Capítulo 7 - Sol Cinza
Naquela tarde, as nuvens no céu faziam aparentar que o sol já não tinha muita intenção de aparecer nesse dia, deixando ainda mais cinza as paredes de tijolos de pedra. Enquanto a brisa suave, que vinha rasteira, arrastava com ela a poeira e as folhas das árvores minuciosamente podadas do quartel.
E escorada lá, debruçada sobre o corrimão da galeria, estava Elise, que brincava distraidamente com a ponta de seu rabo de cavalo, parecendo totalmente absorta em seus próprios pensamentos.
Trajada com uma camisa de botões, uma calça e uma bota, todos de coloração preta. A única coisa que se destacava, fazendo par com os seus cabelos loiros, eram as ombreiras com o brasão do reino. Suas vestes negras pareciam se mesclar naquele ambiente quase monocromático.
— Já tá quase na hora — balbuciou, soltando um suspiro melancólico.
“Eu nem tive a chance de conhecer eles direito…”
Seu olhar vagou pelo pátio abaixo, observando alguns soldados que passavam apressados, entrando e saindo pelas portas do salão, e outros que, reunidos em pequenos grupos, conversavam e riam como de costume.
“…e ainda assim, parece que estão todos levando melhor que eu.”
Elise apertou levemente a borda do corrimão, sentindo a textura fria e áspera sobre os seus dedos, antes de simplesmente soltar, desistindo.
Enquanto estava cabisbaixa, mergulhada em seus pensamentos, Elise simplesmente não percebeu que alguém se aproximou dela e parou ao seu lado.
— Elise, achei que já tinha ido — disse, a surpreendendo — está passando bem?
E ela ergueu a cabeça rapidamente.
Era Darius, com o mesmo sorriso pacífico de sempre. Vestido com roupas que se assemelhavam às de Elise, ele trazia um sobretudo que cobria o seu braço amputado.
“Parece que sou só eu mesmo”, pensou conformada.
— Ah, cap… sen… sim. Eu só… — respondeu, vacilante.
Darius inclinou suavemente sua cabeça, um pouco confuso.
— Pode me chamar só de Darius… Lenoir se preferir — disse sereno, se debruçando sobre o corrimão, ao lado dela.
— Ah… sim. Darius… como o senhor consegue?
— Hmm? Consigo o que?
— O senhor foi quem mais perdeu, mas parece indestrutível.
— Humm… Não sei se indestrutível é cabível para mim — respondeu, enquanto balançava o seu ombro aleijados, como se tentasse fazê-la rir.
Mas sem sucesso.
Darius permaneceu em silêncio por um momento, olhando enquanto as pessoas se moviam no andar de baixo, e voltou a falar:
— Porque, para mim, continuar em frente é o melhor que eu posso fazer por quem se importou comigo.
Elise fixou seus olhos no rosto de Darius, que parecia esboçar um pequeno sorriso, mas com um peso inegável em seus olhos.
“É como uma muralha”, pensou consigo mesma.
E Darius se voltou para Elise, retornando a sua expressão serena.
— É só a opinião de um velho, mas acho que você não deveria se comparar com os outros. Todos devem ter seu luto. Eu posso estar sorrindo, mas não quer dizer que não doa. Só que… eu já tive o meu tempo para chorar.
As palavras dele pareciam penetrar fundo, fazendo Elise desviar o olhar rapidamente, tentando disfarçar a expressão de pesar que ameaçava transparecer.
Antes que pudesse dizer algo, o som de um sino ecoou pelo quartel, e todos os soldados que lá estavam, começaram a caminhar em direção à saída.
Darius, percebendo o movimentação, ajeitou a postura e se espreguiçou, alongando suas costas.
— Já está na hora. Você vêm?
Elise ergueu o olhar e assentiu.
•••
“Enquanto os tambores batem, como se simulassem as batidas de um coração que para de bater lentamente, os caixões descem para os seus devidos túmulos. É como se fosse uma alusão ao término de uma história, onde a última batida vem com a última carrada de terra que os engole de uma vez por todas.
E, ao fim do rito, após as últimas palavras serem ditas e os tambores se silenciarem, o nó na garganta é inevitável. O vazio do silêncio faz o ar parecer tão pesado que fica difícil de respirar.
