Com o primeiro embate concluído, João teve sua primeira experiência enfrentando um demônio. Por ser algo novo, um sentimento de estranheza cobriu o rapaz que, devido a adrenalina e tensão da luta, esqueceu completamente dos seus outros problemas.

    Recobrou os seus sentidos com uma fisgada em seu braço machucado, que alertava-o da necessidade de tratar seus ferimentos o mais rápido possível.

    Junto com isso, a preocupação com os vizinhos e sua fuga também vieram à tona, que instaurou uma inquietude no homem.

    “Devo fugir o mais rápido que puder, os vizinhos acordarão com os disparos que dei… “

    João se perguntava como tudo isso havia acontecido, mas por estar numa situação delicada, não procurou respostas. Caminhou até o interior da casa, avistando toda a bagunça que ocorrera ali. De forma incrível, o primeiro andar não aparentava uma visão desastrosa, exceto pelo cadáver de Neide e a poça de sangue que fora causada por ela, todos os móveis se mantinham no mesmo lugar e intactos, com exceção da porta que foi arremessada por Ronaldo em sua perseguição desastrada.

    Ao se aproximar da espingarda caída, João observou as escadas. Essas, de fato, estavam destruídas. Com pegadas grotescas nos degraus e o piso dilacerado por completo, era questionável se aquilo poderia ser considerado um caminho seguro para o segundo andar, visto que algumas lascas de madeiras tornavam aquele trajeto bem perigoso.

    Ainda assim, João queria subir. Queria ter certeza de que sua amiga estava morta ou se aquilo tudo foi apenas uma brincadeira de mal gosto. Não queria ser mais pessimista do que já era, mesmo que soubesse o resultado final de tudo.

    Fitava a face destruída da loira, que se mantinha estirada no chão tal qual os móveis de seu quarto. Mesmo que a aparência estivesse horripilante, o homem de sobretudo não demonstrou desconforto e apenas se aproximou da dama caída.

    Alisava os cabelos dourados que perderam seu brilho após a morte dolorosa da jovem, enquanto pensava no quão idiota foi envolver as pessoas da cidade em seus problemas:

    “Por minha culpa… você está morta, e ainda assim, foi capaz de me salvar… Me perdoe, Alice… não deveria tê-la envolvido nisso… não deveria ter envolvido ninguém nessa história…”

    Mesmo que o momento fosse doloroso, o rapaz não derramava lágrima alguma. Instintivamente, considerou que deveria ser forte o suficiente para acabar com tudo isso, afinal, foi o que Alice havia lhe dito.

    “Recomponha-se.”

    Chorar naquele momento era confirmar que não havia aprendido a lição, e que tudo que fora dito por sua amiga de infância foi em vão.

    João, que não passara um minuto sem se cobrar desde a luta, queria retribuir a ajuda da loira.

    “Alice, me vingarei deles por você e pela Sarah… Não deixarei as coisas baratas.”

    Desceu o lance de escadas — desviando dos espinhos de madeira que haviam lá —  enquanto planejava qual seria o próximo passo de seu plano.

    Estava com uma severa desvantagem: suas malas estavam no sítio, seu braço estava quase que completamente inutilizado, a roupa estava suja de sangue e os vizinhos iriam acordar a qualquer momento. Fora isso, outra coisa atormentava o rapaz, que pensava primeiro em como escapar de lá.

    Sua principal preocupação era com a fuga da cena do crime, pois dificilmente chegaria em seu sítio com os vizinhos saindo preocupados de suas casas.

    Observando as outras moradias para notar algum sinal de vida, João finalmente achou uma forma de fugir de lá sem ser percebido.

    ⁂ 

    As luzes finalmente se acendiam, e junto disso, conversas entre os membros de cada casa se tornavam frequentes, por mais baixas que fossem.

    Demorou alguns minutos até o primeiro vizinho ir para as ruas. Atrás dele, seus parentes que gritavam desesperadamente para ele ter cuidado, pois poderia ter algum ladrão à espreita esperando o momento ideal para atacá-lo. 

