Capítulo 38: Fim...?
Domingo — 17 de junho de 1957
Passaram-se quatro dias desde a morte de Willian.
João havia perdido completamente o contato com Thomaz — ao menos era o que pensava, visto que o detetive não atendia, não importava quantas vezes ele ligasse.
Sujo, fedorento, e só não era considerado um quebra-cabeça em pedaços porque fora tratado pelos médicos do hospital dias antes. Fora isso, não passava de um morador de rua, sem dinheiro, moradia ou comida.
Nos últimos tempos, o rapaz não pensava mais em derrotar os demônios que restavam, e sim em sua sobrevivência. Afinal, não há chances de vitória se estiver morto.
Com isso em mente, tudo o que procurava era um local para dormir, trabalhar, tomar banho, viver… Mas, quanto mais escuro o céu se tornava, mais seus dias de vida eram descontados.
Na manhã daquele dia, João lembrou que trabalhava em uma emissora de rádio meses antes de todo o inferno acontecer em sua vida. Também se lembrava vagamente do caminho até o local, então decidiu seguir para lá.
Mesmo que parecesse outra pessoa, era impossível não ser reconhecido pelos civis que passavam por ele. Independente do rosto sujo, não havia como negar que aquele era o mesmo que estampava as primeiras páginas dos jornais por algumas semanas.
“O Assassino do Condomínio” foi o apelido que recebeu, graças às redes de informação sensacionalistas. Era irônico o fato de que, após a revelação de sua inocência, essas mesmas redes se tornaram invisíveis, deixando toda a questão de sua imagem embaixo do tapete.
De modo geral, pouquíssimas pessoas sabiam do desfecho de toda aquela situação, e o que ficara marcado no jovem foi seu novo nome. No fim das contas, João não se importava com isso, apenas focava em seu objetivo atual: não morrer de fome e sede.
Perdeu-se diversas vezes pelas ruas do centro, mas finalmente encontrou seu antigo local de trabalho.
— “Essência de Chocolate”…
Caminhou lentamente até a porta transparente que, junto das janelas ao lado, revelava o interior bagunçado, sujo e empoeirado do ambiente. Fazia muito tempo que aquele lugar não era utilizado.
Tocou a porta e imediatamente percebeu que estava trancada. Repousou as mãos nos bolsos de suas vestes, mas não encontrou nada.
Fazia sentido que tivesse perdido suas chaves — afinal, foram meses longe da emissora.
Cogitou invadi-la, mas seu modo racional de pensar o impediu de cometer tal ato estúpido. Não queria aparecer nos jornais novamente, tampouco ser taxado de louco.
Suspirou roucamente, virou-se para trás e começou a andar por aí como se buscasse, mais uma vez, um novo lugar.
Enquanto o dia se transformava em tarde, João, a passos curtos e cansados, finalmente se lembrou de um local ideal para passar ao menos uma noite. Esse lugar tinha muita comida, água e provavelmente uma cama ou sofá para descansar. Porém, pensava que as chances de ser aceito lá eram tão grandes quanto a ponta de um alfinete.
Pensou por alguns segundos, quando lhe veio à mente um dos funcionários e amigos daquele local. Marco definitivamente compreenderia sua situação e o ajudaria, mesmo que precisasse mantê-lo como hóspede por um ou dois dias, não é?
⁂
— M-Marco… — João chamava pelo garçom enquanto adentrava o estabelecimento. Passava pelos clientes, infestando suas comidas com seu cheiro abominável e sua imundície, mas ele não se importava com isso. — Onde está você?
Com os sustos e gritos dos clientes, Marco e outros garçons apareceram para ver o que estava acontecendo. Ao notar o filho do antigo dono do restaurante, João cambaleou rapidamente até o rapaz, tentando falar com ele, mas foi impedido.
— Marco, preciso falar contigo!
— Saia daqui, seu verme! Está atrapalhando o nosso trabalho! — gritou um homem alto, magro e careca.
— Eu preciso falar com o Marco, me deem licença, por favor
— J-João… — o jovem se assustava com o que via: uma pessoa que admirava, bem na sua frente, suja, ferida e fazendo um grande alvoroço onde ele trabalhava.
— Marco, você precisa me ajudar!
— Vai embora logo, seu idiota! Não queremos um assassino asqueroso no nosso restaurante! — gritou outro garçom, desta vez ruivo.
Após essa fala, a clientela absorvia, aos poucos, as informações, até finalmente reconhecerem João. Aquele era o Assassino do Condomínio, bem na frente delas.
Os gritos que eram de raiva passaram a se tornar gritos de medo, e todos decidiram correr do restaurante para salvar suas vidas, mesmo que o jovem sujo não apresentasse qualquer ameaça.
Devido a todo esse escarcéu, o chefe e dono do restaurante finalmente apareceu. Notando tudo o que acontecia, avançou ferozmente com sua colher de pau para expulsar o ser nojento que forçava a passagem até Marco.
— Seu maldito! Além de assassinar pessoas, está acabando com a imagem do meu restaurante! Meu Deus! Saia daqui! — tentava espantá-lo enquanto o agredia com força com o utensílio de cozinha.
Mesmo após tudo isso, João não desistiu. Esforçava-se o máximo que podia para, ao menos, fazer sua voz chegar até o seu amigo:
— Eu tenho que te explicar tudo, Marco. Por favor, me ouça!
