Zarek se recompôs o mais rápido que pôde, enquanto via através da poeira a criatura escoar para fora da casa pela mesma fenda que havia sido aberta pelo impacto.

    Ele até sentiu o impulso de acompanhá-la, mas travou no mesmo instante, olhando em direção a Zahara, ainda adormecida no chão.

    “Ah… o que eu faço agora…”

    A dúvida veio seguida de um dilema ainda maior.

    Aparentemente, devido ao estrondo do impacto, alguns moradores do vilarejo acabaram sendo alertados e Zarek começou a ouvir suas vozes reverberando a alguns quilômetros da casa.

    “Certo… agora sim… isso não parece bom”, observou Zarek. 

    Ele deslizou rapidamente para o corpo de Zahara e subiu até o seu peito, encarando-a nos olhos, que apesar de estarem entreabertos, passavam longe de transmitir qualquer alusão a um estado de lucidez.

    — Zahara! — chamou-a em voz baixa, quase como um sussurro. — Zahara! O que eu devo fazer agora?

    Porém, sem resposta…

    E o som dos aldeões só ficava cada vez mais forte.

    — Por ali!

    Zarek estremeceu levemente, sentindo a tensão do momento pesar sobre ele.

    Qual deveria ser a decisão a ser tomada… o que ele deveria fazer?

    Não…

    O que Zahara exigiria dele em uma situação como essa?

    Sem muito tempo para pensar, ele apenas seguiu os seus instintos.

    “Não ser visto… certo…”

    Em um instante, o seu corpo começou a transmutar.

    Assim como da última vez… ele só precisava encaixar as alavancas nos lugares certos, se atentar ao centro gravitacional, fortalecer os membros de apoio e dar suporte às regiões que seriam responsáveis por carregar a maior parte do peso, dessa vez… com um retoque especial para uma bagagem extra.

    As suas fibras se amontoaram e calcificaram, em seguida acrescentando mais camadas de fibras por cima dos ossos. Primeiro a coluna vertebral, seguida dos membros inferiores e suas respectivas musculaturas, e tudo começou a ganhar forma, fio sobre fio, como se ele estivesse sendo tecido pelas mãos de um deus profano.

    Por fim, o som bizarro dos ossos se retorcendo e estalando, como se os membros estivessem se ajustando ao seu devido lugar, preencheu a sala por um instante, até amenizarem.

    Zarek torceu seu pescoço para a esquerda…

    E depois para a direita, sentindo a força de seus músculos.

    E então… ele se curvou até o chão e começou a se arrastar por debaixo da lombar de Zahara, a colocando sobre as suas costas, com a ajuda de alguns tentáculos que saíram de sua juba, e a prendeu com firmeza.

    Quando estava prestes a dar o primeiro passo, um som rouco saiu da boca de Marie, ainda atordoada no chão, o fazendo paralisar no lugar.

    Zarek virou levemente o rosto.

    Seus olhos, por instantes breves, pareciam tentar focar nele e os lábios se moviam em gestos fracos… mas nenhuma palavra se formava por completo.

    “Uh… Ela me viu?”, a dúvida veio breve.

    Mas ao observar com mais atenção, percebeu que não. Seu olhar não o alcançava de verdade. Apenas vagueava perdido, como se estivesse tentando encontrar o mundo ao redor, mas sem conseguir se agarrar a nada.

    Ela ainda estava fora de si.

    Zarek inclinou a cabeça, curioso.

    Em sua expressão, ele pareceu encontrar uma nuance a qual ele já havia presenciado em algum momento. Algo que ele não sabia discernir se era medo… tristeza… ou uma mistura dos dois. Era uma expressão que parecia se esvaziar de si mesma.

    Era a mesma expressão que aquela pequena humana esboçou ao se deparar com ele na floresta, antes de fugir dele.

    Isso o incomodou vagamente…

    Mas por que o incômodo…?

    Ele olhou para ela por mais alguns segundos, antes que o seu tempo chegasse ao limite.

    E então, se virou… e com um impulso se lançou com Zahara pela fenda, para fora dali.

    Assim que saiu do outro lado, parou por um instante para se localizar.

    A noite estava em seu auge. Nuvens espessas cobriam o céu, ocultando por completo a lua, não deixando quase nenhuma luz natural. As lamparinas do vilarejo, por conta do avançar das horas, já haviam sido apagadas, mergulhando ainda mais a vila na escuridão.

    Por sorte, isso não era um impecilho para Zarek, que ainda conseguia ver claramente.

    Zarek olhou ao redor, cauteloso.

