Capítulo 6: Ciúme
O sol finalmente se mostrava, banhando a pousada com sua luz dourada e suave. O calor que penetrava pelas janelas era um respiro para todos, enquanto o amanhecer trazia consigo uma calma tímida, como se o mundo oferecesse uma breve trégua aos corações aflitos da noite anterior.
Dentro de um dos quartos simples da estalagem, Aron começava a despertar.
O cômodo era modesto, com móveis rústicos e poucas decorações. As paredes de madeira carregavam um cheiro misto de lavanda e tempo úmido. Havia apenas uma cômoda gasta num dos cantos, um banco de madeira e uma pequena janela entreaberta por onde o vento fresco soprava.
Ele levantou devagar, os olhos pesados pela exaustão. Sentou-se na cama e levou uma das mãos ao rosto, tentando afastar o torpor do sono.
Ao seu lado, encostada na cama, repousava sua espada. Seus pertences eram poucos, quase irrelevantes, exceto por ela, companheira silenciosa de uma jornada que mal havia começado.
Com um olhar vago, Aron encarou o teto por alguns instantes. As lembranças da noite anterior vieram claras em sua mente, o interrogatório na estalagem, os olhares curiosos, as perguntas sobre os bandidos e a forma como teve que explicar tudo diante de todos. Nada disso o incomodava tanto quanto deveria… até chegar na parte mais estranha da noite: o abraço de Beatrice.
Assim que pensou nela, sua expressão se transformou. O rosto, até então sereno, ganhou um leve rubor e ele afundou o rosto nas mãos de novo, soltando um gemido abafado de puro constrangimento.
“Por que ela me abraçou? Por que eu aceitei? Por que… por que eu encostei no ombro dela daquele jeito?!”, pensou, encarando o chão como se ele tivesse todas as respostas.
Rolou de um lado para o outro na cama, murmurando baixinho:
— Ai, que vergonha…
Deitou de costas e fixou o olhar no teto novamente, com a mão repousando sobre o rosto.
— Tomara que ela não comente isso com ninguém… principalmente com o pai dela… ou com o príncipe… ou com qualquer ser vivo dessa pousada…
Por alguns segundos, ficou em silêncio, depois resmungou consigo mesmo:
— Eu sou um desastre.
Apesar da vergonha, não conseguia evitar um leve sorriso no canto da boca. Algo naquela lembrança, por mais embaraçosa que fosse, parecia… bom.
Respirou fundo, sentou-se novamente e pegou a espada, apoiando-a no colo. O mundo não pararia por causa dos seus pensamentos, e ele sabia disso melhor do que ninguém.
Era hora de enfrentar o novo dia.
Assim que Aron abriu a porta do quarto, foi recebido pelo aroma suave de pão assando e o sussurro distante de vozes. Caminhou pelo corredor de madeira antiga, ouvindo o ranger suave sob seus pés até alcançar a mureta do andar superior, de onde se podia ver parte do salão principal da estalagem.
Dois degraus antes de encostar-se à mureta, uma voz soou mais alta que as outras, cortando o burburinho com arrogância:
— Um caminho alternativo? Por que eu, o príncipe herdeiro, deveria dar meia-volta como um covarde só por medo de ladrões de estrada?
Era William, em pé ao lado de uma mesa, onde dois de seus guardas permaneciam de cabeça baixa. O mais velho dos dois, aparentemente o autor da sugestão, manteve o tom calmo:
— Alteza, com todo o respeito, não se trata de covardia. Os homens que atacaram os forasteiros ontem não agiram por impulso; sabiam exatamente o que faziam. Um desvio de poucas horas pode nos poupar problemas maiores.
William bufou, cruzando os braços com desdém.
— Se está com medo, pode muito bem ficar por aqui, soldado. Eu não vou mudar meu caminho por causa de meia dúzia de bandidos com capuzes.
Aron apenas observou em silêncio, apoiado na mureta, ainda distante da discussão. Mas antes que pudesse refletir sobre as palavras do príncipe, algo mais chamou sua atenção.
Beatrice surgiu na beira das escadas, como se fosse descer. Carregava uma toalha dobrada e uma expressão calma, até seus olhos encontrarem os de Aron. O rubor em seu rosto surgiu instantâneo. Ela congelou por um segundo, hesitou… e então, sem dizer uma palavra, deu meia-volta e retornou pelo corredor, de onde provavelmente viera.
Aron piscou, confuso, e depois soltou um leve suspiro.
“Certo… isso vai ser um problema.”
Ainda apoiado na mureta, olhou para o corrimão das escadas como se enxergasse ali a distância entre eles. Passou a mão pelo cabelo, bagunçando-o de leve, e pensou consigo mesmo:
“Preciso resolver isso antes que fique mais estranho do que já está. Só preciso de um momento a sós com ela… e palavras que façam sentido.”
Com os guardas distraídos com o príncipe e Beatrice trancada em seu quarto, Aron voltou a andar lentamente pelo corredor, imerso em seus pensamentos, formulando mil versões de uma conversa que nem sabia como começar.
Antes que pudesse refletir mais sobre a situação com Beatrice, a porta ao lado se abriu com um rangido leve. Shalton surgiu, coçando a cabeça como quem ainda lutava contra o sono.
— Ora, bom dia, garoto. Dormiu bem?
Aron assentiu, forçando um leve sorriso.
— Sim… melhor do que esperava até.
Shalton observou o corredor vazio e depois olhou para baixo, onde o cheiro de pão quente e carne defumada começava a subir pelas escadas.
