— Tssss… — Evan chiou de dor, rompendo o silêncio gélido do quarto.

    Ele acordara de súbito e seu coração parecia bater irregularmente, como se tivesse acabado de acordar de um pesadelo. Porém, o que o incomodava não era uma paralisia noturna, mas uma sensação pulsante sob sua pele.

    A dor se intensificou levemente no momento em que ele se arrastou sobre a superfície da cama, sentando-se à beira, com seu corpo ainda entorpecido pelo sono.

    Ele tateou o próprio braço, deslizando seus dedos com cuidado, enquanto sentia algo úmido na superfície de sua carne.

    E então ergueu o braço, iluminando-o sobre a luz noturna que invadia o cômodo pela brecha da janela. Com os olhos semiabertos, que demoraram a se adequar à escuridão, ele viu.

    Marcas abertas que se espalhavam em espirais avermelhadas, como pequenas rosas deformadas, desabrochando diretamente na carne de seu braço. A pele ao redor estava visivelmente inflamada.

    Ele tocou uma delas com a ponta dos dedos, sentindo o ardor latejante.

    — Ahhhh… deusa… — murmurou de dor — o que foi dessa vez…

    Ele se inclinou sobre uma cômoda à sua direita e abriu uma gaveta, começando a vasculhar o interior às cegas, afastando pequenos objetos, até tocar algo frio.

    Um frasco de vidro.

    Ele o puxou para fora, analisando-o na luz ambiente.

    Estava vazio.

    Evan suspirou.

    Em silêncio, Evan pegou o lençol e o envolveu ao redor do corpo, cobrindo-se até o pescoço, com as mangas longas de sua camisa ocultando os braços feridos. E então caminhou até a porta, girando a maçaneta com lentidão.

    A madeira rangeu suavemente e ele espiou o corredor com cautela. Como quem teme ser visto.

    Mas somente as luminárias de pedras brancas do corredor pulsavam com brilho tênue nas paredes. Um frio habitual, noturno, pairava no ar.

    Ele cruzou a porta, com seus passos ecoando baixinho pelo corredor, enquanto intensificava o cuidado para não gerar nenhum ruído maior. Existiam outras entradas ao longo das paredes, que protegiam os aposentos onde os outros colaboradores da biblioteca ainda dormiam.

    Logo, ele se aproximou de uma grande passagem que se erguia à sua frente. Uma arca larga que dava acesso direto ao salão da Biblioteca das Luzes.

    Assim que a cruzou, o silêncio começou a ser rompido por vozes distantes, reverberando entre as estantes de madeira que se erguiam.

    — Parece que foi um pedido direto do Sumo Sacerdote… — dizia uma das vozes. — O mestre Holvitr estava muito sério…

    — Sim… e você viu aquilo… — outra voz surgiu, dando continuidade à conversa — ele entregou um pergaminho com o selo real para aquele comandante. E todos se retiraram rapidinho.

    — O que você acha, Avadiel?

    — … — Um silêncio se estabeleceu brevemente.

    — Senhor Avadiel… — o murmúrio de Evan saiu de seus lábios como um suspiro.

    Ele seguiu o som a passos arrastados, até que, mais adiante, próximo ao centro do salão, avistou os autores da conversa.

    O primeiro, de barba grisalha e bem aparada, era o Mestre Avadiel. Um dos responsáveis de segundo grau pela gestão da Biblioteca das Luzes. Ao lado dele, porém, havia outros três homens, também de idade avançada.

    Eram todos escribas de segundo nível, assim como Avadiel. Eles trajavam batas claras que desciam dos ombros até a metade do tórax, adornadas por ombreiras azul-petróleo com fios dourados que pendiam discretamente. O restante do traje consistia em túnicas longas em tons profundos de azul. No peito, todos portavam um medalhão, uma insígnia em forma de um círculo adornado por quatro losangos, um em cada ponto, onde todos apontavam para o centro.

    Sem chamar atenção, Evan encostou-se levemente à lateral de uma das estantes com os seus dedos apoiando-se nas lombadas dos livros.

    Avadiel, por fim, quebrou o silêncio, deslizando os dedos pela barba.

