Capítulo 3 - Parte 2

O tempo passou e a rotina na cabana tornou-se um estranho ciclo de experimentos, estudos e diálogos ocasionais. E Zahara, embora inicialmente distante, começou a demonstrar um interesse crescente por sua “anormalidade”.
Enquanto ela folheava um livro de registros antigos, se sentou diante dele, fitando-o com uma expressão pensativa, e perguntou:
— Quando você diz que não lembra… é algum tipo de perda de memória?
— Eu só não sei se há algo para lembrar. Tudo que eu lembro é de sentir como se eu estivesse sonhando, e de repente um céu… e você — respondeu.
“Esse é literalmente o momento em que eu encontrei ele”, pensou Zahara.“Será que foi algo na batalha que deixou ele assim? Pelo que eu me lembre, antes de achar ele, eu segui por uma trilha de árvores esmagadas. Ele lutou com mais alguém?”
— Você lembra de algo mais? Cheiros? sons? — continuou.
— Não sei, talvez vozes… como se fossem sussurros.
Ela assentiu, fazendo anotações em um pergaminho ao seu lado.
De repente, um som de batidas na porta ecoou pela cabana. Zahara suspirou, fechando o livro com um leve estalo.
— De novo não… — murmurou, levantando-se.
Ela saiu do seu escritório bufando enquanto se dirigia à porta da frente e, ao olhar pelo visor, viu do lado de fora um homem, já idoso, acompanhado de um mais moço. Aparentavam ser aldeões de uma vila próxima.
A presença deles parecia causar desconforto a ela.
— Já disse que estou ocupada — disse Zahara com um tom impaciente.
— Por favor… — insistiu o senhor, com uma expressão desolada — tem alguma coisa atacando o gado. A vila inteira está apreensiva.
— Ahh~~ — suspirou — é para isso que servem os soldados. Vocês deveriam pedir ajuda ao reino.
— Nós já tentamos… — respondeu exaltado.
E como uma reação quase imediata, ele começou a se curvar, apertando o próprio peito, como se estivesse sendo afligido por fortes dores, e o rapaz mais moço veio em seu socorro.
— Vovô!
Assim que ele o acolheu, os olhos do jovem encararam os olhos de Zahara com um rancor visível, mas ela permaneceu com uma expressão condescendente.
O ancião voltou a insistir:
— O reino nunca nos dá ouvidos, eles nos desprezam…
— Certo, Certo… — Ela o interrompeu e fechou a viseira.
Enquanto ouvia, próxima à porta, os passos dos dois homens se distanciando, ela cochichou consigo mesma.
— Atacando o gado? Onde ele tá com a cabeça? — Riu discretamente, enquanto retornava para o seu escritório.
O crânio a encarava fixamente como de costume.
— Ahhh~ eu acho que vou ter que sair mais tarde. Mas o que eu faço com você agora? — disse, enquanto sentava relaxadamente em sua cadeira.
— Sair? — perguntou o crânio, como se estivesse surpreso.
— Sim! Sair! — respondeu, estranhando o tom dele. — Bem… eu preciso pensar em algo. Como não tinha pensado nisso até agora…
Zahara começou a morder o lábio inferior enquanto balançava a perna, nervosamente.
— Se desse ao menos para firmar um pacto — murmurou, enquanto batia cabeça.
— Pacto?
— Você vai ficar repetindo tudo o que eu digo? — respondeu Zahara, com um tom impaciente. — Ahh… de qualquer forma, isso é algo que não dá para fazer com aparições profanas, são muito irracionais…
De repente, ela olhou diretamente para o crânio em cima da estante como se tivesse tido uma epifania.
— Ei… Talvez isso funcione com você — falou, abrindo um sorriso malicioso.
Ele observou enquanto Zahara saltou de sua cadeira e começou a mexer em suas prateleiras, pegando alguns frascos e também uma pequena caixa de madeira, retirando de dentro dela uma lasca do chifre que havia arrancado dele, tempos atrás.
— Vou precisar disso — murmurou para si mesma, começando a trabalhar freneticamente.
Ela misturou os ingredientes em um pequeno caldeirão, moendo a ponta do chifre e cortando a ponta do seu dedo com uma adaga, adicionando o pó e seu sangue dentro da mistura.
— O que você está fazendo? — perguntou o crânio.
— Preparando o material para o pacto, claro… — respondeu Zahara, sem tirar os olhos de sua poção. — Você não é uma aparição natural, mas também não é insano, então… talvez a gente consiga um equilíbrio.
O líquido brilhou intensamente por alguns segundos antes de se estabilizar.
— Não se preocupe, isso não vai doer — disse ela, embora sua expressão não fosse nada tranquilizadora.
— E se não funcionar? — questionou ele.
— Bem… — Zahara sorriu — sempre há riscos. Mas o que você tem a perder, não é mesmo?
Zahara pegou um pincel e o embebeu na poção, pintando no seu peito alguns símbolos e fazendo o mesmo na parte de dentro do crânio.
— Pronto, agora é só entoar o feitiço de ligação — falou, com um olhar de excitação.
Ela se posicionou em frente ao crânio e as palavras começaram a ressoar pela cabana. Uma energia pulsante começou a emanar dos símbolos e ele sentiu uma corrente de energia preencher o ambiente.
Assim que ela terminou de recitar o cântico, toda aquela atmosfera se dissipou, e o ambiente voltou a sua normalidade como se nada tivesse acontecido.
Zahara ficou com uma expressão indiferente, com seus olhos piscando repetidas vezes como se não tivesse certeza do que acabou de acontecer.
— Deu certo?… — perguntou para o crânio.
Como ele iria saber?
Foi quando ela olhou para a pintura que havia feito em seu peito, e as escrituras haviam cicatrizado em sua pele.
Deu certo! — comemorou, com um olhar triunfante. — Agora temos um pacto.
— Hum — assentiu, inexpressivo.
— Que sem graça. Parece até que tá morto. Você não tem nenhuma pergunta?
— Ahh… O que esse pacto significa exatamente?
— Basicamente, eu vou garantir que você não morra de fome — explicou enquanto começava a se preparar para sair. — Em troca… bom, por hora, basta resumir que se você tentar fazer algo que não deva, eu saberei imediatamente.
— Você não vai me aprisionar? — perguntou ele, ainda incerto sobre essa nova ligação.
— Ah, meu caro rei da miséria, eu não me preocuparia com isso. — Zahara riu suavemente.
Antes de sair, ela olhou para o crânio uma última vez.
— Hummmm… acho que precisamos de um nome para você.
— Nome? — repetiu ele.
— Sim. “Crânio” é muito impessoal. E “rei da miséria” é… bem, é muito longo — disse enquanto escorregava o seu dedo pelo queixo.
Ele ponderou por um momento. A ideia de ter um nome, algo que lhe daria uma identidade, mesmo que mínima… parecia agradável.
Zahara parou para pensar, apoiando o queixo na mão.
E no final deu um sinuoso sorriso de nostalgia.
— Que tal Zarek?
— Zarek? — perguntou.
— Sim, é o nome de um rei de uma antiga estória.
Ele experimentou o nome mentalmente, parecia se ajustar de forma estranha.
— Zarek… — murmurou. — Sim, isso parece… bom.
— Então está decidido. Zarek, o rei da miséria. Bom, eu volto logo.
E com essas palavras, Zahara saiu pela porta, deixando Zarek sozinho novamente.
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