Capítulo 4: Já faz um tempo
A noite continuava silenciosa, como se tudo o que acontecera há momentos atrás não passasse de algum tipo de rápido delírio. O céu noturno envolvia o mundo com sua escuridão profunda, e apenas os grilos ousavam interromper a quietude com suas notas ritmadas e suaves.
Nessa escuridão quase completa, Aron caminhava, afastando-se dos corpos dos bandidos, suas mãos ainda manchadas de sangue. O que aconteceu permanecia como um borrão em sua mente, difícil de digerir.
— Pode sair, velho! — gritava em direção ao matagal para o qual Shalton havia fugido.
O barulho de seu grito ecoava por toda a estrada, fazendo vários dos animais próximos se assustarem.
Aron, impaciente por esperar alguns longos segundos, continuou:
— Se não sair agora, vou embora sem você!
Após as reclamações do jovem, várias plantas à sua frente começaram a se agitar, seus galhos e folhas tremiam como se algo estivesse prestes a emergir delas. De repente, Shalton saía, a passos lentos e inseguros, seu olhar demonstrando uma preocupação evidente.
— Garoto… eu… me desculp…
— Não se preocupa, velho, o que está feito está feito. Vamos logo pra pousada. — Aron interrompia rapidamente Shalton, escondendo suas próprias dores, não querendo que o já triste senhor se sentisse ainda mais culpado por tê-lo arrastado para essa viagem.
Os olhos do velho homem vacilaram por um instante, e ele murmurou:
— Sim… Vamos…
Shalton ansiava por falar sobre muitas coisas, sendo o mais desejado um pedido de desculpas. Ele nunca imaginara que realmente fossem ser atacados por bandidos; isso nunca havia ocorrido antes. Seu objetivo desde o início era apresentar o mundo a um jovem de talento notável, como Aron, e evitar que esse talento se perdesse em uma simples vila. Infelizmente, as coisas não ocorreram conforme o planejado.
O jovem avançava a passos lentos, enquanto Shalton permanecia imóvel, observando suas costas. Nesse momento, pensou com os olhos prestes a lacrimejar:
“Como você cresceu, garoto. Mal parece o mesmo bebê indefeso que foi abandonado no vilarejo. Você é muito forte.”
Sniff – dava uma fungada poderosa, lutando para evitar o choro.
Aron subia na carroça e olhava para trás, vendo o velho parado, ele gritou:
— Então você realmente quer ficar aí, né?! Tudo bem, eu já vou indo então!
— Chicoteou o cavalo, fazendo-o começar a andar.
— S-seu moleque, me espera! — exclamava, apressando seus passos.
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— Senti saudades! — William falava com um sorriso de orelha a orelha.
— Bom… eu também senti, mas você não deveria ter voltado aqui! — dizia Beatrice, enquanto esticava a cabeça para verificar se seu pai não estava espiando.
William fazia uma cara confusa e perguntava:
— Ué, eu não disse que voltaria pra te ver?
— Ahh… — Beatrice suspirava. — Você realmente só pensa no que lhe convém, não é?
William fez outra cara, ainda mais confusa.
— Você não se lembra quando meu pai nos pegou saindo do mesmo quarto na primeira vez que você esteve aqui? —Beatrice perguntou.
— Claro que me lembro! Até hoje sinto calafrios só de pensar nisso.
— E então…?
— Mas vale a pena! — afirmava com um olhar firme no rosto. — Acho que enfrentaria até um dragão pra lhe salvar, bom… claro, dependendo do dragão.
As palavras do príncipe pareciam ter afetado profundamente a dama à sua frente, que, disfarçadamente, virava o rosto para ocultar a vergonha provocada por palavras tão poderosas.
— Beatrice, vou refazer a proposta que lhe fiz aquele dia, venha para o castelo comigo. Abandone essa sua vida simples e venha viver ao meu lado.
O semblante da mulher se endurecia, exibindo um desgosto profundo.
— Como uma concubina!? Agradeço a oferta, mas recuso. Aproveite sua vida cercado de putas — Beatrice declarava, virando as costas para William e saindo apressadamente, subindo as escadas.
— Calma, Beatrice, me escuta… — William tentava acalmá-la, mas foi interrompido.
— Senhor William — dizia o cavaleiro narigudo.
Os olhos do príncipe faiscaram em raiva quando ele encarou o pobre cavaleiro.
— O que é!? — exclamou, assustando o pequeno homem.
— Bem… as coisas já foram descarregadas, e os outros estão perguntando se podem entrar.
— Não sei! Vá perguntar ao dono se os quartos já estão prontos! — gritava, saindo em direção à porta.
— Certo…
“Achei que ele fosse seu amigo.” pensou o cavaleiro, observando a saída do príncipe.
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No ápice da noite, quando provavelmente até os mortos-vivos estavam em repouso, ecoaram batidas fortes na porta da antiga pousada.
Toc! Toc! Toc!
O som despertou os cavaleiros, que antes tentavam manter a guarda noturna, mas agora cochilavam em suas cadeiras.
— E-ei, ei, acorda — murmurou o cavaleiro, cutucando seu companheiro de vigília que estava profundamente adormecido ao seu lado.
