Capítulo 2 – O Brilho de Olhos Vazios
Eu não me recordo como vim parar aqui, nem mesmo sei onde é ‘aqui’, ou se ‘aqui’ é algum lugar. Parece apenas um grande nada, um vazio sem fim que se estende em todas as direções.
Será que isso é o inferno? Eu fui uma pessoa tão ruim assim? Mas de que adianta ser punido por algo que nem me lembro de ter cometido?
O silêncio é esmagador, interrompido apenas por vozes distantes, como zumbidos dentro do meu ouvido.
— Qu@ a@#&$ #$@ê? — algo sussurrou em seus ouvidos antes de desaparecer.
— Quem está aí?
Mas eu não consigo reconhecê-los.
— Que aberração é você?! — A voz ecoou como um grito na vastidão do vazio.
Ah… é verdade. Eu também não sei.
•
Em meio à penumbra noturna, apenas o véu da lua rasgava o manto de escuridão que cobria o campo, e uma donzela de cabelos prateados vagava solitária enquanto cantarolava uma canção.
Sua presença era alienígena naquele ambiente. A pele absurdamente branca parecia irradiar o brilho do luar, transformando-a em um espectro etéreo, e nas suas mãos, ela carregava apenas uma cesta.
O que uma jovem teria para fazer em meio à noite?
A alguns quilômetros à sua frente, seus olhos estavam fixos na grande árvore de Noin, que se erguia como um farol, guiando sua direção. E a canção noturna do vento e do farfalhar suave da grama sob seus pés era facilmente quebrada pelo chiado contínuo dos corvos ao longe.
— Êhh~, vocês parecem bem animados — exclamou para si mesma, observando os corvos. — Se eu não me engano, já anoiteceu há três horas, e… eles geralmente entram no final da tarde. Hummm… acho que até eu chegar lá eles já devem ter saído.
Assim que ela chegou ao topo do pequeno monte, pôde ver toda a planície e, à sua frente, uma floresta decadente cheia de árvores retorcidas.
Era para lá que ela estava indo.
***
— Saiam da frente! Deixem um pouco pra mim! — reclamou com os corvos que devoravam euforicamente a carcaça de uma criatura.
Ela balançou a sua cesta de um lado para o outro, para afugentar as aves que eram atraídas pelo cheiro de podridão do cadáver.
— Vamos ver o que vocês deixaram para mim hoje. Pelo cheiro é um… pútrido! Sem cabeça… cadê a cabeça?
Ao olhar ao redor, viu um grupo de corvos comendo algo logo à sua direita. Assim que se aproximou para averiguar, percebeu restos do que parecia ser uma cabeça esmagada no solo.
— Que desperdício… — murmurou, com uma expressão de frustração marcando seu rosto. — Assim você não serve para nada. Sinto muito mesmo. Façam bom proveito, garotos.
A dama branca seguiu o seu caminho, deixando a carcaça aos corvos.
Enquanto vagava pelo pântano guiada pelos grunhidos dos seus companheiros de penas, ela avistou mais um grupo de corvos e correu em direção a eles para ver o que havia encontrado dessa vez.
— Uaaaaau! Que imundície! Eles fizeram uma sujeira aqui — disse ao ver a quantidade de sangue espalhado no chão.
Ela os afugentou com sua cesta, novamente e olhou para o que eles estavam comendo.
Logo, sua face, antes amena, mudou para um olhar sério.
— Isso é um membro humano… — observou.
Eram pernas humanas, para ser mais específico.
Seus olhos começaram a varrer o seu derredor, analisando o ambiente, e percebeu haver outros corpos espalhados pelo local.
— Um… o dorso… três… quatro…
Enquanto continuava averiguando, foi interrompida por uma tosse que vinha de um dos corpos, e ela se voltou para ele. Os corvos não pareciam estar muito interessados naqueles em especial. Não pareciam estar no ponto.
Ao se aproximar dos dois corpos amontoados e escorados em uma árvore, viu uma jovem de cabelos dourados deitada sobre o peito de outro soldado. Ambos estavam respirando, mas com muita dificuldade.
A garota tinha uma estaca cravada em sua clavícula e o homem estava com o braço esquerdo semi-amputado. O ferimento dele era mais grave, mas ela se atentou para algo especial.
— Parece que o sangramento parou. Mas vocês vão morrer se não saírem daqui — cochichou consigo mesma.