E todos começam a se dispersar lentamente. Alguns permanecem em silêncio ao redor das sepulturas recém-cavadas, enquanto outros oferecem apertos de mão.
Tudo tão leve, que parece dissonante à brutalidade a qual os que estão ali foram submetidos”
Suas observações vagavam em sua mente, como em um transe, enquanto assistia ao pequeno evento se encerrar, quase como se fosse apenas mais uma ocorrência trivial. As duas lápides pareciam desaparecer entre tantas outras.
Enquanto isso, Darius olhava fixamente para as placas de pedra lapidada, que agora carregavam os nomes de Liam e Nord.
Darius deu um pequeno suspiro, e virou o seu rosto para olhar para os outros que já estavam partindo. Foi nesse momento que avistou algo à distância, entre os soldados que começavam a deixar o local. Ele estreitou os olhos e, por fim, sorriu.
— Filho da mãe… — xingou baixinho, gritando em seguida. — Koen! Você veio.
“Koen…?”, pensou Elise, ponderando o porquê o nome soava familiar, mas com sua mente ainda turva pelos fatos recentes.
Elise seguiu os olhos de Darius até que viu uma figura ao longe. Era um homem grande de ombros largos, e seus cabelos castanhos pareciam com fogo de tão desgrenhados.
E ao perceber que tinha sido avistado, soltou uma leve risada e aproximou-se com passos largos.
— Atrasado… Só consegui me livrar agora do serviço — respondeu.
Darius deu um passo à frente e estendeu a mão que lhe restou, que Koen apertou vigorosamente, seguido de um leve tapa nas costas.
— Não importa, você está aqui.
Koen desviou o olhar para o braço ausente de Darius e depois para as lápides, fazendo o seu sorriso murchar levemente.
— Cara… como que isso foi acontecer — questionou, ainda um pouco cético sobre o que estava vendo.
— Ninguém esperava por isso — respondeu Darius, se voltando novamente para as lápides. — A gente deu de frente com uma coisa anormal.
Koen passou a mão pelo cabelo desgrenhado, bagunçando-o ainda mais.
— Eu vi os relatórios… por que uma merda como aquela estaria no pantano?
— Não tenho nem ideia. Já faz quantos anos? Vinte? Eu nunca presenciei nada como aquilo.
Enquanto os dois estavam conversando, Elise achou o comportamento de Koen um tanto quanto peculiar. A forma que ele gesticulava amplamente, os ombros largos, mas caídos, unidas às suas palavras totalmente informais, quase irreverentes.
“Parece que ele está em um piquenique”, pensou ela, observando com uma expressão neutra.
Ambos se calaram, deixando o silêncio preencher o espaço entre eles, enquanto olhavam para as sepulturas. E Elise, que observava a interação em silêncio, desviou o olhar, desconfortável com o peso da conversa.
— Eles eram fodas, não mereciam isso — murmurou Koen, quebrando o silêncio.
— Ninguém merece — respondeu Darius, com sua voz carregada de tristeza.
Ele então virou-se para Elise, que permanecia um pouco afastada, e disse:
— Elise, este é Koen. Acho que já falei dele antes.
Koen virou levemente o rosto para ver com quem Darius estava falando, sendo surpreendido, como se por um momento pensasse que estivessem sozinhos ali.
— Ahh… cara… perdão, deixa que eu me apresento.
E Como se toda a informalidade tivesse evaporado, endireitou os seus ombros, como se subitamente fosse um soldado em formação, e caminhou em sua direção com passos firmes.
Quando ele parou à sua frente, inclinou-se levemente em uma reverência que parecia destoar completamente de sua atitude anterior.
— É um prazer, me chamo Koen, Koen Holgrim. Eu ouvir falar muito de você.
— De mim? — respondeu, enquanto piscava surpresa com a mudança.
“Então ele sabe ser formal quando quer…”, pensou ainda assimilando o contraste em seu comportamento.
— Sim… a novata que afugentou a criatura. Elise Arden, certo? Você mandou bem! — disse, enquanto cerrava o punho frente ao seu coração, como se reafirmasse a força de suas palavras, enquanto a encarava com um olhar intenso.
