Capítulo 29: Dúvidas
Mesmo que tivessem contato, ambos não ousaram se mover dos lugares que estavam. João seguia encarando o que estava à sua frente: uma janela que dava a visão das casas à distância, com a leve chuva caindo cortando o cenário. Enquanto isso, Willian seguia lendo o seu livro — esse sendo impressionantemente grande — aproveitando o café que havia feito previamente.
O clima perdurou por alguns minutos, como se ambos estivessem aproveitando o seu último tempo de paz. Encerrou-se quando, após a ligeira batida da xícara no balcão, o demônio voltou a falar:
— Sabe, João… — pausou por um momento passando a página de seu livro em seguida — entende que não fiz aquilo com o seu vizinho sem um motivo, certo?
— Para envolver inocentes e matá-los, definitivamente tinha um motivo, ainda mais vindo de ti — respondeu o jovem inclinando-se levemente para frente. — Gostaria de saber o tal motivo por trás de sua atitude.
— Pelo visto, o longo período aqui lhe mudou, hein? — Willian debochou.
— Não desvie do assunto.
— Hum… — o homem encarou a silhueta do rapaz na escuridão da sala. — Acho que lhe devo algumas respostas antes de matá-lo.
— …
— Deve ter se perguntado como soube que estivesse aqui, também, não?
Willian pausou brevemente, deliciando-se do seu café.
— Hahaha… Você cogitou que não iríamos descobrir sobre o seu primeiro dia de trabalho, quando ouviu as nossas conversas, mas no momento que colocou o seu olho no vão da porta, tivemos noção de sua presença.
— …!
— Bem, não irei dizer que fizemos isso de propósito, até porque, de fato, não fizemos. Porém, pensamos na possibilidade de que nosso plano seria capaz de seguir contigo.
— Como? Visto que eu já sabia sobre vocês, poderia ter contado para a polícia ou fugido, não?
— Quem acreditaria em ti se falasse algumas asneiras sobre demônios?
— …
— Caso fugisse, bastaria ir atrás de ti, como fiz agora. Mas, não sabia que você seria tão teimoso e corajoso ao ponto de se sobressair contra um humano transformado.
Willian se levantou e caminhou até a pia, enxaguando a xícara e colocando no escorredor ao lado. Depois, pegou um pano do balcão e secou suas mãos levemente, jogando o pano lá mesmo.
— Além disso, como deve ter visto, matamos vários e vários receptáculos fracassados antes de você, então quisemos deixar as coisas um pouco mais interessantes.
— Então, desde o começo, sabiam da minha descoberta…
— Exatamente o que eu disse — concluiu se sentando no banco novamente.
— E o que tudo isso está relacionado com o envolvimento de Ronaldo e sua família nisso tudo? Como você foi capaz de me seguir até aqui, mesmo não tendo conhecimento do meu passado? E por que demorou tanto para vir?
— Calma, calma — o homem riu em seguida — te disse que iria responder, então espere.
— Para sua infelicidade, não tenho muito tempo sobrando, preciso te matar e fugir daqui o quanto antes.
Willian voltou a ficar calado, dessa vez com uma expressão bem mais séria do que antes, que não fora notada pelo jovem de sobretudo.
— Já que está tão ocupado e confiante, irei respondê-lo o mais rápido que eu puder. Além disso, também tenho minhas coisas para fazer.
— Ótimo.
— Lembra do dia que Ana te espancou ao ponto de termos que pará-la? Utilizamos o seu sangue daquele momento para um ritual de “perseguição”. Não é algo que você seria capaz de entender, visto que não é um demônio como nós. Foi um pouco complicado já que o seu sangue era pouco, mas com algumas mexidas nos pauzinhos, Gabriel foi capaz de tornar o ritual possível.
— Entendo… — disse o jovem se levantando e caminhando até a janela, observando o caos causado pelos vizinhos no fundo da paisagem.
— O motivo da demora é simples: queríamos ver o quanto você seria capaz de evoluir. Tudo isso para tornar a nossa luta mais divertida, já que bater em cachorro morto não dá prazer nenhum. Contudo, sempre estive a espreita, observando-o e coletando dados.
— Então, esteve aqui esse tempo todo? Isso quer dizer que… — João foi bloqueado.
— Já deve ter imaginado. Observei a sua relação com Alice nos últimos dias, incluindo o belo encontro de vocês. Com as informações que adquiri nesses três meses, compreendi que não havia jeito melhor de desencadear o seu potencial do que matando as pessoas mais importantes da sua vida naquele momento.
