Capítulo 6 - Deus Sombrio
As brasas incandescentes de seus olhos pairavam pelo ambiente, procurando algo que prendesse sua atenção naquele cômodo escuro e entulhado de objetos curiosos, cheirando a ervas secas.
Após algumas aparentes horas de Zahara tê-lo deixado só, Zarek permaneceu estático em sua cômoda, perdido em pensamentos sobre o pacto recente que fizera.
“Ela simplesmente desfez o círculo e me deixou aqui. Isso quer dizer que estou livre? Mas o quão livre eu realmente estou?”, ponderava enquanto suas órbitas flamejantes encaravam o teto.
“Ela disse para eu não me preocupar com isso. Mas é claro que deve existir uma linha a qual eu possivelmente não posso cruzar.”
Enquanto lembrava de suas pequenas e recentes memórias, a imagem de Zahara com seu sorriso diabólico, adentrava seu crânio vazio, o fazendo relembrar de suas palavras inconsequentes.
“O que você tem a perder, não é mesmo?”, disse Zahara, com aquele sorriso de orelha a orelha.
— …
Por um breve instante, ele sentiu um calafrio percorrer seu crânio exposto, algo irônico, considerando que ele não tinha pele ou carne para arrepiar.
— Bom! Acho que só me resta arriscar, então — exclamou para si. — Mas… o que exatamente eu deveria tentar.
Seus olhos se voltaram para o corpo inexistente abaixo de seu pescoço.
— Esse pelo… meu corpo saiu disso no pântano… Será que posso repetir o processo?
Enquanto recordava de como seu corpo ganhou forma ao sair daquele casulo no pântano, Zarek se calou por alguns segundos, direcionando todo o seu foco para a parte de baixo do pescoço. E, como se acendesse uma chama no interior de seu crânio, saiu um clarão pelas órbitas de seus olhos e nariz, o fazendo parar imediatamente.
— Ahn… — gemeu surpreso. — O que foi esse clarão? Fiz algo errado?
Se questionou estático, como se prendesse sua respiração inexistente, enquanto averiguava se algo no ambiente havia mudado.
Mas sem alteração.
Ele ficou assim por alguns instantes, até perceber uma leve oscilação. A sensação de que a sala inteira estava inclinando-se lentamente para um lado tomou conta dele.
— Ehn~? — murmurou, confuso, enquanto tentava se equilibrar.
Mas não era a sala. Era ele quem estava caindo.
Os pelos em seu pescoço se moviam descoordenadamente, e antes que pudesse reagir, Zarek rolou da cômoda e caiu no chão, fazendo um ruído seco de osso batendo no piso.
— Argh… Isso não saiu como planejado.
Ele ficou ali, caído, observando o teto de uma nova perspectiva, sentindo-se um tanto ridículo pela sua tentativa fracassada.
•
Zahara avançava lentamente pela trilha do bosque e, ao se aproximar da saída, enquanto suas mãos protegiam seus olhos dos raios de sol, voltou o seu rosto à frente, avistando um pequeno vilarejo.
E conforme ia se aproximando, os moradores, ao perceberem a sua chegada, começavam a encará-la com olhares de desconfiança, cochichando sons inaudíveis entre si.
“Hospitalidade é uma virtude…”, pensou Zahara, ao presenciar essa reação, e continuou o seu caminho.
A vila apresentava-se como um lugar humilde, mas relativamente bem organizado à primeira vista. Em seus arredores era possível avistar algum gado e moinhos de trigo, que evidenciavam os meios de sustento do vilarejo. No entanto, essa ordem não disfarçava os sinais de desgaste. Os rostos abatidos faziam parecer que eram oriundas de alguma doença que os esgotava.
“Será que eles vão ter como me pagar?”, indagava em sua mente.
Foi quando ela avistou, logo ao lado de um totem no centro da vila, o ancião.
“Parece que já avisaram que eu estava vindo”, observou.
O totem chegava a um metro de altura, totalmente talhado em um tipo de madeira mais escura. A imagem apresentada nela era semelhante a um bebê de cócoras, com uma cabeça protuberante e o rosto voltado para baixo.
Ele emanava uma aura macabra.
E ao lado dele, um homem já de idade avançada, que parecia mal conseguir se sustentar com o cajado em sua mão direita, e um rapaz mais moço que o auxiliava.
