“Certo, acho que estou conseguindo”, pensou consigo mesmo Zarek, enquanto parecia começar a conseguir se equilibrar em seus tentáculos.

    As fibras em seu pescoço se contraiam e se expandiam, enquanto ele balança de um lado para o outro. Ele olhou para seus pés, tentando entender como estava fazendo aquilo. 

    “Não era bem isso que eu estava pensando”, resmungou em sua mente. “Aquela forma no pântano, saiu tão naturalmente… por que agora, esse corpo de polvo?”

    Apesar de seus esforços de tentar replicar sua forma anterior, tudo o que conseguiu foi deixar a penugem em seu pescoço um pouco mais “animada”. Mas ao menos serviu para dá-lo “pernas”.

    “Talvez eu ainda não esteja recuperado?”

    Agora que parecia ter conseguido conquistar um nível de estabilidade, ele começou a olhar a sua volta, buscando entender o seu novo habitat.

    A cômoda a qual ele havia caído parecia ser o único ponto de organização no caos daquele quarto. Em contrapartida, o restante estava tomado por uma desordem curiosamente funcional. 

    As paredes lotadas de prateleiras, que acomodavam potes e mais potes. As estantes que pareciam cumprir a mesma função, reservando espaço para uma ou outra coisa distinta. Nem mesmo o chão ou o teto estavam ilesos de ter suas extremidades cobertas. Livros empilhados e ervas secas penduradas enchiam o lugar.

    Tirando isso, havia também uma lareira e um pequeno caldeirão.

    “Ela com certeza é… ocupada”, pensou enquanto varria a sala com seus olhos.

    Foi nesse momento que então direcionou sua visão para a mesa no centro da sala.

    Seus tentáculos começaram a se esticar em direção a ela, tateando o ar, até finalmente conseguir se impulsionar e subir ao seu topo, onde encontrou mais alguns livros. E ao começar a se arrastar entre eles, um pequeno livro chamou a sua atenção.

    Era um livro fino com uma capa de couro envelhecido e páginas extremamente gastas, que se encontrava aberto, atraindo-o para o conteúdo.

    Ele se inclinou para mais próximo do livro, deixando-se levar pela curiosidade.

    A página exibia um esboço de sua própria forma, de quando ela o encontrou no pântano, e ao lado do desenho estava escrito “O Estigma do Rei”.

    A ilustração estava cercada por várias setas e anotações.

    “Núcleo localizado no crânio; 

    Comportamento atípico, não hostil, mas reativo;

    Sinais de racionalidade com inclinação para autopreservação;”

    Enquanto estava vidrado nos esboços de Zahara, sua mente se focou em um pequeno trecho que ressoou em sua mente, de uma forma um tanto incômoda.

    “Cauda fibrosa transmorfa. Corpo incompleto ou fase embrionária?”

    — Incompleto… — repetiu desconfortável com a descrição, o fazendo levantar um de seus tentáculos e o encarando com um certo descontentamento. — Por que você não faz como antes? — perguntou como se realmente aguardasse por uma resposta.

    Acabou que, nesse pequeno momento de distração, ao tentar virar a página para continuar lendo, um de seus tentáculos se excederam em força, soltando uma chicotada à sua frente, arremessando a maioria dos livros e o caderno de anotações para fora da mesa. 

    Zarek congelou no momento em que ouviu o som abafado dos livros caindo ao chão.

    — Ah~ — gemeu sem reação enquanto observava os livros se espalhando. — Você fez de propósito? — indagou encarando o tentáculo novamente, como se realmente acreditasse nisso.

    Assim que se recompôs, esticou seus tentáculos para descer da mesa para olhar mais alguns livros.

    Seus olhos recaíram sobre a capa de um livro grosso, com suas quinas ornadas em algum tipo de metal dourado, bastante chamativo.

    Zarek forçou a fagulha de seus olhos tentando decifrar o título, que parecia ter se apagado com o tempo.

     — Cha… chalytra? — gaguejou estranhando a pronúncia, perdendo o interesse rapidamente voltando sua atenção para outro que se encontrava aberto com mais ilustrações.

    Ele se aproximou e inclinou-se para mais perto para observar.

    Era um atlas… com mapas que registravam um extenso continente. O curioso, porém, era como os períodos se alteravam.

    Cada página representava uma era distinta, como se ele fosse um testemunho do passar do tempo.

    Zarek virou as páginas com seus olhos vidrados nas imagens.

    Em cada registro, territórios surgiam e ganhavam nomes, enquanto as fronteiras de reinos mudavam em um ciclo interminável. Alguns expandiam-se, outros encolhiam ou desapareciam para sempre. Contudo, poucos resistiam ao teste do tempo, permanecendo por todas as eras como testemunhas de sua própria força.

    Entre eles, um se destacava.

    O ascendido império do leste, nomeado de Vardal, protegido por montanhas e rios, marcado por um brasão que o diferenciava de todos os outros.

    Ao pousar os seus olhos no último registro do livro, ele permanecia lá.