    — Isso provavelmente aconteceu devido à insistência deles em acessar a área restrita. Forçaram demais uma porta que não costuma ser aberta.

    — Realmente… tem isso mesmo — começou um dos outros três, mas foi interrompido por outro escriba, de semblante mais fechado.

    — Há documentos ali que foram isolados pela própria família real. Mas estamos falando de uma aparição, não estamos? — Seus olhos desviaram brevemente para Avadiel. — A Ordem não poderia simplesmente localizar o documento e disponibilizá-lo? Assim, a guarda poderia seguir com suas buscas sem ter um acesso direto a todos os documentos.

    Avadiel prosseguiu, agora com um tom mais velado:

    — Se aqueles documentos foram isolados, foi por um motivo claro… — disse, baixando ligeiramente o olhar. — Cada um deles representa algum nível de ameaça. Seria ingênuo pensar que poderiam simplesmente ser disponibilizados, mesmo diante de uma ocorrência incomum. É muito mais conveniente e seguro que a Ordem, que convenhamos… é praticamente um braço da própria Coroa, se posicione como responsável e resolva o problema.

    A conversa entre eles foi perdendo o ritmo, como se cada um estivesse preso nos próprios pensamentos. Um dos escribas, o mais calvo, mexeu levemente a cabeça, como por reflexo, e, ao olhar de lado, percebeu uma figura próxima à estante. Seus olhos se apertaram, e a expressão de leve surpresa foi o bastante para chamar a atenção dos outros.

    Quase ao mesmo tempo, os demais também viraram o rosto na mesma direção.

    As expressões mudaram.

    Alguns meramente tentaram esconder, olhando para outros lados, e outros deixaram evidente um certo desconforto.

    Menos Avadiel.

    Ele manteve o semblante firme com seus olhos fixos em Evan, que retribuiu o olhar por um breve instante, antes de esquivar-se.

    Sentiu-se pequeno… uma presença inconveniente.

    Curvou-se brevemente, murmurando:

    — Perdão…

    E então virou-se, arrastando os pés de volta para seu quarto, como uma sombra.

    Alguns sussurros ecoaram pelas suas costas.

    — Esse garoto… ele estava ouvindo a gente?

    — Não é meio arriscado deixar ele andando por aí, Avadiel? Ele é responsabilidade sua…

    Ao alcançar o seu aposento, ele cruzou a porta e, um pouco antes de fechá-la totalmente, uma mão a segurou.

    Ele ergueu o olhar.

    Avadiel estava ali, parado, observando-o com sua expressão impassível. E Evan sentiu o peso do silêncio sobre si mais uma vez.

    — Eu… não queria me intrometer… — disse, quase como um sussurro.

    Avadiel, porém, apenas pareceu ignorar as suas desculpas e mudou de assunto:

    — Aconteceu algo?

    Evan hesitou, desviando os olhos para seus próprios braços, enquanto puxava suas mangas.

    — São… as úlceras… de novo. O medicamento acabou e fui verificar se não tinha algum na dispensa.

    Houve uma breve pausa.

    Os olhos de Avadiel se direcionaram por um breve momento sobre as feridas, mas logo retornaram para Evan.

    — Como aconteceu?

    — Eh… na verdade, eu já acordei assim… senhor.

    Avadiel o encarou por alguns segundos.

    — Acho que você não vai conseguir pegar nada na dispensa agora. Tem ideia de que horas são?

    Evan encolheu levemente o pescoço entre os ombros, enquanto um sorriso meio angustiado começava a se esboçar em seu rosto.

    Foi quando, em silêncio, Avadiel se aproximou e estendeu a mão sobre o braço de Evan, recitando um encantamento.

    — Zah hen al vitae.

    Evan olhou para a energia pulsando brevemente nas mãos Avadiel em forma de um brilho suave que envolveu seus braços. Como resultado, as úlceras começaram a fechar, como se o próprio tecido da carne estivesse se reconstruindo, lhe fazendo sentir uma sensação de alívio.

    No entanto, antes que se fechassem por completo, veio uma dor aguda, e as úlceras voltaram a se abrir. O alívio que ele sentira desapareceu rapidamente, deixando no lugar uma sensação de agonia.

    Ele puxou a respiração, tentando disfarçar a dor, mas foi praticamente inútil.