    Em seguida, outro vizinho saiu com um machado em mãos. Era o lenhador da cidade que vendia lenha para os outros moradores. Esse vivia sozinho, então não tinha ninguém para lhe esperar em casa, e tudo o que lhe restava era uma preocupação disfarçada de coragem.

    Com o tempo, mais e mais vizinhos (em sua maioria, homens), saiam de suas casas para ver o que estava acontecendo. Era como um efeito manada que trazia mais e mais pessoas para as ruas lamacentas.

    Como era esperado, todos se encontraram. Discutiam sobre o barulho dos disparos, da onde veio e afins. Cogitaram que fosse João treinando como costumava fazer, mas logo descartaram a ideia por saberem que o rapaz não seria tão negligente ao ponto de treinar de madrugada.

    Alguns estavam desesperados, outros tentaram manter uma face viril e corajosa, enquanto o resto procurava acalmar a todos. Era uma barulheira sem fim vindo das ruas, mas que se silenciou inesperadamente ao verem a porta da casa de Ronaldo destruída.

    Correram até lá com medo de que pudessem ver o pior, mas nem o pior que eles imaginavam era tão ruim quanto o que de fato aconteceu.

    De início, notaram um corpo desconhecido caído no chão. Corpo esse que não teria qualquer meio de identificação, visto que o rosto da pessoa estava irreconhecível graças às diversas pancadas causadas por alguém.

    Algo que foi rapidamente captado foi o resto do corpo. Com a pele tão vermelha que lembrava queimaduras de terceiro grau e a anatomia desconhecida e horripilante, todos pensavam que aquele cadáver era de algum invasor desconhecido.

    Pensavam que Ronaldo foi quem disparou com as armas, matando esse invasor e garantindo sua morte esmigalhando seu crânio posteriormente.

    Tudo fazia mais sentido após adentrarem na casa, encontrando os cadáveres de sua família estirados no chão. A maioria dos vizinhos choravam sem acreditar no quão horrível deve ter sido a morte delas, os homens que buscavam passar o ar de determinação e coragem se provaram sensíveis tal qual os que não se preocuparam com suas imagens anteriormente.

    Passaram um momento averiguando os arredores da casa, e depois de uma longa procura, uma dúvida surgiu:

    Onde estava Ronaldo?

    Será que havia fugido após perder sua família e se vingar do assassino, com medo de ser preso?

    Essa seria uma pergunta sem resposta.

    João se encontrava na beira do rio que corria de dentro do bosque, onde costumava ser o seu esconderijo e o de Alice.

    Numa tentativa mal sucedida de lavar o seu sobretudo, deixou-o secando num galho de árvore próximo dele. 

    Tentou mexer o seu braço quebrado com a esperança de que ele poderia ser usado pelo menos uma vez, mas a única resposta que conseguiu foi uma dor lancinante.

    Encarou-se no reflexo da água e lavou o seu rosto, tirando o excesso de sangue que continha ali. Agora, sua feição parecia muito menos amedrontadora do que antes.

    Depois de tudo isso, encostou numa pedra para descansar e pensar no que deveria fazer em seguida.

    “Ok, devo colocar tudo em ordem. Esqueça tudo o que aconteceu a dez minutos atrás e pense no que você deve fazer, João.”

    Sua mente ficou em branco por alguns segundos, e com um riso irônico, disse:

    — É impossível esquecer tudo isso…

    Olhava a água corrente do rio fluindo calmamente enquanto as gotas de chuva — que estava para acabar — caiam no mesmo. Era uma visão aconchegante, mas inútil, pois não era capaz de acalmar o rapaz que sofria ali.

    — Alice, se pudesse, lhe mostraria o quão agradável é ver isso. Como pode a natureza ser tão bela? A água fluindo por um caminho criado naturalmente, cortando a cidade com o seu brilho cristalino… 

    Mesmo que estivesse sozinho, não economizava palavras:

    — O que é que estou falando…? Devo estar delirando após ter visto todo esse caos de agora pouco… Mas, por algum motivo… essa visão é boa.

    Minutos depois, um pequeno cardume de peixes apareceu nadando pelo rio. João nunca havia visto algo assim, mesmo que tivesse passado a maior parte de sua vida perto daquela cachoeira.

