Capítulo 27: Família
João desceu as escadas do segundo andar e caminhou até a estante empoeirada que continha o telefone barulhento. Estava curioso e um pouco assustado com a ligação inesperada, pois havia acontecido justo no momento em que se preparava para ir embora da cidade.
Com receio, decidiu atender:
— Quem… — o jovem foi interrompido antes mesmo de completar sua pergunta.
— J-João? — a amiga de infância do rapaz cochichou.
— Alice, por que ligou agora? Preciso sair daqui o mais rápido pos…
— João, venha para cá, por favor!
— O que foi? Aconteceu algo?
— O meu pai… o meu pai matou a minha mãe! Não sei o que aconteceu com ele e não tenho como sair daqui, me ajuda!
— O Ronaldo? Como assim?!
— Ele está estranho, João! Sua aparência mudou completamente, é como se parecesse os demônios dos livros que líamos…
— Demônios?! Merda…
— João, estou te implorando, me salve!
— C-calma, Alice! Você está escondida? Ele te viu?!
— Ainda não… Estou debaixo da cama do meu quarto. Da forma que minha mãe foi morta, nenhum vizinho será capaz de pará-lo! João, venha para cá, só você pode me salvar daqui…
— E-espera, estarei aí em alguns minutos, não saia de onde está!
— João…
— O que foi?! Preciso sair rápido!
— Eram essas coisas que você estava enfrentando na cidade…?
— Droga, não é hora para perguntas, Alice! Estou indo para aí, fique em silêncio!
— Certo…
João desligou o telefone e correu para o celeiro. Lá, pegou o revólver, a espingarda e as munições, e logo partiu para fora do seu sítio.
Enquanto corria até a casa de sua amiga, notava todas as moradias de seus vizinhos completamente escuras, porém intactas. Felizmente, não aconteceu com eles o mesmo que aconteceu no apartamento, e provavelmente todos estavam dormindo.
João corria pela estrada de terra que levava à mercearia, mas, devido ao terreno lamacento, escorregou. Caiu de cara no chão, tendo sua vista levemente afetada pela lama, fora isso, ralou o seu joelho nas pequenas pedras que jaziam ali. Mesmo assim, sabia que esses empecilhos não poderiam distraí-lo no momento.
Levantou-se e continuou no seu caminho, ignorando ao máximo o incômodo na perna e na sua visão.
Correndo, João não conseguia manter sua mente limpa de tudo o que acabara de descobrir. Vários pensamentos se misturavam e criavam dúvidas, incertezas e medo no consciente do rapaz.
Seria o seu primeiro embate contra um demônio, como vai se sair?
Chegará rápido o bastante para salvar a sua amiga? Ou, assim como Sarah, não verá nada além do cadáver da pessoa que mais lhe amava no mundo?
Tentava, mas não conseguia impedir esses pensamentos negativos.
Após uma longa caminhada, finalmente chegou na moradia de Alice. À primeira vista, tudo parecia normal. A casa não estava destruída e os animais próximos da região dormiam tranquilamente. Tudo parecia… calmo demais.
Mas, mesmo que não tivesse provas concretas, João sabia que essa não era a verdade. Sabia que, se Alice estivesse correta, algo muito ruim estaria o aguardando.
Pulou o pequeno portão que cercava a casa, avançando, e ao se aproximar da porta, notou-a fechada. Era comum, visto que naquele horário todos deveriam estar dormindo, então mantê-la aberta só lhes trariam perigo.
Mesmo que João forçasse, não conseguia abri-la, e o desespero passava a tomar conta de sua mente.
“Droga, droga, droga! Não posso demorar mais!”
Puxou o revólver e atirou na fechadura, rezando ao máximo para que os outros moradores não acordassem. O barulho ainda foi alto, mas João não notou qualquer movimento estranho nas casas dos arredores, então, adentrou rapidamente.
Lá dentro, João gritou:
— ALICE!!! VOCÊ ESTÁ AÍ??!!
Cautelosamente, puxou a espingarda e caminhou até as escadas que davam de frente ao quarto da loira. João conhecia muito bem a casa pois passou boa parte da sua infância lá, junto de Alice. Então, sabia exatamente onde deveria ir.
Ao se aproximar dos degraus, notou sangue caindo lentamente por eles. Decidiu apertar os seus passos e correu para cima.
No meio do trajeto, escorregou novamente, mas agora pelo seu descuido com o sangue. Sem querer, derrubou sua espingarda no primeiro andar, e com certeza não tinha tempo o suficiente para ir buscá-la.