Eram as mesmas pessoas que haviam a visitado sucessivamente nessas últimas semanas, pedindo por ajuda.
— Zahara Alba, muito obrigado por ter vindo — disse o ancião com a voz trêmula. — Se você não vinhesse nos ajudar, nós não saberíamos mais a quem recorrer.
Ele inclinou o tronco vagarosamente para frente, se curvando em agradecimento. E o moço, por sua vez, alarmado pela atitude, inclinou-se para sussurrar em seu ouvido:
— Vovô, não precisa fazer isso.
Zahara observando a cena, cruzou os braços e deixou escapar um pequeno suspiro. Então, disse:
— O seu garoto tem razão, senhor Holt. Não há necessidade disso. Não fiz isso por caridade, mas porque vocês precisavam de ajuda e sabiam onde me encontrar.
O ancião ergueu-se lentamente, ainda com um sorriso de gratidão. E, ajeitando o cajado que tremia em suas mãos, falou:
— Você ainda lembra do nome deste velho? Fico grato.
Zahara arqueou a sobrancelha, dando um leve sorriso.
— Como não lembraria? Eldrin Holt, o homem que não sai da minha porta. Não foram poucas as vezes que bateram nela, nessas últimas semanas — Seu tom era jocoso, mas sem perder a cordialidade.
Holt riu levemente, acenando com a cabeça.
— É verdade. Mas o desespero pode nos fazer um pouco insistentes. Você não concorda?
— E acabou valendo a pena — Zahara deu de ombros, indicando com um gesto, para prosseguirem. — Já podemos acertar as coisas?
— Ah sim… nós nunca deixaríamos de pagar alguém por um bom trabalho. Me acompanhe, por favor.
O jovem ao lado de Eldrin observava a interação com uma expressão que misturava curiosidade e ceticismo, mas permaneceu em silêncio enquanto seguiam em direção à residência do ancião.
Enquanto os acompanhava, Zahara observava as ruas de terra batida, desertas, com apenas alguns moradores que os espiavam pelas esquinas e frestas das janelas.
— Depois da guerra… — começou o ancião, como se adivinhasse o que ela pensava — as coisas na vila ficaram mais difíceis.
Ele suspirou, tentando manter o passo.
— Primeiro veio a guerra… e o comércio parou. Depois… bem, depois nos tornamos um lugar esquecido. O Duque dessas terras nos auxiliava nas negociações, mas depois que ele morreu em batalha, perdemos nossos acordos comerciais e as caravanas começaram a evitar nossa vila.
Zahara não respondeu imediatamente. Seu olhar vagou pelos becos e construções deterioradas.
— Isso explica muita coisa — comentou, em um tom neutro.
— Sim, é verdade… — concordou o velho, com um tom de pesar.
A conversa foi interrompida assim que chegaram à casa do ancião.
Ao abrir da porta, um interior modesto foi revelado e uma mesa central, com marcas profundas de desgaste, ocupava o centro do cômodo.
O ancião estendeu a mão, indicando que Zahara entrasse.
— Por favor, sinta-se à vontade — disse, enquanto fechava a porta atrás deles.
O moço, visivelmente desconfortável, permaneceu próximo à entrada, lançando olhares para Zahara. Ela, contudo, manteve-se indiferente, deslizando os olhos pelo ambiente.
O ancião caminhou até um pequeno baú, em cima de um armário no canto do cômodo, e abriu-o, retirando dele uma bolsa de couro.
— Aqui está — Ele estendeu a bolsa para Zahara, hesitando por um momento antes de entregar.
Ela aceitou sem cerimônia, pesando o objeto, antes de avaliar o conteúdo de seu interior.
— Parece justo — disse, enquanto amarrava o saco novamente.
Foi quando o jovem finalmente quebrou o silêncio, falando com um tom pesado:
— É injusto…
Zahara e Eldrin pararam o que estavam fazendo e voltaram a sua atenção para o jovem, que cerrava os punhos ao lado do corpo, enquanto encarava o chão, evitando contato visual com ambos.
— Por que temos que pagar tanto para alguém de fora, enquanto a gente tá sofrendo?
— Zealor… — sussurrou Eldrin, o repreendendo.