Porém, ao ouvir tais elogios, Elise sentiu algo muito diferente do esperado. Em vez de gratidão ou orgulho, o que emergiu foi uma sensação incômoda de vazio.
“Ótimo trabalho…” repetiu em pensamento, enquanto seu peito parecia pesar mais. O sentimento de insuficiência que ela tentava ignorar ainda sussurrava em seu coração.
Ela desviou o olhar, encarando o chão, enquanto as palavras dela saíram quase como um sussurro:
— Não foi nada.
Nesse momento, Koen deu um passo para trás, sentindo como se tivesse dito algo de errado, e olhou em direção a Darius, como se pedisse por socorro.
Em resposta, ele apenas começou a dar tapinhas em seu ombro, como se entendesse sua dor.
— Ela ainda precisa de um tempo… — disse Darius.
Após todos terem dado suas homenagens aos companheiros caídos, eles começaram a se retirar com os outros para a entrada do cemitério, e Darius continuou sua conversa com Koen enquanto Elise se manteve atenta ao passo que os acompanhava logo atrás.
— E como vão às coisas na guarda interna?
— Hah… — Koen soltou uma risada curta — tudo o que você imagina é verdade… lidar com a nobreza é tenso.
— Humm… — Darius sorriu levemente, fazendo um bico para disfarçar — e as aparições, muita coisa estranha?
Conforme Darius falava sobre trabalho, a postura de Koen parecia murchar novamente. Seu caminhar tornou-se mais lento, e seus ombros caíram, como se o peso do tema o pressionasse de volta à realidade. Cada passo parecia mais arrastado, como alguém exausto, a reviver memórias desconfortáveis.
E Elise, ao ouvir um assunto que a interessava, começou a se aproximar um pouco mais da dupla para ouvir o que ele tinha a dizer.
— Cara… é realmente mais medonho. Tirando os comuns… às vezes aparecem uns anormais. São poucos, mas… são bem mais imprevisíveis. A gente fica de olho na concentração de zeladores do local, mas parece que enquanto olhamos para um canto, eles surgem em outro. Eles são mais… safos, sabe?
— Safos, é? — Darius começou a coçar a nuca enquanto olhava para o céu como se tentasse imaginar, até que ele lembrou de algo, fazendo seu rosto ficar mais sério. — Ah! Koen, você disse que leu os relatórios. Me diz… aquela coisa parece com algo que já tenha visto?
Assim que as palavras de Darius ecoaram no ar, Elise sentiu uma pontada de curiosidade pulsar em seu peito. Suas pequenas orelhas pareceram se mover instintivamente, contraindo-se levemente, como se buscassem captar melhor o que seguiria.
E Koen, percebendo a súbita intensidade no ambiente, franziu a testa e desviou o olhar para o chão por um momento, como se estivesse tentando organizar seus pensamentos.
— Humm… honestamente, tem uma ou outra similaridade com algumas coisas no bestiário, mas nada que bata com a descrição.
— Então é assim… — disse Darius enquanto começava a alisar o seu queixo.
“A guarda interna recebe um treinamento muito mais dedicado, inclusive no estudo das aparições”, pensou Elise, sentindo o peso da incerteza apertar seu peito. “Se nem mesmo eles sabem o que é aquela coisa…”
Ela ajustou o ritmo de seus passos, agora caminhando lado a lado com Darius e Koen, mas com o olhar perdido à frente.
Enquanto isso, Koen continuou com o diálogo:
— Posso citar uns dois ou três que se regeneram ou mudam de forma, mas… sabe o que pega? — Koen olha para Elise, que agora caminhava entre ele e Darius a passos rápidos, atenta na conversa. — Aquele crânio de dragão. Era algo assim, certo?
— Ahn?
Ao perceber que Koen havia parado de falar e ambos os homens voltavam seus olhares para ela, Elise piscou rapidamente, retornando ao presente.
— Ah, sim! Foi a única parte que não regenerou e nem mudou de forma.
— Pois é… e o fato de aquela ser, possivelmente, a única parte real faz tudo ficar estranho. Ele não se encaixa em nada. Nesse momento, deve ter um ou dois efetivos inteiros revirando a Biblioteca das Luzes, em busca de algum documento que possa apontar algo.