    — Eu sempre me impressiono com a rapidez com que você se cura… — murmurou Avadiel, mantendo o olhar sobre o braço do garoto por mais alguns segundos. — Mas parece que sua doença está agindo, então não vai deixar curar.

    Ele então levou a mão até o pescoço e retirou o cordão que usava, estendendo-o a Evan.

    O garoto observou o pingente por um breve instante, hesitante, antes de aceitá-lo com cuidado.

    — Pela manhã, provavelmente o processo de reulceração já vai ter cessado. Enquanto isso… tente orar. A deusa Lumena pode olhar por você e amenizar sua dor… se tiver sorte, talvez até um milagre aconteça.

    Avadiel virou-se para partir, mas antes de deixar o cômodo, deslizou a mão sob a túnica e retirou um pequeno frasco de vidro, onde uma poção de malva repousava em tons suaves. Sem dizer mais nada, entregou a Evan o seu medicamento habitual e saiu pelo corredor em silêncio.

    Evan o observou por um momento, espiando pela fresta da porta entreaberta enquanto a figura do escriba desaparecia lentamente na penumbra do corredor. Só então fechou a porta com cuidado.

    Ele levou o frasco à boca e bebeu o líquido amargo de uma vez, com uma leve careta, antes de se arrastar até o lado da cama. Com dificuldade, se encolheu ali, em posição fetal, sentindo o chão de pedra fria aliviar parcialmente a dor constante das úlceras.

    Apertou contra o peito o pequeno amuleto de prata, talhado com o símbolo da Luz Divina, e fechou os olhos, recitando em sussurros a sua oração.


    Zarek adentrou a floresta o mais rápido que pôde. Porém, ainda assim, não interrompeu o passo… ele seguiu o caminho, buscando a área que Zahara havia delimitado para ele como um lugar seguro.

    A trilha de terra.

    Ele parou por um instante.

    “Para qual direção agora?”

    Seus olhos correram pelos troncos das árvores e pelos arbustos. Tudo parecia igual.

    Depois de alguns segundos olhando para um lado e para o outro, ele apenas seguiu em frente, com o som dos galhos partindo sob suas patas.

    Ele correu por mais alguns minutos pela floresta densa, aproveitando o fato de já ter se habituado ao terreno para se esquivar dos obstáculos pelo caminho.

    Foi quando, mais adiante, ele começou a sentir que a densidade da floresta começou a reduzir, com a vegetação ficando mais esparsa conforme ele avançava. Então, ele inconscientemente aumentou o ritmo.

    Gradualmente, o campo de visão à sua frente começou a dar espaço para ele conseguir ver o céu além das árvores.

    Até que, de repente, a floresta acabou, dando lugar a um penhasco, que, diante dele, descia abruptamente em direção ao mar.

    O oceano se estendia vasto e escuro, com ondas longas e pesadas colidindo contra os rochedos abaixo.

    Ele parou rapidamente, com suas garras arrastando no chão.

    Foi nesse instante que as nuvens acima se abriram, e a luz da lua vazou pelas fendas no céu, caindo sobre o mar como um véu e o brilho suave refletiu na superfície das águas. O contraste com a escuridão tornou a cena quase onírica.

    Ali, parado na beira do abismo, aquele cenário o envolveu brevemente.

    “Woahh…”

    Ele quase perdeu o foco… mas um ruído que saiu da boca de Zahara o fez voltar a si no mesmo instante.

    Ele virou o rosto para olhar para ela.

    Sua boca se movimentava levemente, como se ela tentasse dizer alguma coisa.

    “Ela está acordando?”

    Ele se apressou em colocá-la no chão.

    Andou em direção a uma árvore e, com ajuda de seus tentáculos, ele a escorou no tronco. E então começou a encará-la.

    — Zahara? — sussurro.

    — Hn… as… nn… — balbuciou algo indecifrável.

    Zarek inclinou sua cabeça, se aproximando mais alguns centímetros de seu rosto.

    Foi então que reparou.

    Antes, ela parecia apenas adormecida. Mas agora… havia algo diferente. Um leve franzir nas sobrancelhas, como se algo estivesse a incomodando.