— João… você…
— Marco, estou te imploran…
— Saia daqui.
Ao ouvir essas palavras, João fraquejou e caiu no chão após um forte empurrão do garçom careca.
— Você expulsou toda a nossa clientela… vá embora, agora.
— M-mas…
— AGORA!!! — Marco esperneou com ódio.
João olhou ao redor e viu o restaurante vazio. Exceto por ele e os funcionários, não havia mais ninguém.
— Saia antes que decidamos ligar para a polícia e tirar você à força — concluiu o garçom ruivo.
O imundo, como se saísse de um transe, levantou-se ligeiramente e se virou em direção à saída do estabelecimento. Estava claro que não era mais visto como um ser humano.
— Desculpem-me.
Andou até sair do campo de visão dos empregados. Nesse meio-tempo, Marco caiu de joelhos no chão, triste, despejando lágrimas de dor e de raiva após toda essa situação, assustando os garçons, que correram até ele para acalmá-lo e ajudá-lo a se levantar.
⁂
A noite chegou. João continuou caminhando pelas ruas de São Paulo à procura de um lugar para dormir, mas não teve sucesso.
Sabendo que não conseguiria, decidiu deixar essa tarefa para o dia seguinte e planejou dormir em um beco próximo de onde estava. Obviamente, não era o lugar ideal para passar a noite, mas deduziu que seria melhor, já que talvez encontrasse algum papelão para usar como cobertor, além de achar que um local mais estreito seria quente o bastante para protegê-lo do frio.
Entrou ali e começou a vasculhar as caçambas e latas de lixo em busca de algum papelão grande o suficiente para cobrir seu corpo, mas era muito difícil. Em seguida, inspecionou melhor o local e percebeu que outros moradores de rua tiveram a mesma ideia que ele, visto que alguns já descansavam ali, completamente cobertos por papelões encontrados antes de sua chegada.
Como plano B, João reuniu algumas sacolas pequenas e grandes para utilizar como coberta, e parecia funcional o bastante (mais do que o papelão, diga-se de passagem).
Faziam dias, mas após esse plano secundário parecer viável, João finalmente sorriu. Ao menos poderia sobreviver a mais uma noite.
Era o que ele pensava — até levar um chute nas costas.
Caiu de cara no chão, lesionando fortemente o nariz, que passou a sangrar na hora. Virou-se e observou três homens. Por mais que não se lembrasse dos rostos deles, sabia que os conhecia de algum lugar.
— Q-quem são… — o rapaz foi interrompido por um chute na barriga, danificando seus órgãos internos e fazendo-o cuspir sangue.
— “Assassino do Condomínio”, não é? — Ao ouvir essa voz, João lembrou imediatamente das pessoas com quem estava se metendo: os três estranhos do mercado que estavam mexendo com Sarah meses atrás. No momento, quem falava era o pequeno líder deles, com sua cicatriz marcante no olho. — Você acha que é isso tudo, seu filho da puta?!
João recebeu mais um chute no estômago.
— Levanta ele, Jonas — ordenou ao careca parrudo. — Vamos brincar com ele.
Dito e feito, Jonas levantou o rapaz ensanguentado e o segurou pelos braços, deixando-o de frente com o líder.
— Isso é por ter matado o nosso “brinquedo” — o baixinho deu mais um golpe na boca do estômago de João, dessa vez com o punho. — E isso é por ter nos confrontado naquele dia — recitou, dando mais um ataque.
A situação continuou por alguns segundos, com João tendo seus órgãos e rosto detonados pelo líder do trio. Para finalizar, Jonas recebeu a ordem de jogá-lo no chão — e assim o fez.
Caído, ensanguentado, prestes a morrer… João não imaginava que acabaria ali, daquele jeito.
— Você tem sorte por eu estar bonzinho hoje. Se nos trombarmos novamente, será o seu fim. Seu lixo — terminou cuspindo no rosto do jovem de sobretudo e saindo dali com seus capangas.
João ficou no chão por alguns minutos. Por um lado, só queria esquecer aquilo tudo e dormir, mas, por outro, o que parecia ser um sono poderia ser sua morte iminente.
“Não posso… morrer aqui…”
Com todas as forças restantes, levantou-se para ir até um orelhão que ficava nas proximidades do beco. Demorou um bom tempo até que, com todas as dores e dificuldades, chegasse lá.
Tirou o cartão de Thomaz e sua última moeda do bolso, colocou-a no telefone público e discou, lentamente, os números.
Sua última saída era se encontrar com aquele detetive.
…
“Este número não está disponível no momento. Tente novamente.”
…
“Este número não está disponível no momento. Tente novamente.”
…
“Fim de tempo. Coloque outra moeda para continuar.”
— Hahaha… — deixou o cartão cair de suas mãos.
João olhou para trás, notando a praça onde sempre ficava.
— No fim, eu sempre volto até aqui… sempre…
Esgotando-se a cada passo que dava, seguiu até o banco. A madrugada estava prestes a começar, e os ventos gélidos ganhavam força o bastante para fazer as árvores dançarem.
João, próximo ao banco, tirou seu sobretudo sujo e manchado de tudo o que se podia imaginar. Após isso, deitou-se no assento e se cobriu com a vestimenta de seu avô.
— …
“Eu tinha feito uma promessa… mas não lembro para quem…”
…
“Perdoe-me… por não cumpri-la…”
⁂
Segunda-feira — 18 de junho de 1957
— João…?
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