Seu breve olhar de surpresa se desmanchou e uma expressão extremamente séria, enquanto encarava a névoa negra que se estendia diante dela. A cereja de um bolo de caos que se instalara em sua mente.

    — Que porra… tá acontecendo? — sussurrou para si em um tom seco, com a confusão latejando em sua cabeça.

    Primeiro a amnésia. Depois, a marca do pacto. E agora… uma infestação de zeladores?

    Aquelas pequenas criaturas não representavam um problema por si só. Mas, como moscas-varejeiras, que sempre vão ser vistas quando algo podre está por perto. Os zeladores não aparecem, naquela quantidade, se algo muito errado não estiver acontecendo.

    E há quanto tempo fazia desde a última vez que Zahara viu uma quantidade tão grande como aquela? Dez? Onze anos?

    O que poderia ter acontecido ali para que fosse aberto os portões do inferno?

    O corpo de Zahara respondeu muito antes de sua mente, levando sua mão instintivamente até o local da marca. Foi então que ela sentiu o olhar de Zarek, que continuava a encará-la desde o último momento.

    Ela o olhou de relance.

    “Foi ele que fez isso?”

    Por um instante, essa possibilidade passou como um lampejo.

    O seu comportamento estranho de ainda pouco, e aquele sentimento opressivo que a encheu, parecendo invadi-la através do selo. Por um momento parecia que Zarek estava prestes a perder o controle. Entretanto, a marca parecia ter voltado ao normal mais uma vez.

    Por sua vez, pela perspectiva de Zarek, as coisas também não estavam menos confusas.

    Ele simplesmente havia ficado em sua posição, até que sua consciência fora inesperadamente abduzida. E quando retornara, tudo já estava virado ao avesso.

    “Quanto tempo eu fiquei fora? Será que deu algo errado…?”, se perguntava, após ver o quanto a situação parecia ter mudado.

    Zarek balançou levemente a cabeça, tentando afastar o pouco de torpor que permanecera em sua mente. E quando levantou os olhos novamente para Zahara, dessa vez ela estava o encarando diretamente, com uma expressão ainda mais tensa.

    — Zarek… o que você fez? — A pergunta veio direta, fria… mas a entonação de sua voz carregava uma dúvida sincera.

    Ele piscou algumas vezes — ou algo parecido — após ouvir a sua indagação.

    — O que eu fiz…? — repetiu baixo, encarando Zahara. — Eu não fiz nada. Eu só fiquei… dentro da bolsa, como você mandou.

    Ela continuou o observando em silêncio por alguns segundos. E em resposta, Zarek também manteve seu olhar fixo nela. Como se tentasse convencela pela pura convicção.

    E realmente… ele não parecia estar mentindo.

    Porém, sua resposta só abriu mais questões na mente de Zahara.

    — Como eu… mandei? — murmurou, refletindo sobre a resposta de Zarek. Sequer esse fato parecia suficientemente claro em sua mente.

    Seu olhar se perdeu brevemente enquanto ponderava, até se voltar novamente para o vilarejo tomado pela anomalia.

    A questão era que, por mais que ele estivesse falando a verdade, isso não respondia nada. Ela apenas poderia abandonar a sua única premissa disponível até o momento.

    Ela permanecia no escuro.

    Zarek começou a observá-la com mais atenção.

    A confusão nos olhos dela… o jeito como os seus lábios se entreabriam em dúvida. O modo como seu olhar vagava, fixando-se em nada, mesmo diante do caos que engolia o vilarejo.

    Foi quando alguma coisa dentro dele fez clique.
    Um estalo profundo em algum lugar em sua memória.

    “Ela… realmente esqueceu…”, o pensamento veio rápido como uma epifania.

    As chamas em seus olhos tremeram levemente, oscilando como velas ao vento, até que sua voz rouca saiu firme.

    — Zahara…

    Ela piscou, como alguém despertando de um transe leve, e em seguida olhou para ele.

    A massa orgânica de Zarek, começou a se abrir devagar, separando-se como cortinas de fibras vivas. Até que, mais no fundo de suas entranhas, ela pode ver que havia algo guardado ali, cuidadosamente escondido entre as camadas pulsantes de seu corpo. Era um pequeno embrulho de papel.

    Ele continuou:

    — Você ainda lembra o que está fazendo aqui?

    Ela franziu o cenho, lançando-lhe um olhar desconfiado.

    — Fragmentos. Nada coeso.

