Enquanto permanecia em seu estado de letargia, sua mente estava presa em memórias recentes.

    Que tipo de existência era essa? Se perguntava.

    Se isso era o inferno, como supusera anteriormente, ele ainda não lembrava por que estava sendo julgado.

    Mesmo assim, seus olhos ainda puderam se embriagar brevemente com aquela bela visão do seu pseudo submundo.

    As estrelas estavam realmente lindas”, pensou em seu interior.

    Eu não me lembro de já as ter visto daquela forma. Na verdade… eu não lembro se já parei para olhar pro céu alguma vez.

    Lembranças de uma mulher tão branca quanto a lua invadiram sua mente. Seus cabelos brilhantes como prata e seu sorriso malicioso contrastavam com todo o resto.

    Zahara… ela disse. Ela me matou? Pareceu tão fácil. Mas e agora?

    Um sentimento de vazio invadiu seu ser. 

    Foi quando um som suave, que parecia massagear a audição, começou a encher o ambiente.

    Era o som do estalar de uma lareira.

    A luz logo foi sorrateiramente entrando em sua visão, e conforme as fagulhas de seus olhos se acendiam, aos poucos, o ambiente ganhava forma.

    Era um lugar bem bagunçado, que se assemelhava ao interior de uma cabana, com livros e objetos estranhos espalhados em cima da mesa e nas estantes.

    “Eu não morri?”, se perguntou.

    Ele tentou olhar mais ao redor, mas sem pescoço era inútil. Aparentemente, sua cabeça foi colocada em uma cômoda.

    Aqui deve ser a casa dela.

    Foi quando um gemido emergiu por detrás das paredes, seguido pelo som da porta se abrindo rapidamente.

    Uma montanha de livros com pernas atravessou a porta de forma desajeitada, mas assim que colocou os livros sobre a mesa, ele pôde ver o rosto por trás do berro.

    É ela…”, pensou, a encarando fixamente.

    — Agora vejamos… — cochichava, enquanto procurava algo na capa dos livros — hummmm… Origem de Helgrath… Fauna Sagrada… Impérios do passado…

    Zahara passava seus olhos rapidamente pelos livros, e ele continuava a observá-la.

    — Ah, achei! — exclamou.

    Mas antes que ela pudesse começar a ler, algo chamou sua atenção, a fazendo parar por um instante.

    Seu rosto se virou lentamente ao encontro dos olhos do crânio que a observava com atenção.

    — Heemm~~? Eu achei que seus olhos estavam apagados… Não estavam?

    Ao se aproximar dele para olhar mais de perto, ela deixou o rosto tão próximo que parecia querer beijá-lo, e o encarou nos olhos por longos dez segundos.

    Talvez agora ela me mate…”, pensou consigo mesmo.

    — Você sobreviveu? — exclamou, surpresa. — Noossa! Você é bem resistente, né!? Então, quer dizer que o núcleo é de fato o crânio. Mas porque você continua parado aí…?

    O que ela espera que eu faça?

    Ele tentou se mover, para ver se algo realmente acontecia, mas não havia nada abaixo de seu crânio além de uma estranha penugem que saía de seu pescoço. Mesmo que ele quisesse, não poderia fazer nada.

    — Hummm… deve ser por causa do círculo. E se eu apagar ele…?

    Enquanto falava, ela passou o seu dedo em um círculo que parecia ter sido pintado na cômoda abaixo de sua cabeça e, como uma reação quase que instantânea, ele sentiu algo fluir para dentro de si.

    Algo estava diferente de antes, mas preferiu continuar sem fazer nada.

    Os olhos de Zahara pareciam ter ficado entediados ao assisti-lo.

    — Você é estranho mesmo, né?… — disse, enquanto lhe dava as costas.

    ***

    Depois de um tempo agindo como um mero objeto decorativo, ele pôde observar a rotina de Zahara. 

    Ela parecia não se importar com as duas orbes flutuantes que a seguiam como se fosse um stalker, e passava a maior parte do tempo falando sozinha.

    Quando não estava falando, cochichava com os livros, fazia suas misturas estranhas e suas anotações.

    A sala em que ele estava, não havia janelas, então ele não tinha plena consciência de quantos dias ou noites já haviam passado desde que acordou.

    A lareira era a única fonte de luz, ora acesa, ora apagada por Zahara conforme ela se movia freneticamente entre seus estudos e experimentos.

    Quanto tempo mais isso vai durar?“,  ele se perguntava em silêncio, com sua mente ecoando com a monotonia das horas que se arrastavam.