Nada parecia dar certo para o jovem, que puxou o revólver do bolso para substituir a arma perdida..
Quando finalmente chegou no segundo andar…
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O cadáver de Neide, que derramava o sangue pelos degraus da escada, estava com sua barriga aberta, como se tivesse sido comida pelo demônio que a matou.
Sua cabeça estava quase que completamente destruída. O buraco no centro do rosto, as marcas de dedos, a deformação no crânio e os olhos esbugalhados mostravam que ela havia morrido no momento em que sua cabeça foi espremida.
Aparentemente, Ronaldo aproveitou o cadáver de sua falecida esposa, tornando-o seu alimento.
Essa foi a primeira visão de João…
A porta do quarto de sua amiga estava destruída, e os móveis que provavelmente foram utilizados para protegê-la, estavam jogados e caídos no chão ao redor do quarto.
Ronaldo, o melhor amigo de seu avô, o homem que lhe ajudou na fuga da cidade, não era mais o mesmo…
Antes, apresentava um corpo magro, corcunda e enrugado, mas agora, era diferente.
Estava crescido, com as roupas rasgadas por inteiro como se não coubessem mais no corpo do velho, e sua pele apresentava um tom bem forte de vermelho. Seu semblante “forte” se dava graças aos músculos inchados que adquiriu após a transformação.
Definitivamente, conquistou uma força sobre-humana após virar um demônio, mas… como?
João não buscou achar a resposta para essa pergunta, pois algo mais importante cercava sua visão.
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Alice era fortemente agarrada pelo seu pai, que a segurava pela cabeça.
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Ainda assim, mantinha-se viva.
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O rapaz mirou o revólver para a cabeça do monstro, mas antes que pudesse atirar…
— João…
— Alice…
A loira, sabendo que o seu fim iminente estava prestes a acontecer, sorriu.
— Fico feliz que pude te ver mais uma ve… — antes que concluísse a frase, a amiga de infância de João teve seu crânio completamente destruído, tal qual o de sua mãe.
Lentamente, Ronaldo soltou o corpo de sua filha no chão, que caiu junto do sangue da mulher.
João, pela primeira vez, experienciou um assassinato.
— A-Alice… A… Ali… — João reclamava estático.
“Eu falhei… de novo”
Foi o que ele pensou.
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Porém, seu trabalho não havia terminado.
Antes que pudesse agir, João foi severamente acertado no rosto, caindo no primeiro andar. Nisso, bateu sua cabeça, costas e fraturou seu braço.
Parecia o fim para o homem, que desmaiou ali mesmo.
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— João, acorda — uma mulher de cabelo tingido chamou.
— O-o quê?
— Não pode desistir agora, João — outra mulher loira completou.
— Sarah…? Alice…? O que estão fazendo juntas aqui?
— Isso não é importante agora. Você não pode desistir, João — Sarah respondeu firmemente.
— Eu… morri?
— É cedo demais para morrer ainda — a loira respondeu. — Acorde e enfrente o perigo que te apavora.
— Alice, eu…
Ambas ficaram quietas.
— Não sei se consigo… Não mais…
— João, se não consegue fazer isso por ti, faça por nós — a jovem de cabelo tingido buscou convencê-lo, mas sem sucesso.
— Vocês estão mortas, não estão mais aqui… São apenas imagens da minha cabeça…
— Faça pelos moradores, João… — Alice retrucou.
— Não vou conseguir… Não aguento mais isso… eu quero morrer…
— Faça isso pelo mundo…
— Não… eu desisto.
Sarah e Alice se aproximaram do rapaz caído no chão e o abraçaram. Sem entender o que estava acontecendo, o jovem apenas chorou:
— Eu sou fraco… não posso continuar…
— João, lembre-se: o que é que te move? — Alice indagou.
— C-como assim… o que me move?
— Se não pode fazer por ti…
— Por nossas almas…
— Pela cidade…
— Pelo mundo…
— Então…
— Faça pela Rosa — as duas concluíram.
— R-Rosa…? C-como vocês a conhe…
João acordou segundos depois após a queda devido a dor excruciante que sentia no braço fraturado. Por sorte, o esquerdo é quem foi machucado, e o jovem era destro.
Ronaldo, o homem que matou a própria família, descia lentamente as escadas enquanto tentava se acostumar com seu novo corpo.
Quando notou que João havia acordado, passou a descer mais rápido os degraus com seus passos grotescos.
O rapaz, vendo isso acontecer, aproveitou para pegar a espingarda e atirar no demônio, mas teve muita dificuldade por só ter um braço útil. Ainda assim, foi capaz de manuseá-la e atirar.
