Capítulo 12 - Parte 6
Como se algo tivesse aberto as portas do próprio abismo, Zarek podia perceber formas se erguendo em meio à penumbra enquanto avançava pelas sombras.
O som abafado de suas passadas se mesclava ao farfalhar inquieto das bandagens que envolviam seu crânio, que a cada movimento chicoteavam no ar, balançando freneticamente ao vento gélido da noite.
Quanto mais se aproximava do vilarejo, os zeladores, o pequeno enxame de criaturas negras, antes ocultas pela própria névoa, começavam a se revelar junto ao som de bater de asas agonizante que ficava cada vez mais próximo. E aquele sentimento… aquele ruído incômodo de antes… voltava a se arrastar novamente para o seu interior. Mas, diferentemente da primeira vez, um pouco mais ameno do que antes… menos opressivo.
Conforme seguia, em sua mente, ele revisava cada detalhe do plano que Zahara havia lhe passado.
“— Preste muita atenção nas minhas palavras, Zarek, pois não estarei disponível para guiar você quando estivermos lá… essa missão é quase exclusivamente sua”, sua voz detinha um tom excessivamente sério.
A chama dos olhos de Zarek se intensificaram ao passo que as palavras dela ecoavam dentro de si.
“ Como não sabemos onde a criatura está, teremos que reduzir nosso campo de busca. E para isso, precisamos de um ponto de partida” , Zahara sorriu de leve, interrompendo-se por um instante.
“Felizmente, por mais imprevisíveis que sejam, as aparições ainda seguem certos instintos. Isso nos permite traçar alguns possíveis destinos.
Vamos seguir uma escala de azar… do menos ao mais problemático.
Seu primeiro destino… será o berço.”
Assim que Zarek cruzou a entrada de Kessan, se esgueirou para o primeiro beco que encontrou e parou abruptamente.
De dentro de seu crânio, pareceu soar algo semelhante a um suspiro. Sua postura se envergou levemente.
— Ahhh… no fim, eu acabei voltando mesmo… — murmurou, encarando o chão com seu único olho disponível. — Parte da culpa pela criatura ter escapado é minha, tudo bem… mas…
Sua pata escorregou devagar sobre o chão, brincando com a areia como quem tenta distrair o próprio pensamento.
— Ela não está se precipitando um pouco?
Ele não tinha deixado isso claro com sua birra infantil de momentos atrás, mas… algo no plano de Zahara o incomodava.
A parte de ele ter que ficar responsável por… matar.
“Achei que essa era uma das coisas que eu não deveria fazer… inclusive, da última vez que ela me pediu algo do tipo, não me caiu muito bem.”
Ele se referia ao evento em que ela pediu para que ele tentasse matá-la.
— E ainda tem aquele negócio de maldição que ela citou… — murmurou. — E se acontecer algo após eu matar ele? Será que ela pensou direito nisso? Quer dizer… eu só sou o que sou agora porque as coisas dentro de mim estão como estão, né?
Ele não sabia dizer o porquê, mas uma voz abafada dentro dele sussurrava, inquieta, que essa era uma linha que ele não devia cruzar.
Podia se dizer que era apenas mais uma forma de seu instinto de autopreservação, visto que depois de sua última conversa com Zahara, sobre a chamada maldição da qual ele se originara, o fez ficar um tanto pensativo.
Outro suspiro ecoou dentro de seu crânio vazio. Zarek ergueu o rosto e lançou um olhar reflexivo ao céu encoberto, tentando imaginar o que deveria fazer ao encontrar a aparição novamente.
Ao passo que se perdia em pensamentos, ao fundo, ocasionalmente era possível ouvir vozes ecoando, abafadas e dispersas, como se não houvesse um ponto de origem específico.
Zarek estremeceu de leve, balançando a cabeça como quem tenta afastar moscas.
Precisava espantar aquela névoa mental que começava a se instalar.
Seu olho correu entre as duas extremidades do beco estreito onde se encontrava, analisando rapidamente sua localização.
A névoa rasteira se espalhava por todo chão de terra batida, subindo aos poucos pelas paredes, engolindo tudo com sua presença opaca e úmida que limitava sua visão. E os sons, por vezes berros e por outras, aparentes palavras, davam aquele cenário mais do que suficiente justificativa para que Zahara tivesse intitulado aquilo de “caos”.
“Ah… já estou aqui de qualquer forma. Se eu voltasse, ela ia acabar ficando zangada comigo. Eu vou ter que pensar sobre, enquanto procuro aquele cara.”
Ele se referia à criatura.
Foi quando outro berro, que soava em meio a todos os outros, pareceu elevar o seu tom de maneira estridente, chamando a atenção de Zarek por um momento, que em resposta ergueu sua cabeça, como se para conseguir ouvir melhor.