Mas ele continuou, ignorando a advertência:
— E, além disso, que tipo de aparição aparece só para devorar o gado e depois some de vista?
Zahara estreitou os olhos, inclinando levemente a cabeça.
“Ops… parece que você tem um argumento”, pensou consigo mesma, mantendo-se em silêncio.
O ancião interveio, colocando uma mão no ombro do jovem.
— Por favor, perdoe o meu neto, Zahara. Ele não quis soar tão rude. Zealor fez o curso para a guarda de Helgrath, então ele acaba entendendo mais dessas coisas do que o restante de nós. Ele só está sendo cauteloso pelo nosso bem.
Zealor virou o rosto abruptamente, claramente irritado com a postura do avô.
E Zahara, observando a atitude de ambos, permaneceu em silêncio por um instante.
“Parece que você vai ficar me devendo mais do que esperava, Edrik”, refletia consigo mesma, até que finalmente interrompeu ambos.
— Você tem razão em questionar as coisas, garoto — seu tom, firme, carregava um toque de paciência. — Mas há maneiras melhores de fazê-lo.
Ambos voltaram a atenção para Zahara, que começou a girar a bolsa de dinheiro pelo cordão, despreocupadamente, antes de continuar:
— Quanto à sua pergunta, você está certo sobre o comportamento ser estranho. — Zahara pousou a bolsa na mesa. — Mas, na verdade, o malfeitor não foi uma aparição profana.
A sobrancelha do pai e do filho se curvaram no momento em que ouviram o que ela disse, com uma confusão evidente em seus olhares. Contrastando com o sinuoso sorriso que emergia nos lábios de Zahara.
— Não foi? — questionou o ancião.
— Não. Era uma natural.
— Natural? — questionaram em uníssono.
— Você deve saber alguma coisa sobre elas também, não? — indagou, direcionando novamente seus olhos para Zealor.
Em resposta, ele franziu a sua testa enquanto seu olhar começou a vagar pelas bordas de seus olhos, como se tentasse fisgar algo em sua memória.
“Parece que mordeu a isca”, pensou Zahara, enquanto o observava de canto de olho.
— Na verdade, eu sequer pude matá-lo — continuou com sua dissimulação. —
Por isso, não estou com o corpo. Aquela raposa era, realmente, esguia…
— Raposa? — questionou Eldrin, tentando acompanhar a conversa.
— Mas… — disse Zealor, quebrando o silêncio — por que apareceria uma por aqui, do nada?
Seu tom, antes de indignação, parecia ter dado espaço para uma autêntica expressão de dúvida com curiosidade.
— Provavelmente isso é devido ao aumento de aparições — respondeu Zahara —, é normal que alguns deles tenham características migratórias quando o seu hábitat é violado.
Aos olhos de Zahara, parecia que o garoto, perdido em pensamentos, já havia sido convencido. Porém, Eldrin interveio com outra indagação.
— Essas aparições se alimentam de seres vivos?
— Na verdade, não — respondeu Zealor, inesperadamente. — Mas se tiverem a aparência de um animal, elas podem acabar imitando o comportamento deles.
Aproveitando a sua aparente vitória, Zahara utilizou da distração dos dois e deslizou lentamente os seus dedos sobre a mesa para alcançar o seu prêmio, enfiando-o sorrateiramente entre os seus seios, caindo e ficando preso em seu corset.
“Já está bom de trabalho por hoje”, pensou consigo mesma, soltando um pequeno suspiro de cansaço. Em seguida, se direcionando para ambos:
— Bem… como eu havia dito, eu não consegui matá-la. Mas tomei algumas precauções para garantir que ela não volte, e eu indico que vocês façam o mesmo. Como luzes e colocar pessoas para ficarem de guarda.
— E armadilhas? — Questionou Eldrin.
Zahara ouviu a pergunta de Eldrin e refletiu por um instante se essas armadilhas poderiam ou não, ser algo perigoso caso uma pseudo raposa fosse pega por elas, e depois de alguns segundos, ela o respondeu:
— Vocês podem tentar, mas ela parecia bem esperta. Creio que colocar pessoas de guarda seja mais… efetivo — “seguro”, era a palavra que estava em sua mente. — Nada melhor para afugentar lobos e raposas do que um bom pastor, não é mesmo?