    Ela estendeu a mão, pegando o embrulho com cuidado. Examinando o papel sem abrir.

    — O que é isso?

    — Você me pediu pra guardar… 

    Aquilo havia se tornado uma corrida contra o tempo.

    Os pés de Zahara batiam contra o solo com firmeza enquanto corria, com os olhos fixos no pequeno avião de papel que flutuava à sua frente. Como se guiado por um fio invisível, ele dobrava as esquinas e desviava das casas, levando-os em direção a origem de toda a confusão.

    Zarek, dentro da mochila, permanecia em silêncio, atento a qualquer outro deslize que Zahara pudesse apresentar.

    E Zahara, que não reduzia o seu ritmo para nada, gritava de indignação em sua mente.

    “Eu escrevi para mim mesma… para que eu pudesse lembrar… mas parece que isso já não vai servir muito.”

    Ela ainda sentia o peso do papel em suas mãos, embora ele já estivesse guardado.
    Apesar de ela reconhecer sua caligrafia naquelas palavras que deixou para si mesma. Assim que ela leu a mensagem… tudo o que veio foi uma névoa densa. Como se as lembranças que deveriam emergir tivessem sido arrancadas e, em seu lugar, só restassem vestígios corroídos.

    Zahara começava a sentir como se estivesse apenas seguindo instruções vazias.

    Mas, ao menos agora… ela tinha uma direção.

    O avião de papel virou bruscamente para a direita, e Zahara seguiu sem hesitar.

    Foi quando ele parou repentinamente, chocando-se com a porta de uma residência de aparência simples, antes de cair no chão com um leve giro, como uma folha vencida pelo vento.

    Zahara interrompeu o passo, ficando alguns segundos apenas encarando a casa à sua frente.

    Sem hesitar, ela se aproximou mais alguns passos, parando de frente para a porta e recolheu o amuleto rastreador com sua mão. Ele parecia já ter chegado ao seu destino.

    Zahara então bateu algumas vezes na porta, firme o bastante para ser ouvida, mas não agressiva, e esperou… por um minuto… dois.

    Porém, nada.

    O silêncio que retornava parecia mais denso do que deveria.

    Ela levou a mão até a maçaneta. Girou-a com cuidado e, para sua surpresa, sentiu a tranca ceder sem esforço.

    A porta se abriu com um rangido abafado, e Zahara entrou.

    Assim que cruzou o batente, uma estranha mudança tomou conta de tudo.

    O mundo externo pareceu sumir atrás de si, como se tivesse deixado algo importante para trás sem saber o quê. O som cessou completamente. Os ruídos externos, o assobio do vento, até o zumbido distante dos zeladores pareceu ficar abafado naquele lugar.

    Sua própria respiração soava mais alta do que qualquer outra coisa. As batidas do coração ecoavam em seus ouvidos como tambores abafados, e o som interno de sua cabeça a incomodava levemente. Era como se todos os seus sentidos tivessem se voltado para dentro. Como se tivesse acabado de dar um mergulho, tudo ao redor parecia distante, amortecido.

    Zahara franziu o cenho, fechando a porta atrás de si com cautela.

    Definitivamente, aquilo não estava normal.

    Enquanto isso, Zarek, ainda alojado em sua bolsa, manteve-se em silêncio. Para ele, a atmosfera do lugar não era apenas desconfortável, parecia emanar em uma aura opressiva que cutucava suas memórias.

    E foi então que aquilo voltou.

    Súbito, familiar e intrusivo.

    Um arrepio subiu por sua nuca, mesmo sem pele ou carne reais.

    Aquela sensação.

    Como uma sombra que se cola à espinha. Uma presença ofegante, faminta, que não se via, mas sentia-se espreitando bem atrás dos olhos.

    “De novo…”

    Por um instante, Zarek achou que era apenas um fragmento mal interpretado de suas memórias. Como um gosto estranho que se recusava a sair da língua.

    Mas era mais do que isso. Aquilo não vinha de dentro. Vinha de fora.

    Ele se contraiu levemente dentro da bolsa, tentando se afastar da sensação, mas parecia em vão.

    — Zahara… — sussurrou. 

    Mas se ela o ouviu, não demonstrou. Estava totalmente focada.

    Foi quando, enquanto ela avançava pela sala, parou abruptamente ao ver algo sobre a mesa de centro.

    Era o seu chapéu. Ele permanecia inconfundível, mesmo depois de tudo, repousando ali, como se estivesse esperando por ela.