Entretanto, após aquela voz se elevar por um breve instante, ela desapareceu, como se aquilo fosse apenas os restos de um fôlego que acabara de se extinguir.
Zarek inclinou sua cabeça, curioso.
Decidido a não perder mais tempo, se lançou pelo lado oposto de onde viera, avançando até o fim do beco.
Antes de emergir por completo, inclinou-se para fora, só o suficiente para observar os arredores sem se expor demais.
Seus olhos varreram cada detalhe visível com cautela. Desde os becos e os batentes das portas, até as frestas das janelas.
Até o momento, parecia que realmente estava tudo limpo.
Aproveitando a aparente calmaria, avançou pelas ruas, sempre rente às sombras, observando qualquer sinal de movimento ao seu redor.
“Se o que Zahara disse estiver certo, eles devem ter evacuado as pessoas para algum prédio no centro da vila. Então, se eu me mantiver nas periferias até chegar na casa, devo ficar bem…”, o pensamento ressoou em sua mente enquanto observava as sombras das névoas contornando as ruas.
Foi quando, após conseguir atravessar dois quarteirões, a chama de seu olho se intensificou logo que ele vislumbrou algumas formas difusas mais adiante. Três, talvez quatro silhuetas humanas, parcialmente ocultas pela bruma.
— Ah… — soltou em um gemido, quase como se sua respiração inexistente travasse.
Interrompeu o passo abruptamente, com suas garras chegando a amontoar a areia do solo, e em um movimento rápido, se atirou para dentro do beco mais próximo, sumindo nas trevas.
Ele encostou-se à parede úmida, focando sua concentração em sua audição, tentando captar qualquer sinal de que havia sido avistado.
Entretanto… nenhum alarde.
Nenhum passo apressado vindo em sua direção. Apenas aquele silêncio estranho, cortado de longe pelos murmúrios sem sentido.
Aparentemente, ainda não havia sido descoberto.
“Ahh… certo… não seria tão fácil”, resmungou em pensamento. “Mas eu não esperava ver um grupo logo de cara.”
Ele andou silenciosamente até a borda do beco, averiguando mais uma vez o lugar onde ele havia as avistado.
E ainda estavam lá.
Eram exatas quatro silhuetas.
Poderia ser um grupo de sobreviventes? Ou então os soldados aposentados que Zahara havia citado?
“Se for o grupo de aposentados, é melhor não ficar parado aqui…”, pensou enquanto a chama de seu único olho à mostra se estreitou levemente, ao passo que o forçava para tentar enxergar além da neblina.
Eles estavam distraídos em alguma atividade que Zarek não conseguia identificar.
Suas posturas apenas pareciam indicar que eles estavam inclinados sobre algo… alguma coisa no chão.
Zarek pelejou por uns segundos tentando descobrir o que era.
Porém… enquanto estava distraído, um barulho abafado soou logo atrás dele.
Zarek, surpreso, recolheu-se novamente para as sombras e, em um movimento brusco, girou o corpo para espiar o que havia lá.
Foi então que ele avistou algo. Uma forma semelhante a uma cabeça, se erguendo lentamente do meio da névoa rasteira, como se brotasse das entranhas do próprio chão.
Zarek recuou um passo, tomado por uma hesitação instintiva. A primeira ideia que lhe atravessou a mente foi a mais simples.
“Outro humano?”
Seu olhar disparou para a rua atrás de si, com a mente já traçando possíveis rotas de fuga. Mas, antes que desse o primeiro movimento, algo o deteve.
Não foi medo.
Foi… outra coisa.
Um ruído estranho, quase um resmungo infantil distorcido, começou a ecoar daquele ser.
Um som desconcertante, carregado de algo primal, que reverberava pelo beco estreito como se buscasse atenção.
E conseguiu. Zarek se viu paralisado por um instante, com o olhar se voltando para aquela coisa que emergia da névoa.
Mas foi apenas quando ela se ergueu por completo que ele pôde vê-la de verdade.
E aquilo definitivamente não era humano.
Tinha a estatura de uma criança pequena, talvez quatro ou cinco anos, mas o corpo carregava uma distorção difícil de descrever. A pele parecia esticada como a de um cadáver em fase de putrefação.
Ela ergueu o rosto em sua direção, revelando dois olhos dos quais escorria uma substância espessa, mal escondida por pálpebras inchadas que se abriam apenas o suficiente para revelar o brilho escuro de seus olhos.
“É… uma aparição?”, se questionou Zarek.
Com cautela, ergueu um dos tentáculos e apontou-o diretamente para a criatura enquanto observava para ver o que ela faria.
