Capítulo 34: Empatia
Com a transformação se dissipando, João foi capaz de se aproximar de Willian, querendo ter certeza de que havia matado-o. Levantou-se e, relutantemente, aproximou-se do homem caído na pequena poça de sangue que havia se formado.
Finalmente, ficou frente a frente com Willian, recuperado totalmente da transformação de Vapula.
— Como… — perguntou em meio a arfadas e tosses — como descobriu…?
Devido a falta de força, o jovem se ajoelhou perante ao demônio, mas não se proibiu de responder:
— Que sua mancha… cof cof… estava em sua mão?
— Sim…
— Pensei que… por ler tantos livros e… usá-lo em batalha… sua mancha poderia estar na… sua mão…
Willian encarou o rapaz buscando se levantar e sorriu ironicamente.
— És sortudo… isso sim…
— Talvez… mas eu não derrotei Vapula sozinho…
— O quê?
— Você me ajudou, não é?
Procurando uma maneira de sentar, Willian se esforçava ao máximo, mas era nítido que sua força estava indo embora. Não só isso, sua pele tomava uma aparência envelhecida, como se o corpo estivesse apodrecendo com o tempo. Devido à fraqueza, manteve-se deitado, por mais que fosse desconfortável.
— Precisa de ajuda?
— Não precisa, jovem… não mereço ficar confortável… após tudo que causei…
João fechou sua expressão, preparado para se despedir de Willian a qualquer momento. Mesmo após tudo o que havia acontecido, da morte de sua melhor amiga até a queima da floresta e o assassinato de civis inocentes, o jovem pensava que, no final, aquilo não foi culpa de Willian. Além disso, os momentos que passaram na emissora antes de todo o furdúncio ocorrer perpetuavam em sua mente.
— Deve ser…
— Eu fiz tudo isso, não? — Questionou olhando em volta, observando toda a queima que rodeava o local. — Você deveria… ir embora…
— Willian…
— É aqui que morrerei… no caos que instaurei… é um fim digno para um demônio como eu, João… Não se preocupe comigo…
— Se… se eu pudesse…
— Não faria assim… né?
— É…
— Não se preocupe com isso… já passou…
— Alice, Neide, Ronaldo…
— Me perdoe, João…
Limpava seus olhos das lágrimas que estavam para cair, impedindo que Willian notasse seu abalo.
— Na verdade… eu tirei tudo… o que você tinha de bom… Não mereço o seu perdão…
— …Por que me ajudou se seu objetivo era me matar?
— Há diversos motivos… O principal deles, você deve saber…
— Ana, não é?
— Hahaha… sim… Se ela visse o que eu fiz aqui… nunca olharia para minha cara novamente…
— Ela não sabe da sua missão?
— Não… ainda bem que não…
— Entendo.
— Ver Vapula denegrindo a mulher que eu amava… também me convenceu a te ajudá-lo.
— As coisas que ele disse eram verdadeiras?
— Não, nunca faria coisas tão ruins com ela…
— Eu sei. Você é uma boa pessoa, Willian.
— Não sou…uma boa pessoa não aceitaria… fazer um pacto…
— Willian, quando lhe perguntei, não respondeu. Poderia me dizer o porquê de ter feito o ritual?
— Por que quer tanto saber?
— Para ter certeza de que você é uma boa pessoa…
O demônio se calou por um momento antes de dar sua resposta:
— Antes de Ana, teve outra mulher na minha vida na qual amei com tudo o que pude…
— Me conte sobre essa mulher.
— João… — Willian olhou ao redor mais uma vez — tudo está queimando, você deveria ir embora…
De repente, o jovem apontou seu revólver para o rosto do homem no chão.
— Uma arma descarregada não me dá medo, hahaha… Mas tudo bem, tentarei ser o mais breve possível…
⁂
Segunda-feira — 8 de outubro de 1945 — São Paulo
Um adolescente negro estava sentado em sua mesa da escola enquanto passava as páginas de um livro. Algo que era possível notar era a discrepante distância que ele mantinha dos outros colegas, que passavam o tempo todo o encarando com rancor e cochichando xingamentos ofensivos com seus amigos.
— Olha pessoal, o cabelo dele está mais sujo do que semana passada! — Um garoto ruivo gritou.
— Fala baixo, senão ele vai ouvir e vai bater em você — sussurrou uma menina loira enquanto cutucava a criança de cabelos avermelhados.