    “Um sonho ruim? Será que é seguro acordá-la agora?”, se questionou.

    Com cautela, um de seus tentáculos surgiu de sua juba e moveu-se até alcançar o rosto de Zahara, tocando sua bochecha levemente.

    — Ei, Zahara… você está bem? Consegue acordar?

    O tentáculo continuou a importuná-la com delicadeza, pressionando um pouco mais, tentando trazê-la de volta.

    Foi quando, de sua boca, uma palavra abafada e curta emergiu.

    — Pai…

    Zarek piscou, surpreso.

    — Pai? — ele repetiu, quase sem pensar.

    Mas assim que a palavra escapou, os olhos de Zahara se abriram num estalo.

    No instante seguinte, seus dedos se moveram como uma resposta instintiva de defesa, e fios surgiram e se lançaram contra Zarek se emaranhando sobre os seus membros.

    Antes que ele pudesse reagir, foi puxado bruscamente para trás. Seu corpo foi arrastado por alguns metros e, num movimento contínuo, os fios o envolveram e o prenderam no chão, como se quisessem mantê-lo a uma distância segura dela.

    — Ah… — Zarek soltou um grunhido baixo, mas não lutou. Apenas se concentrou nela.

    Zahara já estava de pé.

    Não parecia em recuperação. Sequer parecia que estava desmaiada há um instante atrás.

    Ela bateu as mãos em seu vestido, limpando a areia e a terra acumulada, e então olhou em direção a ele.

    Seus olhos brilhavam em uma intensidade voraz.

    — Zahara, sou eu… Zarek! — ele tentou o diálogo.

    — E por que não seria? — ela respondeu no mesmo instante. — Você acha que conheço outras aberrações como você?

    — Ah… — ele gemeu novamente.

    — A questão é… o que você pensa que está fazendo?

    Zahara desviou o olhar brevemente, varrendo a paisagem ao redor com os olhos, como se estivesse mapeando suas coordenadas. Até que seus olhos se fixaram novamente em Zarek.

    Ela avançou alguns passos.

    — Onde nós estamos?

    Zarek se remexeu um pouco entre os fios, soltando um suspiro.

    — Zahara… você esqueceu de novo…?

    Houve um pequeno silêncio.

    Ela piscou lentamente.

    — Esquecer? — murmurou, com um leve franzir de sobrancelhas. — Eu realmente… não lembro como cheguei aqui. Mas sei onde estamos… eu quero saber o porquê estamos aqui e não em Kessan.

    “Parece que ela não esqueceu tudo, então…”, piscou, enquanto refletia.

    Seu olhar se estreitou, e ela deu mais um passo à frente.

    — E a resposta?

    — Eu te trouxe até aqui…

    Zahara levantou uma sobrancelha.

    Zarek continuou:

    — A criatura lhe atacou e, quando vi, você já estava no chão. Eu não sabia o que fazer. Então, eu só… te peguei… e corri. Na verdade, eu queria voltar para a cabana. Mas… eu não achei o caminho.

    O semblante de Zahara se endureceu por um instante.

    — Espera… você disse, criatura? O parasita? Eu não consegui matá-lo? — Sua voz se intensificou a cada pergunta.

    — Parasita…? — murmurou… lembrando da cena da criatura soltando um de seus braços sobre Zahara — Ah… sim… teve isso também. Mas parece que o maior consegue criar mais dos próprios braços… então, acho que apenas se livrar deles não vai adiantar.

    — Maior? — repetiu Zahara, com sua voz se elevando novamente.

    Sua testa se franziu enquanto desviava seu rosto para o lado, com seus olhos correndo pelo chão, de um lado para o outro.
    Até que uma dúvida urgente a fez voltar para Zarek com seus olhos levemente arregalados.

    — E a mulher? A Marie…? Como ela ficou?

    — A mulher? Ela parecia viva quando eu saí de lá. Parece que os aldeões a encontraram.

    Zahara avançou mais um passo.

    — Aldeões?

    Parecia que, conforme Zarek ia falando mais, ao invés de elucidar suas dúvidas, mais e mais as coisas iam ficando problemáticas.

    — O que eles foram fazer lá? Eles viram você? E a criatura?