    Ele havia saído na parte da frente da residência e ao lançar os olhos para os dois lados, avistou diversas casas enfileiradas, com becos estreitos entre elas e ruas cobertas por uma névoa espessa.

    Foi então que, em meio à bruma, ele avistou a luz de algumas tochas casado ao som dos passos que já estavam praticamente em seu encalço.

    Zarek as encarou por um breve instante.

    — Ei! Você viu aquilo?! — uma das vozes gritou, em tom agudo e apreensivo. 

    Zarek correu, se mantendo rente aos muros das construções, até encontrar o primeiro beco à sua direita. E ali mergulhou, ocultando-se na sombra densa que inundava aquele canto.

    Ficou em silêncio, apenas ouvindo… esperando a próxima chance de avançar.

     — O que foi que você viu? — uma segunda voz perguntou.

    — Eu… eu achei que tinha visto duas tochas….logo ali do lado.

    — Uma tocha? — a outra voz replicou, em tom de dúvida.

    Seguiu-se um breve silêncio, com apenas os sons abafados dos passos pisando na terra úmida. E Zarek se manteve espreitando no canto do beco.

    Foi então que ele seguiu silenciosamente rumo à direção oposta de onde viera.

    Ao alcançar o outro extremo, lançou um olhar para ambos os lados da rua, buscando qualquer sinal de movimento. E, em seguida, avançou rente às paredes, evitando o centro da via, e logo dobrou por uma nova viela estreita.

    Enquanto se aproximava da saída desse novo beco, se deteve rapidamente, ao avistar mais aldeões passando bem diante da entrada. Imediatamente recuou, e se escondeu novamente na escuridão, esperando o momento certo para seguir.

    Para o seu azar… essa cena continuou a se repetir, conforme vagava de beco em beco.

    Ele se abaixou dentro de outro, quando mais dois aldeões surgiram.

    — Que que foi aquele barulho a essa hora da noite? Será que são ladrões?

    — O que a gente vai fazer se realmente for algo do tipo? Cara… você não acha melhor a gente pegar os cavalos e pedir ajuda?

    O segundo homem parou diante da entrada do esconderijo de Zarek, aguardando uma resposta, mas o companheiro seguiu em frente, como se não tivesse ouvido.

    — Ei, você me ouviu? — insistiu, correndo atrás do outro.

    Zarek aproveitou que eles seguiram seu rumo e correu para o próximo beco. Foi então que, ao longe, uma voz surgiu no meio do breu:

    — Ei! Alguém! Precisamos de um curandeiro! Tem uma pessoa lá!

    Zarek se encolheu contra a sombra do beco, escondendo-se atrás de um barril onde a escuridão era mais densa.

    — Uma pessoa?! — exclamaram outras vozes próximas.

    Logo depois, passos apressados ecoaram. Várias figuras correram diante da entrada do beco onde Zarek estava oculto, seguindo na direção do tumulto.

    Ele se manteve imóvel, quando atrás de si, ouviu um suspiro fraco escoar por entre os lábios de Zahara.

    Zarek olhou de relance.

    “Ela ainda está desacordada…” pensou, enquanto seus olhos fitavam seu rosto pálido. “O que aquele bixo fez com você?”

    Sua mente então tropeçou nas memórias de instantes antes, quando a criatura soltou o parasita sobre Zahara. Lembrou-se de sua própria reação instintiva: a cabeçada certeira. A entidade o segurando, enquanto sua cabeça era invadida por uma sensação de formigamento, quase como se alguém tocasse sua mente por dentro.

    Ele simulou um suspiro.

    A lembrança da criatura fugindo, esgueirando-se pelo buraco aberto na parede da casa, o perseguiu como uma dúvida incômoda.

    “Eu me pergunto se realmente foi a escolha certa deixar aquela criatura fugir daquela forma…”

    Seus olhos voltaram novamente para o rosto sereno de Zahara, ainda mergulhado na inconsciência, e a encarou por mais alguns segundos, como se buscasse ali uma resposta.

    Mas não encontrou nada além do silêncio.

    “Hmmm… nesse momento… eu vou me dar o arbítrio de escolher o de sempre. E optar pela minha autopreservação.

    Ele voltou a olhar para frente e analisou o caminho.

    Aparentemente, estava liberado. E caso conseguisse correr em linha reta, ele já conseguia avistar a saída do vilarejo a alguns metros de distância. Dali… era só um caminho livre pelo campo até alcançar a floresta 

    Ele prendeu Zahara com mais firmeza em suas costas, dando uma última olhada pelas redondezas para confirmar se realmente não havia nenhuma testemunha.

    E então… sem mais perder tempo, Zarek deu um salto e disparou rumo à saída da vila, o mais rápido que pôde.

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