— Acha que tenho medo dele só porque parece um monstro? O que ele vai fazer? Jogar o livro em mim?
— Hahahaha, ele parece com um monstro mesmo! Com esse cabelo desarrumado e essa pele escura… Tenho certeza de que é sujeira! — falou outro garoto, também loiro, em alto e bom tom, para que o jovem recluso pudesse escutar.
— Olhem, pessoal! Vou mostrar que ele não vai fazer nada comigo! — o jovem ruivo arrancou algumas folhas de seu caderno, amassou-as e as atirou no garoto solitário.
— Verdade, ele nem reage!
— Vamos ficar jogando bolinhas de papel nele, vai que ele fica limpo!
Todos os alunos se puseram a rir enquanto atiravam mais e mais bolinhas de papel no adolescente, que não fazia nada além de continuar lendo o seu livro.
Sem que todos notassem, um professor velho, grisalho e alto entrou na sala. Observando a bagunça que acontecia ali, deu um berro:
— PAREM JÁ COM ISSO, A AULA VAI COMEÇAR!!!
— Ah, que droga!
— Peguem os seus livros da mochila e abram na página 52… Willian.
— O que foi?
— O que está esperando?!
Willian abriu sua mochila para retirar seus materiais, mas foi cortado pelo professor com uma bufada grosseira:
— Está se fazendo de idiota? Reúna essas bolinhas de papel do chão e jogue no lixo!
— Mas, o livro que o senhor…
— Você nem deveria estar estudando aqui, seu lugar é com os zeladores. Se não é capaz de jogar o lixo no lixo, então saia da sala!
O rapaz fechou seu livro lentamente e passou a recolher as bolinhas do chão, levando-as para a lixeira em seguida. No meio do caminho, foi capaz de ouvir de seu professor:
— É assim que as pessoas da sua cor deveriam estar fazendo, seu imundo.
— …
Caminhou de volta para o seu lugar e pegou seu livro da mochila. Tal livro continha diversos rabiscos, rasgos e desenhos pejorativos feitos pelos outros alunos, mas era tudo o que Willian tinha.
— Certo, certo. Alunos e Willian, abram na página que mandei, leiam o texto e respondam as perguntas da 1 até a 5.
— É para copiar o texto, professor?
— Se você for uma pessoa com o cérebro subdesenvolvido, sim…Entendeu, Willian?
— Sim, professor…
— Certo, então comece agora, e os outros tragam as respostas o mais rápido possível!
Passou-se um tempo quando Willian se levantou de sua mesa e entregou a atividade para o professor. Mesmo com o trabalho duplicado, foi o primeiro a terminar a lição, gerando um espanto no velho.
— Incrível… está tudo certo.
— …
Fechou o caderno grosseiramente e entregou para Willian, e logo em seguida, gritou:
— VOCÊS NÃO SÃO CAPAZES DE SUPERAR UM ANIMAL?! CADÊ SUAS LIÇÕES?! A AULA ESTÁ ACABANDO!!
Ouvindo a lição de moral e o desrespeito que o professor proferia para os alunos e a si mesmo, Willian não fez nada mais além de voltar para o seu lugar e ler seu livro de onde havia parado.
Horas depois, no término da aula, o jovem guardou seus materiais apressadamente e correu o mais rápido possível para fora da sala, assustando a todos.
Correu até finalmente chegar em seu trajeto: a biblioteca. Para ele, a biblioteca era como um local sagrado, onde encontrava tudo o que estava ao seu alcance. Não só isso, mas sempre havia alguém o esperando lá.
Entusiasmado, encarava todas as estantes se perguntando qual seria o próximo livro de sua lista que ele iria ler. Caminhou até uma delas e passou o dedo por todas as lombadas dos livros existentes ali, lendo seus nomes um por um. Ao chegar no final do corredor, deparou-se com uma mulher alta usando roupas sociais, um par de óculos finos e com seu cabelo longo amarrado num coque.
— Não me deu nem um “oi”, hein?
— Oi, Cassandra, tudo bem?
— Agora que você chegou, o dia está mais animado. Lembre-se de devolver o seu livro antes de pegar outro, ok?
— Certo.
— Estarei no balcão, até mais tarde! — A mulher sorriu alegremente vendo a felicidade estampada no rosto do jovem, que pouco ligou para as instruções da moça.