    Ela começou a inundá-lo de questionamentos.

    — Ah…

    Ele travou… eram muitas perguntas…

    — Então… isso foi meio que é minha culpa… — começou, reduzindo um pouco a voz, quase como se quisesse que ela não ouvisse tão bem.

    Em resposta, Zahara só ficou mais apreensiva, estreitando os olhos para ele.

    Zarek continuou:

    — Quando você estava inconsciente, a criatura… ela tentou atacar você. Eu não sabia o que fazer, então… eu só fui e interferi.

    Ele hesitou por um segundo, continuando logo em seguida.

    — Eu ainda tentei falar com ela… mas ela não parecia ser do tipo que fala, e então eu meio que dei uma cabeçada em um dos braços dela. Mas aí ela ficou… bem brava. Tipo, muito… e então ela me atacou.

    — Atacou você? — Ela arqueou as sobrancelhas.

    — Hum — Ele assentiu — Mas foi aí que aquele negócio estranho… você sabe… que eu estava sentindo… pareceu me encher de alguma coisa. E… eu perdi um pouco o controle do corpo e acabei revidando.

    Zahara manteve os olhos fixos nele.

    — Aí eu a acertei… e acabei arremessando ela na parede.

    Zahara arregalou um pouco os olhos.

    — E aí você quebrou a parede e chamou a atenção do restante dos moradores? — completou enquanto massageava a têmpora, já conseguindo montar as peças do quebra cabeça.

    — Sim. Quer dizer… a criatura também fugiu na ocasião — Zarek desviou o rosto para o outro lado. — Mas não foi a parede inteira… foi… tipo… um pedaço grande.

    Zahara o encarou, incrédula.

    — Então, só para recapitular: você deixou a criatura fugir, abriu um rombo na parede da casa, abandonou a cliente e ainda colocou a vila inteira em alerta?

    — Hm — assentiu Zarek, de maneira quase automática.

    — Incrível… — soltou Zahara, como um desabafo.

    Ela respirou fundo e virou de costas, tentando organizar os próprios pensamentos.

    E enquanto se afastava, Zarek baixou os olhos para os fios que o enroscavam, verificando o quanto eles realmente estavam limitando os seus movimentos.

    Ele começou a movimentar uma de suas patas que estavam presas ao chão, mas ela apenas tremia no mesmo lugar.

    Então, sem hesitar, desfez sua forma.

    A estrutura da pata se desmanchou e os fios que a prendiam deslizaram, perdendo sua tensão.

    Zahara sentiu o alívio imediato da amarra e se voltou para ele.

    Ele já estava com uma de suas patas quase totalmente desmanchada em um emaranhado de fibras.

    — Ei… — chamou, com a voz firme.

    Zarek parou o que estava fazendo e olhou para ela.

    — Quando foi que você aprendeu a fazer isso? — indagou sobre seu corpo, que até então havia passado despercebido.

    — Isso? — Zarek inclinou a cabeça, confuso.

    Zahara apenas desviou o olhar, deixando a pergunta morrer ali mesmo. Não valia a pena insistir. Não agora.

    Se focou no que realmente merecia sua atenção naquele momento.

    Sua mente começou a reconstruir os eventos que ainda estavam claros, onde ela lembrava do processo bem-sucedido do ritual, quando Marie pôs o parasita para fora.

    Logo em seguida, ela também lembrou do momento em que o outro saiu dela.

    Suas memórias só iam até esse ponto. Em meio a isso, vários outros momentos pareciam infestados de algum tipo de névoa que limitava seus sentidos.

    Ela franziu o cenho, coçando levemente a cabeça.

    — Não eram os parasitas… eram partes de um…?

    O pensamento incômodo ressoava em sua mente. Aquilo que havia saido de dentro dela… era apenas um apêndice de algo maior.

    “Mas… em que momento isso veio parar em mim?”

    Ela começou a listar mentalmente as possibilidades.

    “Contato direto?”

    Ela se lembrava de Zarek comentando sobre os múltiplos braços da criatura. Talvez um deles tenha chegado até ela em algum momento.

    Mas ela não sentiu nada. Nenhuma sensação incomum, nenhum arrepio, nenhuma dor…

    Foi quando, como se uma chave girasse, as palavras de Zarek voltaram à mente:

    “Você esqueceu de novo…?”