    — Parece próspero — murmurou para si, enquanto deslizava seus tentáculos pela página.

    Além dele, havia os outros cinco reinos:

    O Reino do Sul, Nihekate;
    O Reino do Noroeste, Hjarta;
    O Reino de Makajin, na região nordeste;
    O Reino do Sudeste, Keden;
    E o Reino de Helgrath, a oeste.

    Sendo logo ao lado de Helgrath, o Pantano de Noin.

    Seus olhos vagaram pelo mapa com certa curiosidade.

    — Hummm… é mais ou menos por aqui que estou. Ou já não mais? — sussurrou enquanto começava a olhar para as paredes e para o teto do quarto, buscando algo que pudesse trazer luz a sua dúvida. — É difícil saber aqui de dentro.

    Naquele instante ele contemplou brevemente sua própria situação, e aquele quarto começou a parecer um tanto quanto… limitado.

    Seus olhos se direcionaram em direção à única porta do quarto.

    — Será que… eu posso sair? — se questionou, com seus olhos fixos na fechadura, só que dessa vez, recuando hesitante, voltando a direcionar-se para os livros novamente. — Talvez eu devesse primeiro aprender um pouco mais.

    Ele começou a enrolar seus braços em cada livro, os recolhendo e empilhando de volta em cima da mesa. Até que encontrou no meio deles uma única página sozinha que parecia ter caído de algum dos que estavam ali.

    Ela aparentava estar ilustrando uma imagem de algumas criaturas humanoides, mas não estavam tão nítidas quanto as outras, se tornando quase incompreensível. Zarek apenas a recolheu e a pôs, com o restante dos livros, sob a mesa.

    — Oh… isso está ficando mais fácil — murmurou, enquanto suspendia alguns livros de uma só vez.

    Terminando a “faxina”, Zarek começou a testar suas habilidades, esticando seus tentáculos ao máximo e tentando dividi-los em múltiplas extensões. O experimento trouxe à tona uma curiosa relação.

    Quanto mais ele dividia suas fibras em múltiplos braços, mais finas e frágeis elas se tornavam, aproximando-se da espessura de um fio de cabelo humano, mas isso os tornava virtualmente inúteis — incapazes de sustentar peso ou exercer força. O limite prático para manter funcionalidade era algo mais grosso, como uma mecha ou trança, o que ainda era fino, mas forte o suficiente para agarrar objetos leves e manter sua estabilidade.

    A distância máxima que conseguia alcançar variava proporcionalmente à espessura. Com um único braço robusto e espesso, conseguia se estender até quatro metros antes que sua força começasse a se esvair. Já ao multiplicar seus braços em dezenas de extensões finas, mal conseguia ultrapassar meio metro sem que as fibras começassem a ceder.

    — Dois tentáculos funcionam bem… mas para andar, seis a oito dão mais equilíbrio — observou consigo mesmo, enquanto balançava dois livros de um lado para o outro — hummmmm… isso não parece incompleto para mim. Como era a palavra…? Versátil, eu acho.

    Enquanto Zahara se aproximava de sua casa, podia ouvir diversos ruídos do lado de dentro, fazendo parecer que alguém pudesse tê-la invadido.

    Foi quando, Zahara pegou a borda de seu vestido e o amarrou com firmeza, de maneira que ficasse mais curto, para que não a atrapalhasse enquanto se preparava para investigar.

    Apesar de ela morar em meio a floresta, não era normal que animais simplesmente entrassem em sua casa, até porque, suas janelas ficavam a maioria do tempo fechadas, e como averiguou, elas permaneciam intactas. A porta da parte de trás, onde ela mantinha uma plantação, também não foi arrombada e nem nada.

    Mas, então… por que vinham tantos barulhos do lado de dentro?

    Foi então que ela se encontrou de frente para a porta principal, encarando-a.

    — Será que ele ficou finalmente insano? — se questionou enquanto ouvia a barulheira do lado de dentro. — A marca reagiu naquela hora, mas eu não senti hostilidade.

    Ao passo que ela passava a mão em seu queixo, pensativa, o seu olho direito começava a se contrair com pequenos espasmos, denunciando sua impaciência, até que simplesmente cansou de ser cautelosa e resolveu entrar em sua residência.

    Com passos suaves, ela se aproximou da porta, colocando as chaves na fechadura e a girando. Ao abrir a porta sorrateiramente, ela espreitou pelo corredor. 

    — Hummmm… nada aqui. — disse, enquanto virava os olhos de uma lado para o outro.

    Assim que entrou, começou a avançar pelo corredor, olhando pelas portas para ver se via alguma anormalidade, entretanto estava tudo exatamente da mesma forma que ela havia deixado.

    — Quarto e sala, tudo certo…

    Seus olhos se voltaram para a penúltima porta, do lado esquerdo do corredor, e começou a caminhar em direção a ela. A esta altura, os ruídos já haviam cessado.

