Capítulo 19 – As Lembranças de Um Herói – Parte 3
Os dias no quartel de Pyronia se alongavam, e o treinamento de Hiroshi tornava-se uma rotina exaustiva, porém indispensável. Espadas de madeira batiam umas contra as outras sob o calor abrasador do meio-dia, enquanto o suor escorria pelos rostos dos recrutas.
Hiroshi, Harland e Rylen treinavam juntos, ajudando-se mutuamente a corrigir erros e aperfeiçoar técnicas. O som de gargalhadas ocasionais preenchia o pátio.
– Harland, você é tão desajeitado quanto um
bêbado! – zombou Rylen, desviando de um golpe mal executado do amigo.
– Eu diria que sou mais elegante do que você com esse seu arco torto – retrucou Harland, rindo, enquanto tentava recuperar a compostura.
Hiroshi observava os dois, sorrindo. Apesar do cansaço, aqueles momentos de camaradagem tornavam o treinamento mais suportável.
De repente, o som das risadas foi abafado por murmúrios vindos do portão principal. Um grupo de soldados atravessava o pátio. Eles estavam voltando da linha de frente, e sua aparência era assustadora.
Os recrutas interromperam seus treinamentos, observando em silêncio. Alguns dos soldados vinham mancando, enquanto outros eram carregados em carroças. Um homem faltava com um braço; outro tinha o rosto parcialmente coberto por ataduras encharcadas de sangue.
Hiroshi sentiu o estômago revirar ao ver os olhares vazios daqueles homens. Eles não pareciam mais vivos; eram sombras de si mesmos.
– É isso que nos espera? – sussurrou Rylen, a voz trêmula.
– A guerra não poupa ninguém – respondeu Harland, o tom grave.
Hiroshi não disse nada, mas o peso da realidade parecia esmagá-lo. Até então, ele havia encarado o treinamento como uma preparação física, mas agora entendia que o verdadeiro desafio seria sobreviver ao campo de batalha.
Após o treinamento, Hiroshi foi até a pequena forja do quartel. O ferreiro, um homem idoso chamado Merek, era conhecido por suas histórias de guerra e por forjar armas para os soldados.
– Você viu os homens que chegaram hoje? – perguntou Hiroshi enquanto observava Merek moldar uma lâmina.
– Vi – respondeu o ferreiro, sem tirar os olhos do trabalho. – São os sortudos que voltaram vivos.
– Eles pareciam… destruídos.
Merek suspirou e colocou a lâmina na água, produzindo um chiado.
– O campo de batalha é diferente de qualquer coisa que você possa imaginar. Não é só o corpo que é ferido, mas a mente e o coração. Quando você estiver lá, lembre-se: sua sobrevivência depende tanto da sua força quanto da sua cabeça.
Hiroshi agradeceu as palavras do ferreiro e voltou para os alojamentos, mais reflexivo do que nunca.
O alojamento para recrutas era simples: fileiras de beliches alinhadas em um espaço apertado, com um cheiro constante de suor e metal. Hiroshi, Harland e Rylen estavam sentados em suas camas quando um grupo de recrutas entrou, trazendo consigo um ar de curiosidade e energia renovada.
– Vocês devem ser os caras que derrotaram os veteranos na simulação, certo? – perguntou um deles, um jovem alto e loiro, com olhos azuis brilhantes.
– Isso mesmo – respondeu Harland, com um sorriso orgulhoso. – Quem são vocês?
– Sou Lothar, filho de ferreiros. Esses aqui são Orin e Davon – disse o jovem, apontando para seus companheiros.
Orin era robusto e tinha um ar sério, enquanto Davon era menor e mais ágil, com um sorriso travesso que parecia nunca desaparecer.
– Ouvi dizer que vocês são bons – comentou Davon, cruzando os braços. – Espero que estejam prontos para carregar o pelotão quando estivermos no campo de batalha.
– Não se preocupem – respondeu Rylen, rindo. – Nós somos modestos, mas não tanto assim.
Os novos recrutas se juntaram ao grupo, compartilhando histórias de suas vidas antes do alistamento. Hiroshi ouviu com interesse, absorvendo as personalidades distintas de seus novos companheiros.
– No final das contas, somos todos só peças de um tabuleiro maior – disse Orin, em um momento de seriedade. – Mas se tivermos que lutar, prefiro lutar ao lado de pessoas em quem posso confiar.
Hiroshi as, sentindo um laço de camaradagem começar a se formar. Ele sabia que, para sobreviver à guerra, precisaria confiar nos homens ao seu lado.
E com esse pensamento, ele fechou os olhos, pronto para encarar mais um dia de treinamento.
Dois meses haviam se passado desde que Hiroshi e seus amigos chegaram ao quartel. As intensas sessões de treinamento moldaram jovens inexperientes em soldados prontos para o campo de batalha – ou assim acreditavam. Naquela manhã, todos os recrutas foram convocados para o pátio principal.
O sargento, sempre severo e direto, observava a multidão com olhos avaliadores antes de começar.
