A noite continuava silenciosa, como se tudo o que acontecera há momentos atrás não passasse de algum tipo de rápido delírio. O céu noturno envolvia o mundo com sua escuridão profunda, e apenas os grilos ousavam interromper a quietude com suas notas ritmadas e suaves.

    Nessa escuridão quase completa, Aron caminhava, afastando-se dos corpos dos bandidos, suas mãos ainda manchadas de sangue. O que aconteceu permanecia como um borrão em sua mente, difícil de digerir.

    — Pode sair, velho! — gritava em direção ao matagal para o qual Shalton havia fugido.

    O barulho de seu grito ecoava por toda a estrada, fazendo vários dos animais próximos se assustarem.

    Aron, impaciente por esperar alguns longos segundos, continuou:

    — Se não sair agora, vou embora sem você!

    Após as reclamações do jovem, várias plantas à sua frente começaram a se agitar, seus galhos e folhas tremiam como se algo estivesse prestes a emergir delas. De repente, Shalton saía, a passos lentos e inseguros, seu olhar demonstrando uma preocupação evidente.

    — Garoto… eu… me desculp…

    — Não se preocupa, velho, o que está feito está feito. Vamos logo pra pousada. — Aron interrompia rapidamente Shalton, escondendo suas próprias dores, não querendo que o já triste senhor se sentisse ainda mais culpado por tê-lo arrastado para essa viagem.

    Os olhos do velho homem vacilaram por um instante, e ele murmurou:

    — Sim… Vamos… 

    Shalton ansiava por falar sobre muitas coisas, sendo o mais desejado um pedido de desculpas. Ele nunca imaginara que realmente fossem ser atacados por bandidos; isso nunca havia ocorrido antes. Seu objetivo desde o início era apresentar o mundo a um jovem de talento notável, como Aron, e evitar que esse talento se perdesse em uma simples vila. Infelizmente, as coisas não ocorreram conforme o planejado.

    O jovem avançava a passos lentos, enquanto Shalton permanecia imóvel, observando suas costas. Nesse momento, pensou com os olhos prestes a lacrimejar:

    “Como você cresceu, garoto. Mal parece o mesmo bebê indefeso que foi abandonado no vilarejo. Você é muito forte.”

    Sniff dava uma fungada poderosa, lutando para evitar o choro.

    Aron subia na carroça e olhava para trás, vendo o velho parado, ele gritou:

    — Então você realmente quer ficar aí, né?! Tudo bem, eu já vou indo então!

    — Chicoteou o cavalo, fazendo-o começar a andar.

    — S-seu moleque, me espera! — exclamava, apressando seus passos.

    ━━━━━━◇◆◇━━━━━━

    — Senti saudades! — William falava com um sorriso de orelha a orelha.

    — Bom… eu também senti, mas você não deveria ter voltado aqui! — dizia Beatrice, enquanto esticava a cabeça para verificar se seu pai não estava espiando.

    William fazia uma cara confusa e perguntava:

    — Ué, eu não disse que voltaria pra te ver?

    Ahh… — Beatrice suspirava. — Você realmente só pensa no que lhe convém, não é?

    William fez outra cara, ainda mais confusa.

    — Você não se lembra quando meu pai nos pegou saindo do mesmo quarto na primeira vez que você esteve aqui? —Beatrice perguntou. 

    — Claro que me lembro! Até hoje sinto calafrios só de pensar nisso.

    — E então…?

    — Mas vale a pena! — afirmava com um olhar firme no rosto. — Acho que enfrentaria até um dragão pra lhe salvar, bom… claro, dependendo do dragão.

    As palavras do príncipe pareciam ter afetado profundamente a dama à sua frente, que, disfarçadamente, virava o rosto para ocultar a vergonha provocada por palavras tão poderosas.

    — Beatrice, vou refazer a proposta que lhe fiz aquele dia, venha para o castelo comigo. Abandone essa sua vida simples e venha viver ao meu lado.

    O semblante da mulher se endurecia, exibindo um desgosto profundo.

    — Como uma concubina!? Agradeço a oferta, mas recuso. Aproveite sua vida cercado de putas — Beatrice declarava, virando as costas para William e saindo apressadamente, subindo as escadas.

    — Calma, Beatrice, me escuta… — William tentava acalmá-la, mas foi interrompido.

    — Senhor William — dizia o cavaleiro narigudo.

    Os olhos do príncipe faiscaram em raiva quando ele encarou o pobre cavaleiro.

    — O que é!? — exclamou, assustando o pequeno homem.

    — Bem… as coisas já foram descarregadas, e os outros estão perguntando se podem entrar.

    — Não sei! Vá perguntar ao dono se os quartos já estão prontos! — gritava, saindo em direção à porta.

    — Certo…

    “Achei que ele fosse seu amigo.” pensou o cavaleiro, observando a saída do príncipe.

    ━━━━━━◇◆◇━━━━━━

    No ápice da noite, quando provavelmente até os mortos-vivos estavam em repouso, ecoaram batidas fortes na porta da antiga pousada.

    Toc! Toc! Toc!

    O som despertou os cavaleiros, que antes tentavam manter a guarda noturna, mas agora cochilavam em suas cadeiras.

    — E-ei, ei, acorda — murmurou o cavaleiro, cutucando seu companheiro de vigília que estava profundamente adormecido ao seu lado.