    Assim que chegou até a porta, ela segurou na maçaneta e começou a refletir consigo mesma:

    “Se ele ficou insano, eu vou ter que dar um jeito de contê-lo. Eu não posso simplesmente me dar ao luxo de me livrar dele”, seu rosto se virou para a marca em seu peito. “O pacto ainda parece estar ativo…”

    O seu olho direito outra vez começou a ter espasmos, a fazendo colocar sua mão sobre ele como se quisesse acalmá-lo.

    “Ahh… eu estou realmente exausta. Aconteceu muita coisa em pouco tempo, eu não durmo há dias.”

    Assim que ela terminou suas lamentações, se preparou para abrir a porta. E assim o fez, abrindo-a o mais rápido que pode, atenta para um possível confronto. Mas o que viu dentro de seu escritório não era o esperado.

    Nem um crânio estático sobre a cômoda, a encarando como se fosse uma decoração com olhos, e nem mesmo um demônio faminto por destruição, mas Zarek, suspenso no que pareciam cordas que vinham de baixo do seu pescoço, que o prendiam nas prateleiras do cômodo.

    Zahara simplesmente parou, inexpressiva, tentando processar o que estava vendo.

    — O que…? — As palavras saíram da boca de Zahara, com certa hesitação.

    E Zarek, ao vê-la na porta, deslizou distraído, deixando um de seus braços soltarem, o fazendo cair, porém, dessa vez… conseguindo aterrissar de “pé”.

    — O que você… está fazendo? — perguntou Zahara, mais uma vez, enquanto o encarava com uma expressão descrente.

    — Aprendendo — respondeu ele, com seus olhos parecendo brilhar mais intensamente.

    — Aprendendo…? — repetiu incrédula, franzindo sua sobrancelha.

    Ela começou a analisar o estado do quarto, para ver se ele havia feito algum estrago, andando em direção ao crânio e parando na frente dele.

    O quarto parecia estar totalmente intacto. 

    Ela estendeu a sua mão para ele como se esperasse por algo, e Zarek pareceu responder favoravelmente, estendendo seus tentáculos até a sua mão e aterrissando sobre ela.

    Zahara franziu sua testa, voltando a refletir:

    “Foi por isso que a marca reagiu?”, se perguntou em pensamentos. “Ele provavelmente interagiu com a marca involuntariamente para poder ter energia para fazer isso.”

    Ela encarou fixamente o crânio em seus olhos enquanto ele parecia fazer o mesmo.

    “Você é uma aberração totalmente singular.”

    Foi quando sua visão, por um breve momento, começou a se turvar, e ela cambaleou levemente. E Zarek observou curioso o seu estado.

    — E o que você aprendeu? — indagou ao crânio em sua mão, parecendo querer desviar sua atenção. E os olhos de Zarek pareceram voltar a queimar mais intensamente.

    — Você disse que eu estou incompleto, mas meu corpo ainda parece ser bem funcional — respondeu.

    — Eu disse? — Zahara retrucou, confusa.

    E ele esticou um braço em direção da mesa, buscando o pequeno livro de anotações de Zahara, e o entregou em sua outra mão.

    — Você leu isso? — perguntou encarando o caderno, parecendo ainda mais confusa.

    — Um pouco… — respondeu cauteloso pelo tom dela.

    Zahara soltou uma risada baixa, quase que sem querer.

    “Ha… ele sabe ler agora…”, pensou, sentindo uma estranha sensação de perda de sanidade diante da situação absurda.

    — Não podia ter lido? — Indagou Zarek.

    — Acho que isso é o que menos importa aqui — respondeu, o pondo sobre a mesa.

    “Fala, pensa e lê também… em um mundo do onde quase ninguém é alfabetizado”, Zahara encarou Zarek mais uma vez. “Isso é porque você é a representação de um rei?”

    Enquanto ela o olhava nos olhos, ela viu por de trás de suas brasas a marca que havia desenhado em seu interior, e refletiu mais profundamente.

    “Me pergunto se o fato de você ser esperto pode subjugar o meu controle. Se isso for possível, todo esforço que tive até agora pode se tornar inútil.”

    — Zarek. — disse se direcionando a ele.

    — Sim… — respondeu, curioso.

    “É melhor eu botar isso a prova agora…”

    — Você parece cooperar bem. Mas não sei dizer em que ponto isso é coisa sua ou se é devido ao pacto — Zahara deu as costas, começando a se distanciar de Zarek. — Então vamos fazer mais um estudo, juntos.

    “… antes que isso possa se tornar problema para mais alguém”

    — Humm… e o que você quer que eu faça? — perguntou.

    E Zahara, assim que chegou a uma distância adequada, virou-se para ele.

    — Sendo direta, vou lhe dar uma ordem simples, e preciso que você a obedeça.

    O crânio assentiu com a cabeça, aguardando o comando.

    Por uns segundos, ela apenas fechou os seus olhos, como se estivesse meditando, mas logo em seguida os abrindo, esboçando uma expressão extremamente séria.

    — Certo, Zarek… use tudo o que você tem, e me mate.

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