    “Então foi aqui que eu esqueci… “

    Zahara avançou a passos cautelosos, estendeu a mão e o pegou, colocando-o de volta na cabeça com um movimento automático.

    “Quase eu perco você”, pensou, enquanto dava um leve sorriso de canto de lábios, sentindo o caimento perfeito se encaixar no topo de sua cabeça.

    E então continuou a avançar pelos cômodos, com seus olhos buscando por algo mais.

    Ela averiguou cada cômodo abrindo suas portas com muito cuidado. Passou pelos dois únicos quartos e pelo armazém. Porém… nada. Nenhum sinal de qualquer presença.

    Ela parou no centro do corredor, inspirando com força.

    “Onde você está?”, murmurou para o silêncio.

    Seus olhos desceram para o pequeno avião de papel ainda em sua mão, e então, começou a desdobrá-lo, transformando-o de volta em uma folha comum. No seu centro havia um grande círculo, adornado com alguns escritos, cada um deles posicionado em um dos cantos externos do círculo maior.

    Ela ergueu a folha mais uma vez, encarando-a, e então, como antes, ela sussurrou o encantamento.

    — Via Redri Frater Par

    E então, como se uma brisa atravessasse o cômodo, a folha foi arrastada de seus dedos e começou a planar suavemente pela casa.

    Zahara a seguiu com o olhar, e depois com o corpo, caminhando em silêncio.

    A folha deslizou pelo corredor, se arrastando levemente pelo chão até passar pela porta do quarto direito. Um dos quais Zahara já havia verificado.

    Ela parou diante de sua entrada mais uma vez.

    Permanecia tudo normal, na medida do possível.

    O quarto estava limpo, sem sinais de luta, assim como o restante da casa.

    Zahara procurou pela folha de papel, com seus olhos vasculhando o chão até encontrá-la, caída ao lado da cama, já imóvel.

    Ela se aproximou e se abaixou para recolhê-la.

    Foi então que… assim que seus dedos tocaram o papel, sentiu algo pegar em sua mão.

    Um arrepio cortou sua espinha como uma lâmina fria. A sensação era sutil, quase ilusória. Como se uma miragem tivesse se materializado apenas por um instante, mas o bastante para congelá-la por dentro.

    Seus olhos se arregalaram.

    E então, como um ruído no ar, como estática que se recusa a se dissipar, algo, ou alguém, começou a se formar ali.

    Não surgiu de maneira abrupta. Estava ali o tempo todo, talvez, apenas oculta aos olhos até agora.

    Um vulto sutil. Um sussurro de presença que, de repente, fez sentido.

    Zahara piscou, incerta se o que via era real.

    Ali, encolhida ao lado da cama, estava uma mulher. Um ser humano.

    Seus olhos azuis, enormes e vívidos, afundavam sob olheiras profundas. Os cabelos negros pareciam sem brilho, opacos como carvão gasto. E a sua pele, pálida e fria, dava a impressão de que a vida havia sido drenada. Como se alguém tivesse arrancado dela toda a cor… toda a alma.

    Seu nome… quase escapou dos lábios de Zahara, mas não havia memória a que pudesse se agarrar.

    Ela estava quase morta…

    Seu corpo estremecia em espasmos curtos e involuntários, e cada respiração era dada com um esforço hercúleo. Ela não tinha força para falar, muito menos para se mover ou erguer a cabeça. Estava quebrada por dentro e por fora.

    Ainda assim… seus olhos encontraram os de Zahara, carregando algo difícil de descrever. Dor, medo, desespero… talvez tudo isso ao mesmo tempo, misturado em um silêncio que gritava.

    Zahara estendeu sua outra mão e agarrou o punho da mulher com força.

    — Eu te encontrei — disse, com sua voz firme.

    A garota não respondeu. Seus olhos apenas permaneceram fixos, com seus lábios entreabertos, mas sem som. 

    Zahara apertou com mais força, sentindo os ossos frágeis sob seus dedos. Ela podia sentir o quão fria aquela pele estava. 

    — Certo… vamos acabar logo com isso… — murmurou.

    Atrás dela, dentro da bolsa, Zarek se encolhia cada vez mais. A sensação obscura que o assombrava antes, agora parecia intensificar. O gosto amargo voltava à sua consciência, mais denso, mais presente. E algo dentro dele dizia que aquilo que o sondava nas sombras, estava se aproximando cada vez mais.

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