    Seu estômago revirou.

    Quantas vezes isso já tinha acontecido?
    Quantas vezes ela pode ter simplesmente esquecido de coisas importantes?

    “Se eu me esqueci agora, e antes também… quantas vezes isso já se repetiu sem que eu sequer soubesse?”

    Era como se ela estivesse jogando xadrez sem conseguir ver nenhuma das peças. O tabuleiro também parecia estar todo em branco.

    Entretanto, havia uma variável… Zarek.

    “Não… se a criatura chegasse tão perto, acho que o Zarek reagiria, como ele o fez desta última. Pelo ar, então?”

    Era a possibilidade mais provável. A criatura imbuí no ar a sua essência em forma de ovos que são inalados e se manifestam no hospedeiro.

    Mas eis a questão… para que isso acontecesse, ainda exigiria que a criatura mantivesse certa proximidade de sua vítima.

    — Essa coisa… ela estava perto… — sussurrou para si mesma.

    E como Zahara não a notou?

    Era invisível?

    Mas Zarek havia visto. E não só viu, ele a descreveu com certa clareza.

    Zahara virou o olhar brevemente para ele, com seus olhos se estreitando.

    Então, não podia ser invisibilidade. Pelo menos, não uma invisibilidade comum.

    Então poderia ser… parte da infecção?

    Mais um sintoma?

    Talvez não fosse a criatura que estivesse oculta.

    Talvez fosse ela mesma que estivesse sendo impedida de vê-la.

    “Se a infecção conseguir causar alucinações… isso é totalmente plausível. E isso ainda explicaria por que de só eu ser afetada e Zarek não.”

    Mas essa linha de raciocínio trouxe outro problema:

    Por que ela ainda não conseguiu vê-la, mesmo após ter expelido o parasita?

    Uma falha?

    Ela realmente não viu a criatura?

    Ou ela apenas não se lembrava?

    Ela mordeu a unha do polegar até seus dentes rangerem.

    A pior parte ainda estava por vir…

    “Como enfrentar algo que eu simplesmente não posso ver, sentir, ou ouvir… e ainda ter que caçá-la em um vilarejo inteiro?”, se indagou enquanto seu olho direito começava a vibrar em tilt.

    Zahara ficou um tempo em silêncio, com o olhar perdido, como se tentasse forçar os próprios olhos a perceberem algo que escorregava por sua linha de raciocínio.

    Então, lentamente, seu olhar recaiu sobre Zarek mais uma vez.

    Ele já estava quase livre. Seu corpo já estava quase totalmente desmanchado, com poucas camadas restantes de “músculos” e “ossos”.

    Zahara soltou um suspiro de rendição.

    Com um simples movimento das mãos, os fios que o prendiam se desvaneceram no ar, e ela caminhou até ele em passos calmos, até parar à sua frente.

    Zarek caiu até o chão, em sua forma habitual — um crânio sobre tentáculos — e contraiu levemente os tentáculos enquanto observava Zahara se aproximando.

    — Zahara… está zangada? — ele a indagou.

    Ela o encarou por alguns segundos antes de responder:

    — Sim… tô puta — respondeu enfaticamente — Mas não é com você…

    Os tentáculos de Zarek se afrouxaram levemente, quase como se estivesse aliviado por isso.

    — E o que faremos agora? Voltamos para a cabana?

    Zahara permaneceu em silêncio por um momento.

    Seus olhos vagaram levemente pelo chão, depois pelo horizonte, mas era como se ela estivesse olhando para dentro de si mesma.

    “Só tenho uma opção plausível.”

    O canto de sua boca se ergueu, formando um meio sorriso medonho, tão macabro quanto todos os outros que ela costumava dar.

    — Não, Zarek. Precisamos terminar o trabalho. E você ainda me deve uma compensação pelo serviço extra que me deu. Que inclusive… é bem provável que, por causa disso, eu nem receba nada pelo serviço original.

    Zarek contraiu novamente os tentáculos, como uma tartaruga se escondendo em seu casco.

    Zahara se inclinou mais para perto dele.

    — Está pronto para sua próxima missão?

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