– Recrutas! O treinamento acabou – anunciou, sua voz ecoando pelo pátio. – Em três dias, vocês partirão para a linha de frente. Esses dias são seus para resolver seus assuntos pessoais. Despeçam-se de suas famílias e lembrem-se: quando colocarem os pés no campo de batalha, vocês não serão mais jovens de Pyronia. Serão soldados de Imperion. Dispensados!
As palavras pesadas pairaram no ar, e o pátio, que costumava ser preenchido por barulho e risadas, mergulhou em silêncio. Os recrutas começaram a se dispersar lentamente, alguns tentando mascarar o medo, outros abraçando amigos em despedidas silenciosas.
Hiroshi encontrou Harland e Rylen perto dos alojamentos. Os três se encararam por um momento, um peso não dito nos olhos de cada um.
– Então é isso – disse Harland, suspirando profundamente. – Temos três dias antes de encarar o que realmente nos espera.
Rylen assentiu, seu sorriso habitual agora mais tímido. – Vamos fazer valer a pena.
Hiroshi apertou as mãos dos dois amigos, um gesto que parecia simples, mas carregava toda a força de sua amizade. Ele também se despediu de Lothar, Orin, Davon e outros recrutas do alojamento, cada um prometendo se proteger quando estivessem no campo de batalha.
– Não importa onde estejamos – disse Hiroshi, com determinação. – Sempre teremos um ao outro.
Depois de sair do quartel, Hiroshi caminhou rapidamente pelas ruas de Pyronia, seu coração batendo acelerado. Ele tinha um destino claro: a padaria da família de Eiko.
Assim que cruzou a entrada da pequena loja, o cheiro doce de pães recém-assados o envolveu, mas sua atenção estava completamente voltada para a jovem atrás do balcão. Eiko o viu e abriu um sorriso radiante. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Hiroshi atravessou a distância entre eles e a abraçou com força, pressionando seus lábios nos dela em um beijo apaixonado.
– Eu sabia que você voltaria – disse ela, a voz cheia de emoção.
Hiroshi deu um passo para trás, ainda segurando as mãos dela.
– Eiko, esses meses foram longos. A guerra está me chamando, mas antes que eu vá, eu preciso… – Ele ajoelhou-se, pegando uma pequena caixinha do bolso. Quando abriu, revelou um simples anel de prata com uma pequena pedra brilhante. – Eiko, você é a luz que me guia. Quer se casar comigo?
Os olhos de Eiko se encheram de lágrimas, e ela balançou a cabeça afirmativamente antes de responder:
– Sim, Hiroshi! Sim!
Antes que eles pudessem dizer mais, a porta dos fundos da padaria se abriu, e os pais de Eiko apareceram, fingindo surpresa.
– O que está acontecendo aqui? – perguntou o pai dela, claramente já ciente da situação.
Hiroshi levantou-se, sem soltar a mão de Eiko.
– Senhor e senhora Kuroda, pedi a mão de sua filha em casamento.
Os pais de Eiko sorriram, e sua mãe enxugou os olhos emocionados.
– É claro que aceitamos, Hiroshi – disse o pai dela. – Você é um bom rapaz, e sabemos que Eiko estará em boas mãos.
– Mas… – Hiroshi hesitou. – Os recrutas partirão em três dias. Não há tempo para um casamento elaborado.
A mãe de Eiko sorriu suavemente. – Então vamos fazê-lo hoje. Esta noite. Algo simples, mas especial.
Todos concordaram, e Hiroshi sentiu uma onda de alívio misturada com felicidade. Ele sabia que o tempo era curto, mas isso não importava. Eles estariam juntos, e isso era o suficiente.
Depois de deixar a padaria, Hiroshi caminhou pelas ruas de Pyronia até sua casa. Era uma construção modesta, localizada a algumas ruas atrás da padaria. Ao abrir a porta, ele foi recebido pelo som do silêncio, a casa estava vazia.
O silêncio parecia ainda mais opressor diante do estado do local. Poeira cobria os móveis, e teias de aranha se acumulavam nos cantos. A casa parecia abandonada, esquecida no tempo assim como ele se sentia às vezes.
Hiroshi passou os dedos pelo corrimão de madeira enquanto subia até o segundo andar, cada degrau trazendo memórias de sua infância. Chegando à sala principal, ele parou diante de uma mesa onde estava uma pintura emoldurada.
Na pintura, ele era apenas uma criança, risonha, entre seus pais. Seu pai, Takeru Ignivor, tinha o mesmo olhar determinado que Hiroshi herdara, e sua mãe, Akane, o abraçava com ternura. Era a única lembrança física que ele tinha deles, além das memórias.
– Eu voltei para casa – disse ele em um sussurro, sentando-se diante da pintura. Seus olhos marejaram, e ele continuou a falar. – Pedi Eiko em casamento. Ela disse sim. Acho que vocês gostariam dela… Ela é incrível.
As lágrimas começaram a cair enquanto ele abraçava o quadro. – Eu sinto tanta falta de vocês… Tanta.