Como se a jovem soldado respondesse ao estímulo da voz da donzela, abriu os seus olhos sorrateiramente e viu a imagem de um fantasma. Uma mulher de pele tão suave quanto porcelana e cabelos que pareciam com fios de prata, reluzindo a tímida luz noturna.
— Você é bem persistente, né? Eu ainda não terminei o que eu estava fazendo, mas eu não posso simplesmente deixar vocês assim.
— Q…quem…é? — gaguejou em resposta.
— Xiiii~ — a interrompeu, tocando em seus lábios. — Você fica quietinha. Eu peço perdão, mas você vai ter que sentir dor mais uma vez. Tá bom?
Ao se abaixar, ela pegou a bainha de seu vestido e arrancou um grande pedaço, o separando em 3 partes.
O menor deles, ela enrolou e o encostou na boca da jovem, solicitando que ela o mordesse. E ela o fez.
Ao observar o empalamento, percebeu que ele não tinha hemorragia. Na verdade, aparentemente a carne parecia ter sido cauterizada com fogo.
— Ah, É uma tocha! Que sorte! — disse, olhando nos olhos da jovem, com uma expressão entusiasmada. — Eu só espero que a pele não tenha grudado… vou puxar.
E agarrou prontamente a tocha com uma mão, usando o outro braço para segurar o ombro e, sem delicadeza nenhuma, arrancou a estaca do ferimento.
A soldado gemeu de dor e adormeceu novamente.
— Pronto, pronto. Vai ficar tudo bem.
De uma pequena bolsa presa em sua cintura, retirou alguns frascos de conteúdo duvidoso e passou em seu ferimento, depois o enfaixando.
Terminando de tratar o ferimento da jovem, se voltou para o homem que estava logo atrás.
Como o seu único ferimento era o de seu ombro, ela resolveu apenas remover o braço, que estava sendo sustentado penosamente pelo pouco de carne e cota de malha que havia restado.
E com um simples movimento de suas mãos, o membro caiu, como se já estivesse solto.
Medicou-o e, enquanto o enfaixava, avistou em seu pescoço um cordão com um pingente de símbolo rúnico. Ela o puxou e o esmagou com as suas mãos.
— Certo! Agora… — Seus olhos se direcionaram para o centro do pântano.
Da posição em que ela estava, pode vislumbrar algo similar a uma trilha de árvores partidas. Algo havia feito tudo aquilo, tanto o massacre quanto a trilha.
Ela pegou sua cesta e, conforme avançava, o rastro de destruição ia diminuindo, como se a fúria ou o vigor da criatura fosse se amenizando.
•
Como se despertasse de um sono profundo, seus olhos brilharam mais uma vez.
A grande árvore, que parecia se curvar sobre ele, o protegia da luz noturna e o permitia ver pequenos feixes de luz, passando por entre os galhos das árvores.
“Lindo”, pensou atordoado.
Ele tentou mover sua cabeça para admirar mais, mas ele estava paralisado, e ao forçar um pouco mais, ouviu algo se partindo.
Conforme continuava se balançando, a sua rigidez ia se desfazendo e, enquanto saía do que parecia ser um casulo calcificado, seu corpo, que parecia uma massa disforme, começava a ganhar forma, até que ele inteiro se materializou.
Ele olhou atentamente para as suas mãos e depois para o seu reflexo na lama do pântano.
Isso… isso sou eu?
Suas mãos… eram garras. E seu corpo inteiro parecia uma mistura de fibras musculares e ossos expostos. Seu rosto não lhe passava nenhum tipo de familiaridade ou estranheza.
Nem mesmo o fato de sua face inumana se parecer com o rosto de um demônio, ou com o fato de seus olhos brilharem como brasas.
Tudo o que tinha certeza era que ele não fazia a mínima ideia do porquê estava ali.
Sentado no chão úmido do pântano, ele olhou para o céu mais uma vez e contemplou as poucas estrelas à sua vista.
— A noite está linda, não é? — disse uma voz, por detrás das árvores.
Imediatamente, ele buscou o autor da fala e uma donzela branca de cabelos prateados se revelou, com uma expressão doce em seu rosto.
— Você tem gostos bem peculiares — continuou — geralmente, seus iguais tentam consumir tudo o que veem. Mas você, após fazer uma bagunça, para pra apreciar as estrelas? Você não está agradecendo pela refeição, está?
“Ela me conhece?”, se questionou, estranhando a situação.
