João estava estagnado na frente da porta, encarando a colega do lado de fora que trazia consigo sua bolsa que levava constantemente nos encontros. 

    O silêncio era mútuo e ninguém ousava dizer uma palavra, apenas se olhavam em meio à quietude profunda. Evitando isso, João questionou em meio a gaguejos: 

    — O-o que está fazendo aqui? 

    — Boa noite… Não vai me convidar para entrar? 

    — C-como deixaram… você entrar no condomínio? 

    — Tinha uma senhora muito simpática lá embaixo que estava prestes a fechar o portão. Quando disse que queria entrar para encontrá-lo, deixou sem hesitar, hehe!

    — Dona Maria… 

    — Sabe que temos assuntos a resolver, certo? Posso entrar? 

    — … 

    — O que foi? 

    — N-Nada, é que… estava prestes a dormir e… Não tem como voltar outro dia? 

    — E quando será esse dia? — Após a pergunta, João se estremeceu, e sem dar uma resposta, cedeu espaço para Sarah entrar. — Obrigada, hehe! 

    Dentro do apartamento, a jovem se deparou com uma bagunça. Não era grande ao ponto de poluir sua visão, mas era notável o descuido com o local. 

    — P-por favor, ignore a sujeira. Vou pegar algo para comer. 

    — Obrigada! — respondeu Sarah se sentando no sofá.

    Passaram-se alguns minutos até que João voltasse com um prato de biscoitos e uma xícara de café para a moça, que prontamente aceitou. Após entregá-lo, João se sentou um pouco distante da jovem, observando-a degustar o lanche. 

    — Não respondeu a minha primeira pergunta, Sarah… O que está fazendo aqui? 

    A moça bebeu um gole do café e, depois de uma reação inusitadamente negativa, pôs a xícara sobre a mesa que estava na sua frente. 

    — Esqueci que não gosto de café, haha… 

    — … 

    — Ah, sobre isso… Queria me desculpar pelo que aconteceu hoje mais cedo… 

    — Se desculpar? 

    — Sim. A Ana quase te matou na emissora… e isso foi minha culpa, entende? 

    — O que está dizendo? 

    — Acho que… começamos errado o nosso relacionamento… 

    — … 

    — Se não tivesse feito aquelas coisas hoje mais cedo, não estaria tão machucado assim, hehe… Desculpe-me, João… 

    — Sarah… Não se preocupe com isso, já aconteceu… 

    — … 

    — E… não foi sua culpa… Se não tivesse agido como um idiota no nosso último encontro, nada disso teria acontecido. 

    — É… 

    — Aliás, o seu pé… você o torceu, né? 

    — Pelo jeito, sim, haha…. 

    João se levantou e caminhou para a cozinha, deixando Sarah curiosa. Segundos depois, o rapaz voltou com um pano de prato molhado amarrado com gelo dentro, imitando uma compressa. Aproximou-se da jovem e disse: 

    — Poderia colocar o seu pé na mesa? 

    — N-Não precisa, João, meu pé já melhorou e… 

    — Sarah… 

    — … 

    Ela cumpriu a ordem em meio a baixos gemidos de dor. 

    — Sobre o pano, não precisa se preocupar. Peguei um que estava limpo e guardado. 

    — N-nem pensei sobre isso, bobinho… 

    — Vai ser um incômodo, mas tente manter, ok? 

    — O-ok… 

    O homem tirou a sapatilha da jovem e revelou seu pé branco e fino, mas com um inchaço na região interna. Região essa que estava parcialmente roxa devido ao machucado. 

    — Vou colocar. 

    — … 

    João pressionou o pano, fazendo Sarah se contorcer. 

    — Está doendo? 

    — É-é estranho, mas tudo bem… 

    — … — Silencioso, encarou a jovem, notando uma expressão de desconforto, porém envergonhada por tudo que estava acontecendo. Demorou alguns segundos até perceber o possível contexto da cena. Rápida e envergonhadamente, puxou a mão de Sarah até o pano, fazendo-a segurar. 

    — V-vou levar o prato e a xícara… 

    — J-João, aconteceu algo? 

    — N-não é nada… — O rapaz se levantou e, após pegar a louça, caminhou para a cozinha. Chegando lá, colocou-as na pia e abriu a geladeira em busca de água. 