    — Já falei que eu posso pagar por todas vocês… venham todas de uma vez, haha… — murmurava com a voz arrastada. 

    O cavaleiro desperto lançou um olhar raivoso sob seu parceiro dorminhoco e repreendeu-o com uma voz firme no ouvido.

    — Acorda, seu merda!

    Com um susto, como o de quem acabara de cair de um precipício, o homem acordou.

    — Han? Han? O que foi? — perguntou, limpando a baba de sua boca.

    — Tem alguém batendo na porta — respondeu rapidamente.

    — A essas horas?

    — Sim… — falou enquanto ia em direção às escadas.

    — Ei, espera, vamos acordar os outros.

    — Para que razão você acha que eu te acordei?

    Sacando sua espada, o cavaleiro descia lentamente as escadas, até que, novamente:

    Toc! Toc! Toc!

    E foi aí que o honrado defensor do reino, aquele mesmo que jurara enfrentar dragões, demônios e qualquer ameaça invisível, parou, empalideceu e, sem pressa porém com muita dignidade, deu meia-volta.

    Subindo as escadas com o dobro da velocidade que desceu, agora segurando a espada como se fosse uma colher, ele murmurava com o olhar constrangido:

    — Na verdade, deixa que eu acordo os outros…

    Os dois guardas medrosos se encararam por alguns segundos e chegavam à mesma conclusão:

    — Se nós dois formos acordar a todos… todo mundo acorda mais rápido! — disse o primeiro, com a confiança de um general em campo de batalha.

    — Isso! Estratégia de cerco! — exclamou o cavaleiro sonhador, balançando a cabeça com tanta força que quase deixou o capacete cair. — Dividir para… alertar!

    Quando os dois se preparavam para entrar nos quartos onde seus companheiros descansavam, um grito ensurdecedor cortou o silêncio como um raio em noite de tempestade:

    — QUE DIABOS DE BARULHO É ESSE!?

    O estrondo foi tão poderoso que até as janelas da pousada pareciam vibrar de susto. A voz, rouca como pedra raspando em ferro e carregada de puro ódio, ecoou pelos corredores.

    Não havia dúvidas. Apenas uma alma naquele lugar possuía uma garganta tão furiosa e inconfundível: Karmil.

    Os pobres cavaleiros foram lançados ao chão como se atingidos por uma catapulta invisível. Um deles desmaiou de susto antes mesmo de encostar no piso, enquanto o outro rolava em círculos murmurando orações desconexas para todos os deuses que lembrava, inclusive alguns que ele provavelmente inventou no desespero.. 

    Todos que repousavam tranquilamente na calma e serena calada da noite agora eram arremessados de suas camas como se um terremoto tivesse sacudido a pousada. Em meio ao caos e ao ranger apressado das portas sendo abertas, vozes confusas se erguiam em desespero.

    — O que está acontecendo!? — exclamou William, escancarando a porta do quarto com os olhos ainda pesados de sono, mas o coração disparado.

    No instante exato em que pôs os olhos no corredor, ele viu… algo que congelaria qualquer tentativa de raciocínio.

    A ira de um “dragão”.

    A cada passo que ecoava como marteladas sobre a madeira, Karmil surgia, descendo as escadas com um machado em mãos e a expressão de quem acabara de ser arrancado das profundezas do inferno por causa de um pesadelo barulhento. O chão rangia sob seus pés, e por um breve momento, William se perguntou se aquilo era mesmo um homem… ou alguma besta ancestral disfarçada.

    O dono da pousada não era um homem muito alto; talvez já tenha sido no passado, mas agora, devido à idade, era basicamente um anão musculoso e carrancudo. Entretanto, o machado em suas mãos era gigantesco, exigindo provavelmente o esforço de dois homens adultos para ser carregado… isso se ainda estivessem com as costas em dia.

    — Aham! — William pigarreou, tentando soar educado. — Boa noite, senhor Karmil… haveria, por acaso, alguma razão específica para o terremoto?

    O velho interrompeu seus passos pesados e cravou nos olhos do príncipe um olhar capaz de fazer um boi desmaiar.

    Añ!?

    William sentiu a alma deixar o corpo por um breve instante.

    — N-não, imaginação minha… desculpe o incômodo… — murmurou com um sorriso nervoso, recuando lentamente em direção à porta do quarto, que foi fechada com mais cuidado do que ele jamais teve na vida.

    Toc! Toc! Toc!

    — Grrr… Já vai!

    Ao descer as escadas, tudo estava imerso em um breu intenso, mas o dono do estabelecimento conseguia se locomover sem esbarrar em nada, dispensando o uso de uma lamparina.

    O príncipe e os seus guardas acompanhavam o homem sorrateiramente, como se fossem sua sombra.

    As pisadas que estremeciam a casa enfim cessaram, sendo substituídas pelo barulho metálico de várias chaves se colidindo. Antes de abrir, Karmil deu uma leve espiada por um pequeno buraco que tinha na porta, e no momento qual vislumbrou os causadores das batidas, largou o machado, que fincou no chão, e abriu a porta.

    — É bom você se explicar muito bem sobre isso, Shalton.

    A porta enfim se abria por completo, revelando a figura de um velho à frente… e, logo atrás dele, um jovem coberto de sangue dos pés à cabeça.

    — Já faz um tempo não é, Karmil?

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