Sua surpresa repentina o fez se mover bruscamente, e antes que pudesse entender o que havia acontecido, seu chifre direito caiu ao chão.
“Estou me desfazendo? Ou foi ela que fez isso?”, questionando-se em como, se ela sequer havia se movido.
— Eu não esperava um de vocês por aqui. Você vai perdoar a minha euforia, mas depois do que vi, você deve imaginar que estou bastante interessada, não é?
Sua expressão meiga, em um instante, foi se desfazendo, abrindo espaço para um sorriso macabro. Ela se curvou, erguendo a bainha de seu vestido rasgado e se apresentou.
— Não que vá lembrar, mas… meu nome é Zahara.
Como um ato instintivo de um animal selvagem, ele saltou para trás para se distanciar de Zahara, que ainda não havia feito nada.
Ela… é um inimigo.
Parecia estranho, mas o demônio pressentiu perigo.
Em resposta, começou a rosnar enquanto seu corpo crescia de tamanho, se preparando para um possível confronto. Mas a jovem, em resposta, apenas estendeu a sua mão.
Com sua palma virada para cima, em um movimento singelo, sua mão se fechou e o corpo da criatura implodiu em vários pedaços.
Como em um piscar de olhos, ou em um estalar de brasas, a luz do céu noturno refletiu sobre fios e fios que o cortaram em pedaços, de cima a baixo, dos pés ao pescoço, decapitando-o.
E antes que o brilho de seus olhos se apagasse, ela se aproximou a passos suaves, até que se pôs de pé em sua frente e pegou o seu crânio do chão, erguendo-o como um troféu.
— Um final miserável… Digno do rei da miséria — disse, com um sorriso retorcido em seu rosto.
Parte 2
— Elise! Elise! O que aconteceu aqui?! Você consegue se mover?
Ao ouvir uma voz familiar, Elise abriu lentamente os olhos e viu um homem de cabelos grisalhos com o estandarte do reino de Helgrath preso em suas costas.
— Comandante Alaric?… — respondeu, ainda atordoada.
— Não se levante. O que aconteceu com todos?
— Ahn!? Eu… eu… espera! E o capitão Darius?!
Ela tentou se levantar novamente, mas o comandante a impediu.
— Acionei os cavaleiros assim que vi a insígnia de Darius se apagar. Lamento informar, mas do jeito que está… ele vai ter que se aposentar. Ainda assim, dado esse cenário infernal, é um milagre que vocês dois estejam vivos.
— Ele sobreviveu… graças aos deuses! — suspirou de alívio, ainda triste pelos seus outros dois companheiros.
— Sobre esse curativo… — disse enquanto olhava para o pano amarrado em seu ombro — foi você que fez?
— Isso? Não, eu…
Além do comandante Alaric, outros dez soldados faziam sua guarda. Darius, ainda desacordado, recebia tratamento médico de alguns deles e outros se aproximaram de Elise para tratá-la.
Enquanto observava a movimentação, seus olhos vagavam à procura de uma imagem etérea que ela malmente recordava.
— Comandante!
— Diga, soldado.
— O senhor!… O senhor encontrou mais alguém pelo pântano?
— Outra pessoa? Foi uma pessoa que fez tudo isso? — indagou-a, agitado.
— Não! — respondeu Elise energicamente, mas seu ferimento começou a doer.
— Entendo — suspirou. — Meus homens já fizeram a varredura por todo o pântano, não encontramos nenhuma presença anormal.
“A criatura também sumiu?”, pensou Elise, enquanto encarava as profundezas do pântano.
Continuou Alaric:
— Primeiro vamos nos retirar daqui e depois faremos um relatório. Coloquem ela e os outros em macas, estamos nos retirando do pântano.
Elise deitou-se na maca e assistiu enquanto os soldados colocavam Darius, Nord e Liam sobre as outras.
O choque de tudo que havia acontecido parecia ter deixado uma marca profunda em sua alma.
Mesmo para alguém que já havia perdido tudo uma vez, assistir tudo acontecer de novo… isso não era algo que um ser humano pudesse se acostumar.
Seus cabelos outrora dourados estavam agora ruivos, tingidos pelo seu sangue, e sua aura resplandecente parecia vacilar.
Seja pelo cansaço ou pelo trauma, ao passo que observava a luz das estrelas transpassar pelos galhos das árvores, ela adormeceu como se não dormisse há dias.