— Estou indo tomar o café da manhã. Que tal me acompanhar? Já estamos mesmo acordados, não é?
— Vamos sim, tô morrendo de fome.
Os dois começaram a descer tranquilamente, sem pressa. Ao chegarem ao salão principal, os olhos de William imediatamente pousaram sobre Aron como se tivessem sido atraídos por ímã. O príncipe estava recostado em uma das colunas de madeira, braços cruzados, claramente ainda mal-humorado.
Desde a chegada daquele tal de Aron à pousada, William simplesmente não conseguia mais conversar direito com Beatrice. Cada vez que tentava puxar assunto, ela inventava uma desculpa, mudava de direção, ou pior… parecia distante. Isso era insuportável.
E agora, ali estava ele. Aron. Com aquela cara de quem não sabia o que estava fazendo, andando ao lado do velho como se pertencesse àquele lugar.
“Não sei o que aconteceu,” pensava William, cerrando os dentes. “Mas Beatrice está estranha. E tenho certeza que esse cara tem algo a ver com isso.”
Aron e Shalton desceram as escadas juntos, os passos ecoando levemente pelo salão silencioso. Quando chegaram ao térreo, William se aproximou, o olhar fixo em Aron.
— Dormiu bem? — perguntou com um tom educado demais para soar genuíno.
— Sim… — respondeu Aron, um pouco surpreso com a iniciativa.
William cruzou os braços, fingindo naturalidade.
— Já que você lidou tão bem com os bandidos, pensei em algo — disse, em tom casual demais para ser sincero. — Que tal um duelo amistoso? Nada oficial, claro. Apenas para testar habilidades. Caso encontremos mais ameaças na estrada, quero ter certeza de que eu conseguiria lidar com eles sem dificuldades.
Shalton olhou de William para Aron, claramente percebendo que havia mais por trás da proposta do que o príncipe deixava transparecer.
Aron arqueou uma sobrancelha, desconfiado.
— Tem certeza? Quero dizer… você é um príncipe. Isso não pode te causar problemas?
— Nenhum — respondeu William prontamente. — Não há membros da nobreza aqui. É apenas uma demonstração entre viajantes. Nada que manche minha honra.
Aron cruzou os braços por um instante, refletindo. — Certo… mas vou comer alguma coisa antes.
— Claro. — William fez um gesto com a mão, ainda sorrindo. — Estarei lá fora, me preparando.
Ele se virou e saiu pela porta da frente, deixando o salão para trás. O ar do lado de fora era fresco, e o campo próximo à estalagem, envolto por árvores distantes, era o cenário ideal para sua encenação.
Pouco depois, passos apressados soaram atrás dele.
— William! — Beatrice chamou, alcançando-o já do lado de fora.
Ele virou-se, mantendo o mesmo sorriso.
— Algum problema?
— O que exatamente você pensa que está fazendo? — perguntou, tentando manter a voz firme.
William sequer se virou de imediato. Apenas respondeu, com um tom casual demais:
— Só quero testar minhas habilidades, caso apareçam mais bandidos nas estradas. Preciso saber se estou à altura, não acha?
Beatrice cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha.
— Sei…
O silêncio que seguiu foi breve, mas carregado. William enfim se virou, tentando encontrar no rosto dela alguma reação, qualquer sinal de admiração ou preocupação.
Mas Beatrice apenas suspirou, virando-se para voltar à estalagem.
Ele ficou parado por um instante, com a espada repousando sobre o ombro, os olhos fixos na porta. Se aquilo havia sido uma tentativa de impressioná-la, o resultado ainda era incerto.
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O campo aberto ao lado da pousada agora carregava um ar de expectativa. A relva curta, levemente úmida pelo orvalho da manhã, servia de palco improvisado para o que estava por vir. A poucos metros dali, agrupados à sombra de uma árvore, estavam Karmil, Shalton, os guardas e, mais afastada, mas claramente atenta, Beatrice. Seus olhos não disfarçavam a tensão. Ela observava em silêncio, mordendo o canto do lábio inferior, os dedos entrelaçados à frente do corpo — como se temesse o que estava prestes a acontecer, embora soubesse que nada de grave deveria ocorrer.
William, já pronto, girava a espada de madeira entre os dedos com a confiança de quem crescera treinando em pátios nobres e sob olhares exigentes. Sua cota de malha reluzia sob o sol, ajustada perfeitamente ao seu corpo, demonstrando que mesmo em algo improvisado, ele fazia questão de manter a imagem impecável.
Aron, por sua vez, vestia uma cota emprestada — um pouco larga nos ombros, mas funcional. A espada de madeira, firme em sua mão, parecia estranhamente natural. Ele não se exibia, nem forçava postura. Apenas mantinha os pés firmes e a respiração controlada, os olhos atentos ao homem diante de si.
William deu um passo à frente, inclinando levemente a cabeça com aquele sorriso típico de quem jamais admite fraqueza.
— Então, está pronto?
Aron apenas assentiu com um movimento simples, sem palavras. O tipo de resposta que não buscava dramatização, apenas demonstrava certeza.
Um breve silêncio se seguiu. Os olhares do pequeno grupo não desgrudavam deles. Os guardas observavam com curiosidade. Shalton parecia dividido entre apreensão e empolgação. Karmil cruzava os braços, analisando com olhos de veterano. E Beatrice, demonstrava ansiedade.
As espadas de madeira se ergueram. Não havia necessidade de palavras. O duelo começaria.
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