E ela, por sua vez, não hesitou. Não recuou. Apenas começou a marchar desajeitadamente, com suas pernas curtas e roliças tremendo a cada passo, como se o simples esforço de se manter de pé fosse uma tortura.
“Ela vai me atacar?”, pensou Zarek, estreitando a chama de seus olhos como se isso ajudasse a decifrar a intenção por trás daquele caminhar estranho.
Quando ela finalmente se aproximou, seus passos trêmulos a fizeram vacilar mais uma vez e Zarek instintivamente deu um passo para trás, como quem pressente um golpe.
Mas o golpe não veio.
Ela apenas o contornou, como se ele fosse uma pedra no caminho, e seguiu em direção à rua.
O tentáculo de Zarek permaneceu suspenso ao lado da cabeça da criatura enquanto ela passava, rente o bastante para atravessá-la sem resistência.
Mas… ele ficou imóvel.
Não sentia hostilidade vindo dela.
Inclusive, a maneira quase deprimente com que aquele ser se comportava, podia gerar até uma certa pena. Portanto, também não via motivos para sequer se envolver com a mesma.
E então, em um gesto contido, como quem recua de um precipício, Zarek retraiu devagar o tentáculo, trazendo-o de volta para a sua juba.
Do lado de fora, a criatura parou. Ficou imóvel por um instante, farejando o ar como um cão.
Foi então que, de repente, algo nela mudou.
Seus membros inferiores, antes trêmulos e quase disfuncionais, se enrijeceram num instante brusco. A postura, antes decadente, se arqueou para frente como um animal, ao passo que sua cabeça também se dirigia para o lado.
E então… ela se lançou em quatro membros, deslizando pela rua com um movimento quadrúpede anormal, como um bicho selvagem.
Foi quando, enquanto ele observava a pequena criatura seguir o seu rumo, a imagem das silhuetas que havia visto do lado de fora do beco passou por sua mente.
Zarek piscou, surpreso, e antes que percebesse, havia avançado até a borda do beco, tomado por uma inquietação súbita, como se, por um breve momento, tivesse sentido que cometera um erro.
Esticou o corpo para a estrada, tentando espiar o que estava prestes a acontecer.
Foi então que viu…
A pequena criatura avançou em direção às silhuetas desenhadas na névoa. E as figuras permaneceram imóveis como se não pudessem perceber o perigo que se aproximava delas.
Foi quando… aquele ser sumiu no nevoeiro, que o engoliu por completo assim que as alcançou.
Zarek sentiu como se o tempo parasse.
Mas algo estava errado…
Os gritos não vieram.
Nem o som de impacto, de luta, ou o estalo de carne sendo perfurada.
E mais estranho ainda… as silhuetas sequer reagiram. Permaneceram como estavam, oscilando levemente, como folhas empurradas por uma brisa tímida.
Zarek curvou a cabeça, intrigado.
Aquilo era mesmo real?
Talvez fossem apenas sombras jogadas pela iluminação turva do vilarejo, deformadas pela neblina…
A dúvida plantou a curiosidade…
Zarek olhou rapidamente para os dois lados da rua, analisando as redondezas.
Nenhum som. Nenhuma presença. Nenhuma outra movimentação além daquelas figuras na névoa.
E então, com um movimento hesitante, mas guiado por uma fome de entender, ele saiu das sombras do beco.
A cada passo, a neblina parecia perder força, dissipando-se com uma lentidão quase respeitosa.
Foi então que, ao cruzar uma certa distância, a cortina de névoa se ergueu levemente, como se abrisse alas para um espetáculo, e a natureza de cada uma daquelas sombras, que Zarek precocemente havia julgado serem humanas, se revelou…
Na realidade, nenhuma delas era de fato humana. Mas também não eram ilusões oriundas de uma projeção de luz e sombra.
Eram aparições… mas diferentes da pequena criatura que escapara do beco. Essas eram mais altas, esguias ao ponto de parecerem prestes a se partir com o vento. Seus corpos lembravam esqueletos alongados, cobertos apenas por uma fina camada de pele ressequida e acinzentada. Seus pescoços curvavam e estalavam a cada movimento de cabeça, revelando olhos grandes e negros… poços vazios que pareciam sugar a luz em volta.
E havia mais um detalhe. Suas bocas, repletas de dentes serrilhados e irregulares, estavam encharcadas de sangue fresco.
A origem daquele sangue logo se revelou, ao passo que a névoa continuou a se tornar menos espessa, conforme ele se aproximava.
Sob as aparições, jazia o corpo de alguém. Um humano… um filhote de humano, despedaçado, com a cabeça intacta como único vestígio de identidade.
E junto dele, a pequena criatura que Zarek havia deixado passar… caída sobre os restos, devorando-os com a mesma fome das demais.
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