— Já falei que eu posso pagar por todas vocês… venham todas de uma vez, haha… — murmurava com a voz arrastada.
O cavaleiro desperto lançou um olhar raivoso sob seu parceiro dorminhoco e repreendeu-o com uma voz firme no ouvido.
— Acorda, seu merda!
Com um susto, como o de quem acabara de cair de um precipício, o homem acordou.
— Han? Han? O que foi? — perguntou, limpando a baba de sua boca.
— Tem alguém batendo na porta — respondeu rapidamente.
— A essas horas?
— Sim… — falou enquanto ia em direção às escadas.
— Ei, espera, vamos acordar os outros.
— Para que razão você acha que eu te acordei?
Sacando sua espada, o cavaleiro descia lentamente as escadas, até que, novamente:
Toc! Toc! Toc!
E foi aí que o honrado defensor do reino, aquele mesmo que jurara enfrentar dragões, demônios e qualquer ameaça invisível, parou, empalideceu e, sem pressa porém com muita dignidade, deu meia-volta.
Subindo as escadas com o dobro da velocidade que desceu, agora segurando a espada como se fosse uma colher, ele murmurava com o olhar constrangido:
— Na verdade, deixa que eu acordo os outros…
Os dois guardas medrosos se encararam por alguns segundos e chegavam à mesma conclusão:
— Se nós dois formos acordar a todos… todo mundo acorda mais rápido! — disse o primeiro, com a confiança de um general em campo de batalha.
— Isso! Estratégia de cerco! — exclamou o cavaleiro sonhador, balançando a cabeça com tanta força que quase deixou o capacete cair. — Dividir para… alertar!
Quando os dois se preparavam para entrar nos quartos onde seus companheiros descansavam, um grito ensurdecedor cortou o silêncio como um raio em noite de tempestade:
— QUE DIABOS DE BARULHO É ESSE!?
O estrondo foi tão poderoso que até as janelas da pousada pareciam vibrar de susto. A voz, rouca como pedra raspando em ferro e carregada de puro ódio, ecoou pelos corredores.
Não havia dúvidas. Apenas uma alma naquele lugar possuía uma garganta tão furiosa e inconfundível: Karmil.
Os pobres cavaleiros foram lançados ao chão como se atingidos por uma catapulta invisível. Um deles desmaiou de susto antes mesmo de encostar no piso, enquanto o outro rolava em círculos murmurando orações desconexas para todos os deuses que lembrava, inclusive alguns que ele provavelmente inventou no desespero..
Todos que repousavam tranquilamente na calma e serena calada da noite agora eram arremessados de suas camas como se um terremoto tivesse sacudido a pousada. Em meio ao caos e ao ranger apressado das portas sendo abertas, vozes confusas se erguiam em desespero.
— O que está acontecendo!? — exclamou William, escancarando a porta do quarto com os olhos ainda pesados de sono, mas o coração disparado.
No instante exato em que pôs os olhos no corredor, ele viu… algo que congelaria qualquer tentativa de raciocínio.
A ira de um “dragão”.
A cada passo que ecoava como marteladas sobre a madeira, Karmil surgia, descendo as escadas com um machado em mãos e a expressão de quem acabara de ser arrancado das profundezas do inferno por causa de um pesadelo barulhento. O chão rangia sob seus pés, e por um breve momento, William se perguntou se aquilo era mesmo um homem… ou alguma besta ancestral disfarçada.
O dono da pousada não era um homem muito alto; talvez já tenha sido no passado, mas agora, devido à idade, era basicamente um anão musculoso e carrancudo. Entretanto, o machado em suas mãos era gigantesco, exigindo provavelmente o esforço de dois homens adultos para ser carregado… isso se ainda estivessem com as costas em dia.
— Aham! — William pigarreou, tentando soar educado. — Boa noite, senhor Karmil… haveria, por acaso, alguma razão específica para o terremoto?
O velho interrompeu seus passos pesados e cravou nos olhos do príncipe um olhar capaz de fazer um boi desmaiar.
— Añ!?
William sentiu a alma deixar o corpo por um breve instante.
— N-não, imaginação minha… desculpe o incômodo… — murmurou com um sorriso nervoso, recuando lentamente em direção à porta do quarto, que foi fechada com mais cuidado do que ele jamais teve na vida.
Toc! Toc! Toc!
— Grrr… Já vai!
Ao descer as escadas, tudo estava imerso em um breu intenso, mas o dono do estabelecimento conseguia se locomover sem esbarrar em nada, dispensando o uso de uma lamparina.
O príncipe e os seus guardas acompanhavam o homem sorrateiramente, como se fossem sua sombra.
As pisadas que estremeciam a casa enfim cessaram, sendo substituídas pelo barulho metálico de várias chaves se colidindo. Antes de abrir, Karmil deu uma leve espiada por um pequeno buraco que tinha na porta, e no momento qual vislumbrou os causadores das batidas, largou o machado, que fincou no chão, e abriu a porta.
— É bom você se explicar muito bem sobre isso, Shalton.
A porta enfim se abria por completo, revelando a figura de um velho à frente… e, logo atrás dele, um jovem coberto de sangue dos pés à cabeça.
— Já faz um tempo não é, Karmil?
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