    “O que foi tudo isso? O que ela está fazendo aqui?! Deixei um deles entrar na minha casa, que estupidez! Preciso mandá-la embora daqui… Conversarei sobre o ocorrido e pedirei que saia.” 

    Pegou uma garrafa e tomou-a pela metade, guardando-a dentro da geladeira e voltando para sala logo depois. 

    Chegando lá, avistou Sarah apertando o pano na região dolorida. 

    — Quer que eu ligue a televisão? 

    — B-bem, é melhor que ficar num silêncio, né? 

    João caminhou até a pequena televisão que tinha e a ligou. Trocando os canais, não se via nada além de notícias da noite. 

    — N-na verdade, deixe-a desligada mesmo… 

    — Certo… 

    Desligou a televisão e em seguida voltou para o sofá. 

    — Está melhorando? 

    — A-acho que sim… 

    — Bem… Você pediu desculpas por hoje, mas… 

    — E-ei, não me diga que vai recusar… 

    — Na verdade… acho que sou eu quem deveria pedir desculpas. Como disse anteriormente, foi por minha causa que tudo isso aconteceu. Mesmo nas circunstâncias que estava, não deveria ter lhe empurrado… Meu avô não me ensinou assim. 

    — E-estava realmente assustado, né? Sobre a minha pergunta… 

    — … 

    — … 

    — Sim… 

    — T-tudo bem, sei que não sou um bom partido, hehe. 

    — N-Não é isso! É que… não estou preparado para um relacionamento ainda… e toda aquela cena foi repentina… 

    — … 

    — Sarah, não diga esse tipo de coisa… acho que você é uma boa pessoa. Com certeza vai achar alguém que te ame… 

    — … 

    — T-talvez… poderia ser eu no futuro, mas… realmente não estou num bom momento… 

    — Q-quer dizer que aceitaria namorar comigo ainda? 

    — … 

    — F-fico feliz de ouvir isso…– completou Sarah tirando o pano gelado do pé. O rapaz rapidamente pegou da mão da jovem e voltou para cozinha. 

    “O que estou falando… Quanto mais o tempo passa, mais minha situação fica complicada… Preciso fazer com que ela saia daqui o mais rápido possível, mesmo que o seu pé não esteja curado!” 

    Voltou para sala e se sentou ao lado de Sarah. 

    — Nossa, até que aliviou um pouco, hehe! 

    — Bem, se não quer sentir dor no pé, coloque gelo até não sentí-lo mais. 

    — Espero não perdê-lo por causa disso, hein? 

    — Haha, não precisa se preocupar. 

    — Hm… Desculpa dizer isso, João, mas… — murmurou Sarah olhando a sua volta.

    — Sim, está horrível, né? 

    — Não diria “horrível”. Está bem melhor do que a emissora na primeira vez, haha! 

    — Menos mal, eu acho… 

    — Se quiser, posso te ajudar a arrumar.

    — O quê?  

    — Ajudar a arrumar o apartamento, não quer? 

    — B-bem… costumo arrumar nos finais de semana… 

    — Se esperar para arrumar até lá, vai morrer sufocado nessa bagunça. 

    — … 

    — P-pelo visto, falei demais, desculpe-me! 

    — Hahahaha! Tudo bem, sei que não foi por mal. 

    — É… 

    — Bem, como é a visita, talvez a melhor opção seja arrumar isso mesmo… 

    — Ótimo! — exclamou a moça se levantando rapidamente. — Ai, meu pé! 

    — E-ei,precisa repousar ainda, deixa que eu arrumo. 

    — Nada disso, vou ajudar também! 

    — … — João suspirou. — Ok, mas se machucar o seu pé de novo… 

    — Tudo bem, faço as coisas mais leves, hehe. 

    — Ok… 

    João foi na pequena lavanderia que tinha do lado da cozinha e pegou produtos e ferramentas de limpeza. 

    — Vamos começar, então… 

    Uma hora se passou desde a faxina. Ambos estavam sentados no sofá novamente. Dessa vez, era possível perceber o cansaço no rosto de ambos, porém o apartamento estava limpo como se fosse novo. 

    — Caramba… Fazer faxina onze horas da noite foi… uma experiência, haha. 

    — Pelo menos, vamos dormir num lugar limpinho, hehe! 

    — “Vamos”? 

    — Bem… Estou me convidando para dormir aqui, que tal? 

    — Ei, não estava sabendo disso. 

    — Agora está sabendo 

    — … 

    — … 

    João se distanciou levemente da jovem. 