Hiroshi ficou assim por vários minutos, deixando as lágrimas lavarem a saudade e a dor. Quando finalmente conseguiu se recompor, enxugou o rosto e olhou ao redor.
– Não posso deixar a casa assim – disse para si mesmo, com determinação. Ainda era manhã, e ele precisava prepará-la para a noite que se aproximava.
Hiroshi passou o dia arrumando tudo. Limpou cada canto, tirou o pó dos móveis, lavou as cortinas e reorganizou os objetos que estavam fora do lugar. Ele queria que a casa parecesse digna para receber Eiko e os convidados que viriam para a celebração simples naquela noite.
Ao final do dia, exausto, ele se sentou diante da pintura novamente.
– Espero que estejam orgulhosos – murmurou, com um leve sorriso.
Enquanto o sol se punha no horizonte, Hiroshi sentiu que, apesar de toda a incerteza e do medo do futuro, ele estava pronto para enfrentar o que viesse.
A noite caiu sobre Pyronia, trazendo consigo um frescor agradável e uma quietude rara. A padaria da família Kuroda, iluminada por lanternas penduradas e velas dispostas em mesas, estava transformada em um pequeno espaço de celebração. Apesar da simplicidade, o ambiente tinha uma beleza singela, refletindo a essência de Eiko e Hiroshi.
Eiko estava radiante em um vestido simples de linho branco, ornamentado apenas com uma fita azul na cintura, realçando sua delicadeza. Hiroshi, por sua vez, usava um traje formal, mas modesto. Vestia uma camisa branca de tecido fino, acompanhada por um colete preto ajustado e calças escuras. Uma faixa de couro marrom, presa à cintura, adicionava um toque de elegância rústica.
Os convidados eram poucos. Além dos pais de Eiko, que organizavam o ambiente e serviam os pães e doces que haviam preparado com carinho, estavam os amigos de Hiroshi: Harland, Rylen e alguns outros recrutas do alojamento, que fizeram questão de comparecer.
O evento começou com o pai de Eiko, Ichiro Kuroda, tomando a palavra. Com a voz embargada de emoção, ele abençoou a união dos dois jovens, desejando-lhes um futuro próspero mesmo em tempos tão difíceis.
– Este é um momento de alegria – disse Ichiro. – Que o amor de vocês seja uma chama que nunca se apague, iluminando mesmo as noites mais escuras.
Hiroshi e Eiko trocaram votos simples, mas carregados de significado. Ele colocou o anel de prata no dedo dela, enquanto prometia protegê-la e amá-la até o último dia de sua vida.
– Você é minha luz, Eiko. Obrigado por acreditar em mim – disse Hiroshi.
Eiko, emocionada, respondeu com palavras igualmente sinceras.
– Eu sempre vou esperar por você, não importa quanto tempo demore.
Com aplausos e gritos animados dos amigos, o casal se beijou, selando a união.
Após a cerimônia, os convidados se reuniram para compartilhar a comida preparada pelos Kuroda. Os recrutas, acostumados ao rigor do quartel, se deliciaram com os pães frescos e bolos doces, comentando como aquela refeição era muito melhor que a ração que recebiam diariamente.
– Hiroshi, você é um homem de sorte – comentou Harland, erguendo um copo de suco. – Eiko é uma mulher incrível.
– Concordo – disse Rylen, sorrindo enquanto mordia um pão. – Só não se esqueça de voltar inteiro da guerra.
Hiroshi riu, mas a preocupação nos olhos de seus amigos era evidente. Ele sabia que aquela seria a última noite de paz antes da dura realidade que os esperava.
Depois que os convidados se despediram, desejando felicidades ao casal, Hiroshi e Eiko caminharam juntos pelas ruas tranquilas de Pyronia até a casa de Hiroshi. Ele segurava a mão dela com firmeza, sentindo o conforto que sua presença trazia.
Ao chegarem, Hiroshi abriu a porta, revelando a casa limpa e organizada. Eiko sorriu, admirada com o esforço que ele havia feito.
– Você arrumou tudo sozinho? – perguntou ela.
– Queria que fosse especial para você – respondeu ele, conduzindo-a para dentro.
Eiko olhou ao redor, notando a simplicidade do lugar, mas sentindo-se acolhida. Para ela, não importava o luxo – estar ao lado de Hiroshi era o suficiente.
Hiroshi a levou até o quarto, onde a cama estava arrumada com lençóis limpos. Ele segurou as mãos dela novamente, olhando em seus olhos com carinho.
– Eu não sei o que o futuro nos reserva, mas vou fazer de tudo para voltar para você – disse ele.
Eiko assentiu, com um sorriso leve. – Eu acredito em você, Hiroshi.
A noite passou tranquila, enquanto os dois jovens compartilhavam um momento de ternura e cumplicidade, fortalecendo ainda mais o laço que os unia.
O casamento simples, mas cheio de significado, foi um momento de respiro para Hiroshi e Eiko. No entanto, ambos sabiam que as próximas semanas seriam difíceis, e aquela noite marcaria o início de uma nova jornada, tanto no amor quanto na guerra.
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