— …
— Entenda, João, você nunca passou de um objeto para nós… No máximo, virou um brinquedo divertido que aproveitamos para brincar nesse meio tempo.
João apoiou a palma de sua mão no vidro da janela, acompanhando as gotas da chuva descerem pela mesma. Por algum motivo, nenhuma emoção era demonstrada no semblante do rapaz, que aparentava buscar foco nas coisas mundanas que enxergava naquele momento.
Buscando se acalmar enquanto ouvia as palavras provocáveis de Willian, perguntou:
— Sarah e Ana estavam envolvidas nessa “manipulação” também?
— Pelo visto, ainda tem tempo para perguntas…
— Responda.
— Para sua sorte, ela não estava. Na verdade, tudo o que vocês viveram juntos foi surpreendentemente real… Me impressionou que ela se apaixonou de verdade.
— Hum.
— Aliás, confesso que preferi sua relação com a Alice do que com ela, mas não adianta nada, já que elas morreram — disse caçoando.
— E Ana?
— …
— Ela esteve envolvida?
— Felizmente, não.
— …?
— Tem mais algo para perguntar?
— Como transformou Ronaldo naquele monstro?
— É outra coisa na qual você não entenderá muito sobre, mas lá no Inferno existe uma coisa que permeia aquele lugar todo. É uma aura demoníaca que mexe com todos os seres que habitam lá embaixo, tornando-os monstruosos e selvagens. O que fiz não foi nada mais do que contaminar aquele homem com essa aura, afinal, ela habita em mim também.
— Quem de vocês matou a Sarah?
— …
— …
— Acha que fui eu?
— Não, estava comigo na emissora quando tudo deve ter acontecido.
— Ainda bem, o que você pensa de mim é importante, João — zombou mais uma vez.
— Deve ter sido o Caio… Certo, todas as minhas dúvidas já foram respondidas — completou o rapaz se virando calmamente, finalmente observando o homem que destruiu uma parte de sua vida. — Irei matá-lo e em seguida irei atrás daquele verme de suspensório.
— Boa sorte.
Como já era comum, ambos ficaram em silêncio, mas dessa vez, seus olhares se encontravam. Não havia rancor ou medo na feição dos dois, era apenas como se analisassem um ao outro para ver qual era a melhor forma de se atacarem.
Parecia que o combate iria se encerrar com uma ação.
Surpreendentemente, Willian quebrou o clima pegando o seu livro do balcão, que continuara aberto esse tempo todo.
— Rapaz, pode não parecer, mas eu senti pela morte de Sarah.
— …?
— Quer dizer, acho que senti mais pela tristeza da Ana. Ela sim sofreu, e muito, com a morte da garota.
— E daí?
— A questão é que, no final de tudo… — Willian falou observando as páginas de seu livro rapidamente — assim como você, ela é substituível.
— …
— Sua beleza, de fato, era esplêndida, me surpreendo com a sorte de Ana ter encontrado ela. Mas, no final, seu rostinho bonito era a única coisa que lhe prestava.
— …
— Era inocente demais para ser um demônio e burra demais para fazer parte de um projeto tão grande de Satanás. Acho até que a Luxúria poderia substituí-la, mas ela dificilmente se esforça em melhorar sua aparência.
— Luxúria?
— Felizmente, você não a conhece. Ela é asquerosa, mas conseguiria cumprir o plano que foi dado a Sarah.
— Willian.
— O que foi?
— Tenho mais uma dúvida… poderia respondê-la?
O homem, que passava as páginas do livro de forma ligeira, inesperadamente arrancou duas folhas dele.
— Pode ser…
— Onde está a sua mancha negra?
— … — Willian voltou a encarar o jovem, dessa vez, de forma surpresa. — Por que quer saber disso?
João — que demonstrava estar calmo todo esse tempo — puxou o seu revólver e mirou no demônio, revelando um ódio extremo em seu rosto. Fitando o inimigo com um olhar ameaçador, respondeu:
— Porque quero te matar o mais rápido possível.
Vendo a raiva desencadear no semblante do rapaz de sobretudo, Willian se pôs a rir incessantemente.
— Ai, ai… essa batalha será divertida!
— …
— A lombada do meu livro está para quebrar, então também planejo acabar com isso rápido.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.