    — Então, Sarah… Sei que pode soar arrogante e antipático, mas… não seria uma boa ideia você dormir aqui… 

    — P-por que não? 

    — Não sabe o que pode acontecer dormindo na casa de um estranho… E se… eu fizer coisas contigo?  

    — Ei, você não é estranho, e tenho certeza de que não faria algo do tipo. 

    — Sim, eu também, mas… Não, Sarah. Acho melhor ir… 

    — … 

    — Se quiser, posso te levar até um ponto de ônibus para ficar mais segura, mas… não acho que deveria dormir aqui. 

    — … 

    — Bem… acredito que seria melhor… também tenho coisas a fazer, sabe? Espero que entenda… 

    Quando João decidiu se levantar, Sarah colocou sua mão agilmente na coxa do rapaz e, segurando firmemente, impediu-o de sair do sofá. 

    — S-Sarah? 

    — João… 

    Ele tentou se levantar, mas sem sucesso. Incrivelmente, a força da garota era capaz de mantê-lo parado. 

    — S-Sarah, o que está fazen… 

    Num ato aparentemente inimaginável, Sarah se jogou em cima de João, que ficou apavorado com a situação. Sem poder reclamar, foi forçado a beijar a jovem que avançava mais e mais para cima dele. 

    Esse beijo, assim como o do encontro anterior, foi quente, molhado e com um sentimento amedrontador vindo da dama, que forçava seu corpo por cima do de João, impedindo-o de fazer qualquer coisa. 

    João estava preso e sem ter o que fazer, resultando num cenário completamente medonho. 

    Continuaram assim por um tempo até a falta de ar separá-los. O jovem estava completamente chocado e assustado com tudo isso. 

    — S-Sarah… o-o q-que v-você… 

    Naquele momento, Sarah estava em cima de João, que não conseguia sair debaixo do corpo da jovem. Sentada no colo do rapaz, fez algo que deixou ele mais assustado ainda. Num ato repentino, a mulher decidiu tirar seu vestido, despindo-se quase que completamente, ficando apenas com suas roupas íntimas pretas que, por serem de renda, deixavam suas partes íntimas parcialmente aparentes. 

    — P-por favor… n-não p-pode… 

    Sem deixá-lo completar a frase, Sarah avançou e começou os beijos mais uma vez, fazendo com que o corpo dele queimasse ansiando algo. E João sabia que esse algo era errado. 

    Como antes, ambos foram separados pela falta de ar. Para ele, aquela cena toda parecia vir de um filme de terror, e em sua cabeça, já estava esperando o pior: que seria abusado por sua colega de trabalho. 

    Lacrimejando, O homem decidiu fechar seus olhos e imaginar que tudo aquilo era um sonho, e que, futuramente, iria acordar. Infelizmente, não parecia funcionar. 

    Quando parecia que não podia piorar mais, João ouviu a voz doce e rouca — devido aos beijos incessantes — de Sarah lhe perguntar algo que o fez tremer da ponta das unhas dos pés até o fio mais alto de seu cabelo: 

    — Você sabe, né? 

    Ao ouvir a pergunta, lentamente abriu os olhos. Com o revelar de sua visão, observou Sarah quase que completamente despida, com os olhos cheios de lágrimas e, o mais assustador de tudo, um facão em suas mãos. 

    — Sabe que somos demônios, não é, João? 

    — Sarah… O que… 

    — Provavelmente ouviu alguma de nossas reuniões, não é? 

    — … 

    — Escutou sobre a minha parte do plano… A parte em que eu deveria te fazer se apaixonar por mim… Não é? 

    — … 

    — Eu… não sei se percebeu, mas… desde o dia do parque de diversões… passei a realmente gostar de ti. 

    — … 

    — Haha… Quem diria, a pessoa que deveria conquistar… foi conquistada… Sou uma inútil… 

    — … 

    — João… pode achar o que vou dizer agora algo sem sentido, mas… preciso te matar… 

    — … 

    — Preciso te matar para… salvar você… Não sei se vai entender esse ato e os meus sentimentos., porém… é isso que deve ser feito. 

    —… 

    — Eu te amo João… saiba que estou fazendo isso para o seu bem… Desculpe-me! 

    — … 

    Ele novamente fechou os olhos, e com uma sensação de tristeza, decepção e, controversamente, alívio, pensou: 

    “É, vou morrer aqui.”

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