Cassandra era uma mulher inteligente que trabalhava na biblioteca daquela escola como segundo emprego. Por ser solteira e trabalhar praticamente o dia todo, era maltratada e muitas vezes repudiada pelos homens daquele lugar, que a enxergavam como alguém “fora dos padrões”. Ainda assim, não se deixava ser levada pelos insultos e agia de maneira profissional sempre que fosse possível.
Desde a primeira vez que se encontraram, tanto Willian quanto Cassandra perceberam que ambos eram diferentes das outras pessoas, e ali se formou uma amizade um tanto quanto diferente, visto que ela era quatro anos mais velha que o rapaz.
Após algumas horas na biblioteca, o jovem caminhou até o balcão com um livro novo em mãos. Cassandra, notando o avanço do garoto, fechou seu livro e deu toda a atenção possível para o “cliente”:
— E ai, garotão? Já escolheu o que vai ler?
— Não gosto quando me chama assim…
— É só um apelido carinhoso, deixa de ser chato.
— Pensei que você era profissional, já que trabalha em dois empregos…
— Ei.
— Desculpa…
Willian deixou o livro em cima do balcão e desviou o olhar chateado por ter falado algo que a magoou, mas surpreendentemente ouviu uma gargalhada logo depois:
— Estou brincando, idiota. Não precisa fechar a cara!
— Não sabe que a regra principal da biblioteca é não fazer barulho?
— Se você sair daqui e me deixar ler, garanto que não haverá barulho nenhum.
— Sairei quando você me der o livro.
— Hehehe…
Cassandra pegou o livro e começou a fazer algumas anotações numa caderneta que havia ali.
— Pode não parecer mas, eu gosto de você, Cassandra.
— O-o-o quê? Você ouviu o que disse?
— Sim? Eu ouvi, tem algo de errado?
— Willian, sou adulta e você não, não podemos ter uma relação as…
— Do que está falando? Eu não quero ter uma relação contigo!
— Shhh — a mulher calou a boca do jovem impossibilitando-o de falar — se continuar com essas coisas, serei demitida.
— A culpa é minha que você leva as coisas ao pé da letra? — indagou o jovem com a boca tampada.
— E qual outro sentido existiria para falar isso? — retrucou a mulher retirando sua mão.
— Depois, eu sou o idiota… Quis dizer que gosto da pessoa que você é. Hoje, os alunos e os professores ficaram me maltratando, xingando e agredindo sempre que podiam. Eles são pessoas ruins… mas você não é, entendeu?
— Ah, sim — respondeu entregando o livro para Willian. — Entenda, garotão…
— Ei!
— Deixe eu falar! Infelizmente, as pessoas de hoje em dia não são livres dos preconceitos. Também sofro por ser quem eu sou, e contigo é a mesma coisa.
— É…
— Mas o que importa, não é o que somos por fora, e sim o que temos por dentro. Conhecimento, empatia e amor são coisas que etnias, idades e gêneros serão incapazes de tirar de ti.
— …
— Essas são as maiores riquezas que podemos ter, e você, garotão, tem de sobra.
— …Em qual livro você leu essa frase?
— Me senti ofendida agora, sai daqui!
— M-me desculpa, tchau Cassandra — despediu-se o jovem correndo até a saída da biblioteca.
Antes que saísse de lá, ele se virou novamente para a mulher, que o observava de longe esperando sua ida. Com um sorriso singelo no rosto, disse antes de sair:
— Você tem muito dessas riquezas também, Cassandra… espero que possamos dividi-las juntos algum dia!
Willian saiu da biblioteca e seguiu em direção à sua casa. Mesmo que sofresse na maior parte de seu dia, Cassandra sempre estaria lá na biblioteca para alegrar suas tardes, e era esse o motivo que o levava a levantar da cama todas as manhãs.
Cassandra também sofria, talvez não tanto quanto Willian, mas ainda era uma vítima daquele tempo cruel, daquelas pessoas crueis. E o fato de que, mesmo em situações difíceis, não abandonavam quem eles realmente eram, era o que tornava cada um importante e especial para o outro.
Willian se encontrou em Cassandra, e o contrário também ocorreu, e por isso que, mesmo com vidas difíceis, eles ainda seguiam em frente. Porque eles tinham com quem contar.
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