    — Peixes… Então, você não havia mentido — o jovem falou demonstrando um pequeno sorriso.

    Aproximou-se do cardume para observá-los melhor, e se surpreendeu ao notar todos respondendo a aproximação. Sem medo algum, os peixes nadavam ao redor da mão do jovem que residia ali na água.

    “Queria assisti-los junto contigo… Merda… você vai fazer muita falta, Alice…”

    João se levantou e pensou que aquele não era o momento para sofrer pelo leite derramado. Agora era hora de definir como será o resto do seu dia.

    Primeiro, pensou num meio de chegar no seu sítio sem ser percebido, o que seria bem difícil.

    Como havia feito minutos antes, escolheu fazer um caminho próximo do bosque. Ela se mantinha distante de sua moradia, mas era o trajeto mais seguro a ser feito.

    Depois de pegar as suas coisas, João deveria pensar num jeito de sair da cidade. O melhor que pôde pensar foi em descartar suas vestimentas atuais, trocar-se rapidamente e fugir enquanto os outros vizinhos estariam preocupados com a casa de Ronaldo, porém, era muito grande a chance de dar de cara com algum deles, então, preferiu esperar para fugir na madrugada seguinte. Ainda assim, o plano se mostrava arriscado — quiçá burro — por conter diversas brechas.

    Outra dúvida que surgiu era sobre o que aconteceu com Ronaldo. Sabia que o velho não era um demônio anteriormente e que algum dos membros da emissora poderiam estar envolvidos. Mas como eles fariam algo se estavam em São Paulo? Como saberiam que João havia fugido de lá?

    O rapaz sabia exatamente o que estava por vir.

    A batalha contra Ronaldo não foi nada mais que um teste para o que de fato iria acontecer momentos depois.

    Um dos membros da emissora estava lá na pequena cidade, agora mesmo. 

    João se perguntava o motivo dela não ter feito nenhum movimento a mais, visto que anteriormente, um dos membros matou todas as pessoas do seu prédio sem pestanejar. Por que ali seria diferente?

    Aliás, a pessoa que matou Sarah e seus vizinhos seria o mesmo que transformou Ronaldo em demônio?

    João tinha muitas dúvidas, e entendia que a qualquer momento seria capaz de descobrir as respostas. Mas para isso, precisava agir.

    E foi o que fez.

    João vestiu o sobretudo ainda úmido devido a má limpeza do rapaz, pegou suas armas e caminhou para fora do bosque, perdendo-se em meio às árvores.

    Eram quatro horas da manhã, e enquanto o jovem ficava na surdina, policiais e médicos já haviam chegado na pequena cidade. Felizmente, a atenção dos vizinhos estavam atreladas a casa de Ronaldo e sua família, deixando o caminho de João até sua casa mais fácil.

    Quando chegou lá, não poupou tempo, pegou o molho de chaves em seu bolso e abriu a portinhola, entrando rapidamente no interior da casa.

    Tudo estava escuro visto que ainda era madrugada, mas por sua longa vivência naquela casa, sabia onde os móveis principais estavam.

    Fora isso, era possível notar um forte odor de café fresco vindo da cozinha. O seu adversário já estava lhe esperando, mas o jovem preferiu ignorá-lo momentaneamente.

    Apoiando-se nos móveis e paredes, João conseguiu chegar até o segundo andar, pegando suas malas — uma delas, incompleta — e caminhando para o andar debaixo novamente.

    Após concluir o percurso, repousou no sofá, fechou os olhos e se manteve ali por alguns minutos.

    .

    .

    .

    Era um silêncio calmo.

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    Uma escuridão calma.

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    .

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    João abriu os olhos calmamente e perguntou:

    — Qual de vocês fez aquilo com o Ronaldo?

    De repente, uma leve luz dourada surgiu nas costas de João, vindo da cozinha.

    — Então, Ronaldo era o nome dele?

    Ambos ficaram calados durante alguns segundos, e apenas um som podia ser ouvido na residência: o passar das páginas de um livro.

    — Não esperava isso de você… Willian.

    — Infelizmente, esse era o meu trabalho, jovem.

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