É frustrante… realmente frustrante, não fazer o que você nasceu pra fazer.

    E ele sabia muito bem como era se sentir assim.

    — Essas cicatrizes… — sussurrou, olhando para a mão esquerda.

    Ela tinha cores diferentes entre si. E essa visão se espalhava pelo restante do corpo, exatamente a metade dele. Normal de um lado, cego do outro. Bonito de um lado, horrendo do outro. Metade do que costumava ser… 

    — Magia… não consigo usar magia. 

    Estavam no mesmo barco, ele e o garoto.

    — Mas em pontos diferentes… 

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