    Seus olhos, por vezes, se direcionaram para a linha do círculo que ela havia refeito.

    Desde que Zahara o refez, ele sentia como se algo estivesse lentamente o consumindo de dentro para fora. Era uma sensação sutil, mas constante, como se sua essência estivesse sendo drenada pouco a pouco.

    E Zahara continuava suas atividades.

    O som das páginas virando e dos seus murmúrios preenchiam a cabana, parecendo completamente absorta em seu trabalho.

    Ela parece não dormir…”, pensava.

    — Não é igual — Zahara suspirou, fechando o livro com um leve estalo, e se recostou na cadeira parecendo exausta pela primeira vez.

    O silêncio se instalou novamente na cabana, interrompido apenas pelo estalar ocasional da lareira. 

    Pelo que entendi do que ouvi ela falando até agora”, começou a ponderar consigo mesmo, sou algo chamado de aparição. Mas, aparentemente, não era para eu existir… ou algo assim…

    — Ahhh~ — bocejou Zahara, esticando os seus braços para o alto e começou a murmurar — Helgrath não tem registros de outros reinos anteriores a ele, e o Santuário de Valinor é só um cemitério de guerra…

    Seus olhos tentavam enxergar os pensamentos de Zahara através de suas expressões, enquanto se esforçava para ouvir os seus murmúrios tentando absorver o máximo de informações que podia, embora a maioria dos termos e nomes parecessem completamente desconhecidos.

    Aparentemente”, continuou refletindo, “aparições iguais a mim não costumam nascer em pântanos, e também não pensam muito. Por isso ela esperava que eu a tivesse atacado.

    Eu me pergunto, o que aconteceria se eu tentasse falar…

    Nesse momento, o som de um pequeno suspiro saiu de sua cavidade nasal, como se ele estivesse cansado, atraindo brevemente a atenção de Zahara.

    Um sorriso sutil curvou os seus lábios.

    — Você está prestando atenção, não é? — disse ela, como se estivesse a provocá-lo.

    As chamas de seus olhos vibravam, como se confirmassem sua indagação. E ela se levantou lentamente, caminhando em sua direção, com uma expressão pensativa.

    — O Estigma da Miséria… — começou a falar — é a maldição reservada para os reis que foram abatidos pelas próprias ambições. Só que não há nada sobre reinos anteriores nas proximidades do pântano, então… de onde você veio?

     “Ainda que você pergunte…”, pensou, enquanto ela o encarava de braços cruzados.

    Enquanto ambos batiam cabeça separadamente, Zahara ouviu alguém batendo na porta da frente de sua casa, chamando por ela, e prontamente foi atendê-la, deixando apenas o crânio para trás.

    E ele continuou ponderando sobre a pergunta que ela fez, indiretamente.

    Estigma da Miséria? Rei? Nada disso é minimamente familiar pra mim.

    Então isso é realmente algum tipo de punição?

    O som das vozes do lado de fora alcançava suas cavidades auditivas, mas ele não conseguia distinguir as palavras. A conversa se estendeu por alguns minutos até que Zahara voltou, com um ar ligeiramente impaciente. Ela fechou a porta com um estrondo e retomou seu lugar.

    — Pessoas insistentes… — murmurou enquanto se aproximava do crânio novamente, com suas expressões se suavizando lentamente. — Bem, onde estávamos?

    Ele permanecia em transe.

    Perguntas anteriores voltaram a rodear a sua mente como moscas.

    Não que isso devesse incomodá-lo… mas ao olhar para a única pessoa com quem entrou em contato desde que “nasceu”, que inclusive parecia saber mais sobre ele do que ele próprio, pelejando para entendê-lo. Sua mente entrou em parafuso.

    — Quem… eu sou? — Por um pequeno descuido, sua voz rouca preencheu a sala vazia

    Zahara congelou no lugar, com seus olhos arregalados de surpresa. 

    Ela ficou imóvel por alguns segundos, processando o que havia acabado de ouvir. Mas depois, lentamente, ela se aproximou do crânio, cheia de cautela.

    — Você… falou?

    O que ele deveria fazer agora? Fingir demência?

    Ele permaneceu sem reação, mas enquanto voltava para sua atuação de vaso decorativo, outro pedaço de seu chifre direito caiu.

    Ele já havia visto isso acontecer antes…

    Foi Zahara, que começou a se ajoelhar diante dele o encarando diretamente em seus olhos, que agora pareciam queimar mais intensamente.