— Humm… eu vejo — respondeu Eldrin, enquanto massageava o seu queixo.
Ao ter dado um fim às indagações, Zahara se viu pronta para partir, mas antes que pudesse dar o primeiro passo, um som agudo e estridente cortou o ar.
Era um grito, acompanhado de murmúrios e sons de passos apressados que vinham do lado de fora da casa.
— Está acontecendo algo? — perguntou Zahara, andando apressadamente em direção à janela.
Ao ver o que estava acontecendo, suas sobrancelhas se arquearam ligeiramente.
Alguns aldeões arrastavam um bezerro relutante até o centro da vila, para diante do totem, enquanto várias outras pessoas saíam de suas casas e começaram a se reunir para presenciar o ato.
Murmúrios e olhares ansiosos preenchiam aquele ambiente.
Eldrin se aproximou, começando a espiar pela mesma janela que ela, dizendo com uma expressão serena:
— Parece que passamos bastante tempo conversando, já está na hora de oferecer o sacrifício do deus Tamir. Isso faz com que ele não mande aparições para nos atormentar.
“Um sacrifício de sangue para apaziguar a ira de um deus”, pensou consigo mesma.
— Tenho que me apressar, venha Zealor, e traga o punhal.
Zealor se apressou em pegar de dentro do baú um objeto que estava envolto em um emaranhado de panos. Ele o segurou com cuidado, como se fosse algo sagrado, e caminhou até Eldrin.
Os dois seguiram em direção à porta até que Eldrin voltou seu olhar para Zahara:
— Venha Zahara, você é nossa convidada. Pode nos acompanhar, se desejar.
Em resposta, Zahara apenas acenou com sua cabeça e começou a segui-los em silêncio, sentindo uma certa curiosidade.
Ao chegarem ao centro da vila, os aldeões deram espaço para Eldrin e Zealor entrarem no círculo, e Zahara se posicionou do lado de fora, apenas observando o que estava prestes a acontecer.
Sua expressão permaneceu impassível enquanto observava o bezerro, que choramingava, sendo forçado a se ajoelhar diante da imagem. Eldrin entregou suavemente o seu cajado para Zealor que, em contrapartida, entregou o emaranhado de panos com ambas as mãos.
Eldrin aceitou com reverência e começou a desenrolar o tecido, revelando um punhal. Sua lâmina era negra e seu cabo parecia ser feito com uma madeira similar à do totem, uma madeira escura.
E então, Eldrin, concentrando-se para manter-se de pé, posicionado entre a estátua e o bezerro, ergueu o punhal com as duas mãos para os céus, como se estivesse acenando para que fosse visto, e começou a falar:
— Para que sua sede não nos tire o nosso sangue, e sua fome não nos arranque nossa carne, que nossa oferenda amenize a sua fúria.
Em seguida, fez a lâmina descer rapidamente, até a nuca do animal.
Um jato de sangue jorrou, tingindo a base e a cabeça do totem, e um silêncio reverente caiu sobre os aldeões.
Eldrin levantou novamente a lâmina e o apunhalou mais uma vez, depois mais uma… e outra vez. E continuou, enquanto o sangue jorrava, até que o animal foi finalmente decapitado.
Zahara permaneceu inexpressiva enquanto observava o sangue da pobre criatura escorrer pelo corpo do totem, até que sentiu o canto de seu nariz se contrair involuntariamente. Um sinal sutil de desconforto.
“Tamir, o Deus do Caos. Enquanto uns veneram o que os inspiram, outros veneram o que temem.”
De repente, uma leve palpitação em seu peito chamou a sua atenção. Zahara desviou o seu olhar para baixo, onde a marca do pacto havia sido desenhada em sua pele, e viu um brilho suave emanando dela.
Apesar da surpresa, ela manteve sua expressão calma, discretamente puxando sua camisa para cobri-la, passando os dedos pela gola como um gesto corriqueiro.
“Acho que já deu a minha hora”, pensou consigo mesma, enquanto começava a se distanciar discretamente em direção à saída da vila. “Divirtam-se com a sua… celebração. Ou seja lá o que for.”
E assim que Zahara já estava no limite da vila, lançou um último olhar por cima do ombro para o totem maculado de sangue. E então, sem mais palavras, seguiu pela trilha que a levaria para longe dali.
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