Infelizmente, os tiros só pegaram de raspão no monstro que acabou tropeçando e caindo de lá. Com o máximo de esforço possível, João se levantou e saiu da frente das escadas antes que morresse esmagado.
Percebeu que a espingarda naquele momento seria inútil, então decidiu descartá-la momentaneamente e saiu correndo para a área externa do sítio.
“Merda, preciso pensar num plano para matá-lo… A partir de agora, não posso enxergá-lo como Ronaldo, e sim como um demônio… Mas, do jeito que estou agora, o que posso fazer?”
João optou por ir ao celeiro da casa para ver se tinha algo que pudesse ajudá-lo visto que os celeiros costumam ter várias ferramentas que podem ser usadas como armas.
“Posso usar o meu revólver também, mas não sei se serei capaz de machucá-lo só com isso. Será que ele tem alguma mancha negra no corpo? Aliás, como Ronaldo se tornou um demônio? Ele definitivamente não era um antes de eu chegar na cidade… Pode ser que…”
João chegou no celeiro e notou-o fechado. Mais uma vez, usou o revólver para destrancá-lo, e com muito mais dificuldade do que antes, abriu os portões.
Lá dentro, a primeira coisa que notou foi o baú de ferramentas, e correu até ele. No baú, continham as ferramentas que tanto almejava, mas a maior parte delas não poderiam ser utilizadas pelo João no estado em que se encontrava.
— Blaurgh!
O homem virou para trás e observou o monstro se alimentando com as galinhas que residiam próximas do celeiro. Com mordidas ferozes, arrancava partes e partes dos animais que não duravam muito tempo vivos. Comeria daquele jeito mesmo, com penas, ossos e tudo mais. Seus dentes foram alterados junto com o corpo, dando a capacidade de mastigar tudo sem qualquer dificuldade.
Naquele momento, Ronaldo parecia com uma máquina de matar.
“É verdade… não posso deixá-lo machucar mais ninguém… preciso proteger os outros moradores, mesmo que custe a minha vida… Não, não pagarei com a minha vida agora… Definitivamente matarei esse desgraçado!”
João observou o interior do baú mais um pouco e o fechou depois. Virou-se para trás novamente e notou o demônio na entrada do celeiro.
— Blergh… borg…
— Filho da puta.
Ronaldo correu até o rapaz para tentar agarrá-lo, mas foi evitado.
“A forma que ele se move é muito desordenada… Seria mais fácil correr dele se não estivesse machucado desse jeito… Ainda tenho quatro balas no revólver, será que vale a pena?”
Enquanto o demônio buscava pegá-lo, João apenas recuava e desviava dos golpes. Na hora certa, puxou o revólver e mirou na cabeça do monstro, mas antes que pudesse atirar, sentiu outro pico de dor no braço fraturado.
“Droga, não posso mirar com precisão desse jeito… Terei que usar aquilo.”
Inesperadamente, João decidiu fugir de lá. Mesmo que estivesse enfrentando um ser desconhecido e poderoso, o rapaz parecia ter pleno controle da situação. O jeito de andar, correr e atacar do demônio aparentava dar a vantagem para o homem machucado, mas no final de tudo, ele ainda estava machucado.
O ser começou a segui-lo como se ansiasse por mais carne humana. O corpo de sua mulher não havia o saciado e ele nem teve a oportunidade de comer o cadáver de sua filha, então, o que mais queria era matar João e sua vontade de comer.
Um estava atrás do outro, e quanto mais cansado o rapaz ficava, mais próximo o demônio chegava dele. Em meio a arfadas, João se tornava lento, até que Ronaldo finalmente chegasse perto o suficiente para pegá-lo.
De repente, num ato inesperado, João usou o resto de suas forças para girar no sentido horário de seu corpo. Devido ao rápido balanço e a surpresa do demônio, o homem de sobretudo acertou ferozmente uma martelada na face do ser, que caiu duro no chão.
Independente de ter morrido ou desmaiado, João não teve pena. Ajoelhou-se perante ao monstro e desferiu diversos golpes com o martelo na cabeça. Desfigurou completamente o que um momento atrás era um crânio inchado e apavorante, restando nada mais que carne moída e miolos do cérebro.
Após terminar a sessão de ataques, João — coberto pelo sangue do monstro — se levantou. Ficou lá por um momento, encarando mais um cadáver que apareceu em sua vida, mas dessa vez, o cadáver de alguém que ele mesmo matou.
Não importando se era de um humano ou de um demônio, a partir daquele momento, João de fato, se tornou um assassino.
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