    — Você falou… — Sua voz estava séria. — Se você fala, deve conseguir pensar também, né? Então vou lhe dar duas opções. Só direi que, escolher não fazer nada, vai matar você.

    Era um ultimato.

    Não era como se ele temesse a morte. Mas isso não era motivo suficiente para que ele aceitasse morrer tão facilmente.

    Não havia nenhuma outra coisa que ele pudesse fazer, dada as circunstâncias, além de falar alguma coisa.

    Mas o que ele diria?

    Ele passou todo esse tempo observando a sua rotina.

    Poderia haver algo entre tudo o que ouviu que poderia lhe servir como uma moeda de troca?

    Não… Mesmo que ele tentasse mentir, inventando informações em troca de aumentar seu valor, por interesse. Ela não acreditaria.

    Em todo esse tempo em que passou observando-a, ele não viu Zahara dormindo uma vez sequer. Esteve sempre imersa em seus livros e estudos.

    Estava claro que ele era o ignorante ali, inclusive sobre si próprio.

    Então, na escassez de opções, acabou dizendo a primeira coisa que lhe veio à mente.

    — Zahara…

    O som do nome dela, saindo de sua boca, pareceu ressoar na cabana com se fosse um eco.

    Zahara inclinou sua cabeça, curiosa. A súbita mudança em seu comportamento a deixou intrigada. Ela puxou sua cadeira e se sentou novamente, dessa vez mais próxima, com seus olhos fixos nele.

    — Você sabe falar mais que isso? — indagou.

    — Eu acho… que posso falar livremente — respondeu, um pouco desconfiado.

    — Certo… — disse Zahara, enquanto seus olhos pareciam começar a perder o foco, com ela mergulhando em pensamentos.

    Depois de alguns segundos com ambos em silêncio, Zahara falou:

    — Você pode me responder algumas perguntas?

    O crânio permaneceu em silêncio, mas parecia assentir com os olhos e ela continuou.

    — Por que você não me atacou no pântano?

    — Por que eu deveria atacar? — retrucou, sem demora.

    Ouvindo a sua resposta, seu rosto parecia se franzir um pouco, como se sua resposta a deixasse com ainda mais dúvidas.

    Ela logo partiu para a segunda pergunta.

    — Por que você matou aqueles soldados? — disse com uma expressão extraordinariamente séria em seu rosto. 

    Soldados? Havia mais alguém ali?”, começou a se questionar em pensamentos.

    Dessa vez, ele não conseguia responder. Permaneceu em silêncio, processando as palavras dela. Ele não lembrava de nada que pudesse corroborar à acusação, mas também não conseguia negá-las.

    Zahara insistiu e perguntou novamente.

    — Você disse que não me atacou porque não via motivos, então por que os matou?

    — Eu… eu não lembro. — Sua afirmação foi firme, mas desanimadora.

    — É muito conveniente, não acha? — disse, enquanto inclinava sua cabeça para mais perto dele. — Sobre sua pergunta de antes… Eu também não tenho uma resposta. Na verdade, a partir de agora, eu nem tenho certeza se sei o que você é. Ahhh~, isso só complica tudo! — começou a resmungar, coçando a cabeça freneticamente.

    Ele permaneceu em silêncio, observando enquanto ela ligava os pontos mentalmente.

    De repente, uma dor latejante começou a pulsar em sua cabeça. Era uma sensação aguda e penetrante, que se intensificava a cada segundo. Ele tentou ignorar, mas a dor continuava a aumentar, tornando-se insuportável.

    — A minha cabeça… — murmurou, quase que para si mesmo.

    Zahara, ainda mergulhada em pensamentos, ouviu o lamento e direcionou sua atenção para ele.

    — O que foi?

    — Minha cabeça… está doendo… — respondeu com as chamas em seus olhos vacilando.

    Ela se aproximou rapidamente, analisando-o.

    — Ah… é verdade. Eu me esqueci disso.

    Ela estendeu a mão e passou os dedos pelo círculo, danificando os escritos. 

    No instante em que ela o fez, assim como sentira da última vez, algo fluiu para dentro dele e a dor começou a diminuir, clareando sua mente.

    — Tudo o que existe emana energia vital, e vocês aparições vivem de absorver essa energia vital, que é liberada e decomposta no ambiente. Mas existem algumas medidas que podem ser tomadas para purificar espaços. — Zahara olhou para ele com um sorriso indiferente. — Você ia morrer de inanição, hehehe… Que final miserável, né?

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