— Entendo — respondeu Darius, reflexivo. — Eu esperava que talvez alguém da guarda interna tivesse alguma ideia do que seria isso. Mas pelo visto, não é o caso.
“Guarda interna…”, repetiu Elise, em seus pensamentos, como se essa palavra fizesse parte de um quebra-cabeça ao qual ela estivesse tentando montar. “Koen… da guarda interna?”
Quando as peças aos poucos começaram a parecer se juntar, de repente, ela o chamou, com uma voz um pouco mais firme.
— Senhor!
— Hum? — respondeu Koen, voltando o rosto para Elise, com uma expressão de curiosidade.
— O Liam havia me dito… O senhor tem a manifestação do fogo, não é?
Ao ouvir a pergunta, Koen se surpreendeu por um instante. Respondendo em seguida:
— Ehn… sim.
Elise parou de andar, seu olhar baixando para o chão enquanto sentia o peso das palavras que estavam por vir. Seus olhos começaram a se umedecer pela primeira vez, como se o estado de choque que ela vinha reprimindo finalmente estivesse se desmanchando.
— Se o senhor estivesse lá… — sussurrou ela, com sua voz quase se quebrando.
Koen também parou, girando ligeiramente o corpo para encará-la. Ele abriu a boca para dizer algo, mas nenhuma palavra saiu. Fechou-a novamente, apertando os lábios como se tivesse sentido um gosto amargo.
Elise apertou as mãos, como se quisesse conter a maré crescente de emoções.
Por fim, Koen apenas soltou um suspiro, com sua expressão suavizando, mas agora, voltando a sua postura intrincada.
— Talvez… mas ninguém pode prever essas coisas.
Darius deu um passo à frente, colocando uma mão gentil no ombro de Elise.
— Você fez o que era possível, Elise. Se você não estivesse lá, nem eu estaria vivo.
Ela ergueu o olhar, encontrando a expressão serena de Darius, quase angelical. Era como a expressão de um santo. Era um misto de compreensão e compaixão, e, por um momento, isso pareceu amenizar a turbulência em seu peito.
Quando chegaram à entrada do cemitério, o trio parou para dar suas últimas palavras.
— Você já vai voltar? — indagou Darius a Koen.
Koen ergueu uma de suas sobrancelhas e cruzou os seus braços, dando um sinuoso sorriso de canto de boca.
— Acabei de sair da capital, já tá querendo me mandar pra lá de novo?
— Não… longe de mim — respondeu Darius, rindo levemente. — É que eu estava pensando em sair para beber.
— Não precisa nem falar duas vezes — disse Koen, quase o interrompendo.
Darius sorriu, e então voltou o seu olhar para Elise, que parecia perdida em seus pensamentos.
— E você Elise? Você continua de licença, certo? Quer beber um pouco?
Elise piscou, dando um sorriso um pouco constrangido. Seus olhos inchados pareciam querer se esconder, talvez pelas palavras que disse anteriormente.
— Na verdade, eu acho que vou passar dessa vez. Ainda preciso resolver umas coisas…
— Hum… entendo. Só não vai se sobrecarregar, ok? — disse Darius, com um tom de preocupação.
— Certo… — Elise sorriu novamente, mas com dificuldade de manter contato visual.
Foi então que Koen interveio, como se para aliviar a tensão e reduzir a distância que sentia entre eles:
— Bebida é sempre melhor quando tem mais gente. E nessa época do ano, a cerveja está no seu ápice.
Elise ergueu ligeiramente o olhar, surpresa pelo comentário descontraído. Havia algo no tom de Koen que parecia genuíno, quase caloroso. Como se nenhuma de suas palavras sequer tivessem lhe afligido.
— Da próxima… — respondeu baixinho, mas depois aumentando o seu tom para que fosse ouvida — Da próxima eu vou, com certeza!
Elise deu um leve sorriso, ainda um pouco hesitante, mas mais sincero.
— É o que eu gosto de ouvir! — Koen bateu de leve no ombro de Darius, sorrindo. — Ela prometeu, hein. Anota aí, Darius.
Darius deu uma risada baixa, balançando a cabeça.
— Claro! Vamos manter seu lugar aquecido.
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